Juliana de Albuquerque é escritora, doutoranda em literatura e filosofia e colunista da Folha de S. Paulo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo às 7:30 da manhã, lavo as mãos, passo bastante água fria no rosto e arrumo a cama antes de coar uma xícara de café bem forte. Faço a minha primeira refeição no sofá, escutando o noticiário. Depois, quando tenho a sorte de estar trabalhando em casa, sigo direto para a minha biblioteca. Lá faço um esquema do que preciso resolver durante o dia e defino as minhas prioridades: “leitura e anotações ou escrita, revisão e composição de texto?” Não consigo trabalhar sabendo que tem prato sujo na pia ou que deixei a cama por fazer. Sujeira, barulho e desorganização são coisas que inibem a minha produtividade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Final da manhã e comecinho da noite. Já fui de trabalhar durante a madrugada. Acho que para evitar a interferência do barulho, do movimento e das inconveniências dos lugares por onde passei. Hoje, no entanto, tenho a sorte de dividir a vida com um companheiro que, além de assumir a própria parcela de responsabilidade pela manutenção física da casa, sabe se virar por conta própria. Isso faz toda a diferença. Não gosto de ser interrompida por besteira quando estou trabalhando, mas se alguém chegar para me contar uma boa fofoca ou para me oferecer um bolinho daqueles bem caprichados, eu não resisto. Acho que esse tipo de interrupção nunca atrapalha; só enriquece o processo de escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todos os dias até para saber aproveitar os momentos de inspiração. Muita gente se esquece de que escrever é um exercício que demanda paciência, atenção e muito esforço. A inspiração só chega mesmo para quem trabalha incansavelmente. Não tem milagre! Agora mesmo, estou prestes a colocar um ponto final na minha tese. Ninguém escreve uma tese ou um livro de quase 100.000 palavras do dia para noite. No doutorado, a minha meta de escrita foi de até 500 palavras por dia. Obviamente, a gente sempre tem dias em que só consegue colocar uma frase ou, até mesmo, uma palavra no papel. Ninguém é de ferro e todo mundo tem problemas. Não faz mal! É assim mesmo. O importante é continuar escrevendo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Isso depende do que estou escrevendo. De modo geral, concordo com Goethe quando ele diz que é sempre mais fácil escrever sobre algo que conhecemos bem, seja através da pesquisa ou através da experiência. Difícil mesmo é escrever sobre aquilo que a gente não conhece ou domina. Mesmo assim, gosto de desafiar os meus próprios limites. Quando me defronto com um novo tema de escrita, primeiro tento sentir se existe algo que se comunique com tudo aquilo que eu já fiz ou vivi. Depois, entro de cabeça na pesquisa, troco ideias com os colegas e a partir daí começo, muito devagarzinho, a colocar as ideias no papel. Em algum momento desse processo, surge então uma questão que considero genuinamente minha e, a partir daí a escrita se torna mais prazerosa e descomplicada. Se estou produzindo um ensaio mais curto, como vem a ser o caso das minhas colunas para a Folha, primeiro pesquiso, depois escrevo e por último confiro as minhas fontes para ter certeza de que não fiz confusão. Também gosto de ler as minhas colunas para os meus pais. No caso de um projeto de escrita mais longo, como um artigo acadêmico ou, até mesmo, a minha tese de doutorado, faço a pesquisa, começo a escrever, faço uma pausa, compartilho uma versão do manuscrito, retomo a pesquisa a partir do feedback dos avaliadores e, depois, finalizo o texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Li em algum lugar que, quando Saul Bellow passava por algum bloqueio, ele dizia: “God will provide.” Compartilho desta filosofia. Quando estou sem conseguir escrever, vou fazer outra coisa, preparar aula, atualizar a minha correspondência, cozinhar, fotografar, jogar conversa fora e brincar com a gata da vizinhança que sempre aparece aqui no quintal para tomar banho de sol. É quando a gente está fazendo outras coisas que surgem as ideias. Ruim mesmo é não se dar a chance de deixar o pensamento seguir o seu próprio ritmo; achar que precisa se martirizar para conseguir produzir algo interessante. Também não dá para desperdiçar tempo se preocupando em corresponder às expectativas dos outros. Aqui, acho importante lembrar que, muitas vezes, o texto sequer corresponde às nossas próprias expectativas; então, realmente, não vale a pena entrar em parafuso por conta disso. Por fim, só conheço mesmo uma maneira de lidar com a ansiedade durante a execução de um longo projeto: não invente dificuldades para si, preocupe-se apenas com problemas reais e que sejam possíveis de resolver e trabalhe um pouco todos os dias.