Julia Raiz é escritora.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Desde que minha filha nasceu (em dezembro do ano passado, 2020) entendi que preciso ter uma rotina um pouco mais estabelecida para não me perder no meio de tanto compromisso (doutorado, cuidados mil com a bebê, freelas, casa, relacionamento etc) e, principalmente, para ficar mais tranquila com o fato de que às vezes não posso ou não quero ou não tenho energia para trabalhar. A rotina me dá mais tranquilidade e concentração no que estou fazendo no momento. Então adicionei na sequência do meu dia (sem obrigação de horário) um bloco de “trabalho criativo”, que inclui qualquer tempo, pode ser quinze minutos ou uma hora e meia (mesmo que com interrupções), para escrever. Tento escrever todos os dias e isso tem um impacto muito bom na minha cabeça. Já entendi há um tempo que não escrever com regularidade causa um desiquilíbrio desconfortável na minha cabeça, talvez agrave uma questão química mesmo, inclusive meus pesadelos violentos aumentam. Tenho vários projetos acontecendo ao mesmo tempo, vou pulando de um para outro dependendo do dia. Quando eu não to a fim de mexer nos projetos pelo menos releio alguma coisa que já fiz em voz alta e tento mexer ou revejo anotações nos cadernos. Agora to trabalhando num texto que to, por enquanto, chamando de “ensaio friccional” chamado “Bebê tem fascinação por lâmpadas” e numa novela, “As sonâmbulas”.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Cada projeto eu faço de um jeito, mas mesmo quando existe algum nível de planejamento prévio ele vai ser desviado com toda certeza, e nem por escolha minha, é o que acontece. Meu primeiro livro “diário: a mulher e o cavalo” (Contravento editorial, 2017), por exemplo, é inteiro o próprio desvio. Tive essa ideia muito crua de que queria escrever um livro sobre o relacionamento de uma mulher e um cavalo e nas semanas seguintes tentei esquematizar capítulo por capítulo como seria o livro. Foi aí que tudo ficou emperrado. Não conseguia começar nada, então abri um novo arquivo que chamei de “diário: a mulher e o cavalo”, uma tentativa de registro esquisito e honesto, uma espécie de conversa com meu próprio inconsciente (que é o que mais caracteriza minha escrita), para tentar me soltar e poder voltar ao livro. Em pouco tempo fui percebendo que aquele projeto de diário, na verdade, era o livro que eu podia escrever no momento. Então, contei isso para dizer que, assim como a vida, a escrita acontece, não adianta chegar com cabrestos molengas que não pegam em criatura viva. O que, óbvio, não quer dizer que algum nível de planejamento não seja útil, tenho percebido, nos últimos meses, que fazer um mapa mental (um esquema de rizomas coloridos que mostra no papel a visão do todo) do livro que estou escrevendo me ajuda a visualizar os caminhos (e as relações internas) que eu nem sei bem que estou tomando. A partir dessa visão de pássaro, vista de cima, posso escolher fortalecer alguns elementos, excluir outros etc. Acho também que é muito importante entender que existe o momento de escrita e o momento de edição e que sobrepor os dois momentos pode ser receita de paralisia. Pelo menos para mim é. Nem a primeira, nem a última frase é a mais difícil, mas tudo o que está no meio rs. Na real para mim o mais difícil é escrever espaços. Um colega poeta de Goiás, Rosa das Neves, disse outro dia que minha escrita tem o “frenesi do inesperado”, gostei disso, mas aí fica o desafio: onde colocar espaço, ar, silêncio no frenesi?
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Minha rotina quanto estou com um projeto de livro é a mesma de quando não estou, ou melhor, de quando ainda não sei em qual projeto minha mente está maquinando. Estou aqui, o tempo todo, atenta. Atenção é o primeiro passo para devoção, ouvi esse domingo a poeta Mary Oliver dizer. E quero fortalecer minha devoção por isso presto bastante atenção ao que está acontecendo, dentro das limitações e possibilidades da minha própria percepção. Principalmente presto atenção a essa figura muito misteriosa para mim que sou eu mesma quando estou dormindo. Então posso dizer que gosto e uso sim um espaço de silêncio (o tanto quanto possível) e separado do movimento do resto da casa para escrever, mas também que escrevo enquanto estou dormindo, ou dando de mamar, ou fazendo comida ou traduzindo ou ou ou. Talvez a diferença quando estou com um projeto de livro é que essa atenção fica mais direcionada a algumas provocações que aquele projeto está me fazendo, se estou escrevendo sobre uma enfermeira (como é o caso agora), conversas ouvidas no postinho de saúde, quando vou vacinar minha filha, brilham muito mais do que em qualquer outro momento. De resto estou sempre fazendo anotações em outros lugares que também não é o meu lugar de sentar e escrever. Antes da pandemia eu também escrevia muito na presença de outras pessoas porque faço parte da grupa de escrita Membrana (@membranaliteraria) e nos encontrávamos quinzenalmente para nos ler e escrever juntes, então preciso de silêncio e preciso de barulho, preciso de ambiente particular e preciso de ambiente coletivo para escrever.