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Desde a adolescência, quando comecei a escrever contos e poesias, adquiri o hábito de mostrar o meu trabalho para as outras pessoas. Primeiro mostrei para a minha professora de literatura, depois para os meus pais e, por último, para os meus amigos que, naquela época, também estavam começando a se interessar por esse tipo de coisa. Obviamente não dá para mostrar tudo o que você está escrevendo para todo mundo. Primeiro, porque nem tudo que você escreve precisa ser lido por outra pessoa. Segundo, porque as suas ideias precisam de tempo e espaço para amadurecer. Eu só me sinto a vontade para compartilhar uma versão provisória do meu trabalho quando percebo que os meus argumentos estão suficientemente maduros. É a partir do momento em que você sabe o que está querendo dizer que você não se deixa intimidar pela crítica e, por isso mesmo, consegue fazer bom uso daquilo que lhe é sugerido pelos outros. No começo eu revisava os meus textos até não suportar mais. Não acho que isso seja produtivo. Hoje, sempre que estou trabalhando dentro e fora da academia, produzo entre duas e quatro versões do mesmo material. Tudo depende da dificuldade do argumento que estou tentando desenvolver; se encontrei as palavras certas para dizer o que queria, se fui capaz de responder as sugestões dos avaliadores e se os parágrafos seguem uma ordem que beneficie o meu argumento. Quando eu percebo que todos esses critérios foram atendidos e que, naquele momento, fiz tudo o que pude para me fazer entender de modo claro, então coloco o texto no mundo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

No computador. A vantagem de se trabalhar diretamente no computador é a de que os softwares de edição de texto nos permitem maior agilidade durante o processo de composição. Além disso, gosto de compartilhar arquivos entre os meus dispositivos de trabalho. Assim, se estou na rua ou na biblioteca da universidade, tenho sempre como acessar um documento para complementar alguma informação. Só escrevo à mão quando tomo notas ou quando estou relatando algum acontecimento no meu diário.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sempre encontro muita inspiração nas situações que vivi. Às vezes me pego escrevendo sobre algo que me ajude a entender o que se passou em um determinado momento. Tenho pensamentos e inquietações que me acompanham desde criança e que desenvolvo muito lentamente, ao sabor dos acontecimentos. Alguns dos meus temas prediletos, como a leitura, relação entre a literatura e a filosofia, o papel das emoções no cálculo das nossas decisões morais, a relação entre a razão e a loucura ou, até mesmo, o judaísmo; tudo isso, de uma maneira ou de outra, sempre se me fez presente. A verdade é que escrevo sobre aquilo que guarda alguma relação de proximidade com a minha experiência de vida. O que me mantém ativa é a necessidade que tenho de compreender cada uma dessas coisas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Lá no comecinho, eu sentia muita vontade de agradar e de ser aceita pelos outros. Isso gerava insegurança e, por isso mesmo, evitava escrever sobre determinadas coisas e acabava tendo dificuldades em aproveitar o que poderia existir de válido em qualquer crítica negativa. Tinha, também, um apego desmesurado por palavras e expressões específicas, como se a minha vida dependesse daquilo. Hoje, vejo que isso tudo não passa de uma enorme perda de tempo. Toda boa redação compreende um atento e exaustivo processo de composição e reescrita. O texto sempre é muito mais do que as ideias que você se sente capaz de colocar no papel. Por isso mesmo, um escritor deve saber respeitar o texto, saber que ele tem vida própria e que, geralmente, acaba seguindo um rumo totalmente imprevisível.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A minha tese de doutorado sobre a relação entre o conceito de Bildung e o feminino a partir de uma análise de três obras de Goethe: o drama Ifigênia em Tauris e os romances Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister e Afinidades Eletivas. O meu doutorado começou como um livro que eu gostaria de ler, mas que ainda não existia. Claro, existe uma porção de livros e artigos sobre Goethe e o feminino, Goethe e a questão de gênero etc. Só que nenhum desses textos foca exatamente nas mesmas questões que eu trabalho. Alguns optam por fazer uma crítica feminista, outros evitam um exame mais detalhado da relação entre as obras literárias de Goethe e os seus trabalhos científicos. O que eu procuro fazer no meu trabalho é justamente olhar para esta relação a partir de uma leitura sistemática de Goethe, na tentativa de encontrar uma resposta para a questão que me persegue desde o início da minha vida acadêmica, isto é: se e de que maneira o discurso literário pode ser encarado enquanto filosofia. Dito isto, acredito na excelência de todos os pesquisadores que vieram antes de mim e estou consciente das minhas próprias deficiências. O que eu fiz foi somente apontar uma lacuna na literatura especializada e oferecer sugestões de como resolver o problema. Ainda não sei exatamente qual será o meu próximo projeto. Mas, tenho vontade de persistir na escrita de um material que aborde a relação entre literatura e filosofia, nem tanto pela perspectiva do pensamento alemão, como tenho feito desde que entrei para o universo da pesquisa acadêmica, mas a partir de outras tradições. Adoraria, também, ter a oportunidade de ver alguns dos meus ensaios para a Folha revisados, organizados e reunidos em um livro.