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Não sei se dá pra falar de procrastinação na escrita porque minha impressão é que acúmulo – migalha, sedimento, rastro, resíduo, poeira – tá acontecendo a toda hora mesmo sem a gente perceber, então de repente você senta e transborda desse acúmulo todo alguma coisa no papel. E depois vai olhar e manipular aquilo. Agora às vezes a gente tem mesmo essa percepção de que nada tá acontecendo…quando isso acontece eu normalmente faço duas coisas: vou revisitar coisas que eu já fiz, leio em voz alta, testo outros cortes de verso ou pontuação, alongo, encurto, junto alguns textos numa série etc/ ou sento pra escrever e tento me tirar ao máximo, ou seja, tento silenciar a parte de mim que é a que eu conheço melhor, essa acordada com as obrigações do dia e tudo o mais, tento ser mais material condutor por onde passa energia e menos pessoa que pensa sobre. Preciso mais me silenciar do que silenciar o ambiente quando me sinto travada. E para mim funciona não porque são técnicas que levam a um bom texto necessariamente, mas porque me colocam em movimento. A vantagem de ter uma rotina de escrita regular é que nos dias que a gente não tá mesmo a fim de fazer nada é ok, não precisa fazer porque isso não vai ter um impacto grande nos projetos em andamento. Isso é como eu faço, sei que tem muita gente que passa meses, anos sem escrever nada e fica bem e retoma o que quiser na hora que quiser, mas como eu já comentei, tenho meus pesadelos à espreita…
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
De autoria individual, tenho publicados 1 livro de prosa poética (será que é isso mesmo, prosa poética?), 3 plaquetes e 1 zine; terminados tenho mais 2 livros de poemas sem previsão de publicação; e incompletos esse que por enquanto to chamando de ensaio friccional e a novela. A novela com certeza é o que mais está dando trabalho porque é um trabalho de maior fôlego e porque eu tenho uma tremenda dificuldade de manter qualquer tipo de fio narrativo, tendo a deixar as pessoas que estão lendo à deriva, nem por escolha própria, mas é como eu sei fazer, costumo fazer e sou (acho que) boa em fazer. Estou me desafiando, à sombra do que eu não escolho, a levar alguns nós (talvez, ao invés de um único fio) do começo ao fim. Sempre tive vontade de ser uma boa contadora de histórias, mas nunca consegui levar isso a cabo, a narrativa mesmo que semi-coesa sai pela janela quando eu entro. Às vezes me contento com fazer as coisas caroçudas que faço, às vezes quero insistir. Tem passagens do “diário: a mulher e o cavalo” que me orgulham porque foi um livro que o som bateu e voltou, ecoou em algumas pessoas. “Metamorfoses do Sr. Ovídio”, um livro de poema sem publicação, tem trechos sobre crianças que moram no meu coração. Cada projeto tem umas linhas especiais que eu cheguei a algum lugar fora de mim. E no momento tem passagens de “Bebê tem fascinação por lâmpadas” que estão me fazendo feliz, mas espero que a resposta para essa pergunta seja sempre: o que mais me orgulha é o que estou fazendo agora.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Eu escolho os temas? Não sei, bom, pelo menos por enquanto acho que não. E também meus trabalhos até agora são bem multi-temáticos, prestam atenção a várias coisas por mais que possam orbitar em torno de alguns corpos: mulher, cavalo, Sr. Ovídio, Bebê, eu mesma, as sonâmbulas etc. Esses corpos-massas mentais aparecem de madrugada, me veem várias ideias enquanto eu to dormindo. Depois vou percebendo alguns padrões, por exemplo: a conversa com o meu próprio inconsciente ou a relação do Estado com o inconsciente coletivo. Quando eu estava, como militante do Partido Comunista do Brasil em Curitiba e junto de muita gente, construindo o acampamento Lula Livre quando da prisão do barbudo, uma pergunta me assombrava: com o que sonha o Lula? Dessa pergunta, mais do que temática, surgiu a plaquete “O exercício do Estado” e vários outros poemas e trechos de prosa. São questões nas quais vou insistir muito ainda. Agora, minha pessoa-leitora ideal é a que tiver disposição para abrir meus livros e ler, é bem simples. O que vem na minha cabeça quando to escrevendo não é a leitora ideal, mas algumas pessoas próximas que também escrevem: ah, isso minha amiga Natasha Tinet vai curtir porque vai ver que veio daquela conversa sobre incêndio que a gente teve etc. Porque também são essas pessoas que mais me leem rs.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Gosto de mostrar quando acho que tenho uma primeira versão finalizada e mostro mesmo quando não tenho perspectiva de publicação porque se não fosse assim não mostraria quase nada rs. As primeiras pessoas a ler são um grupo de 4 ou 5 amizades próximas que também escrevem. Depois, quando os encontros da Membrana ainda estavam acontecendo presencialmente, eu mostrava pra galera. Com o livro “cidade menor”, que deu origem à plaquete publicada este ano (2021) pela editora Primata, eu levei cada poema numa pequena folha que a gente espalhou pelo chão da casa da Natasha e leu juntes em voz alta, pensando em ritmo e em ordem dos poemas dentro da publicação. Além dessas pessoas, a Sarah Valle, que é poeta e tradutora, é uma pessoa com quem eu tenho trocas importantes sobre o que eu escrevo.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
É uma boa pergunta, porque é comum perguntarem “Quando você começou a escrever?” e isso acho meio impossível de responder com alguma precisão. Mas sei melhor quando decidi me dedicar à escrita, foi quando comecei a pensar em estratégias para me profissionalizar e até ganhar algum dinheiro/oportunidade de trabalho com isso, mesmo que de maneira indireta por exemplo fortalecendo meu currículo como agente cultural e tradutora. Isso aconteceu de maneira mais consciente em 2015 quando comecei a editar o blog totem & pagu, firrrma de poesia, como uma maneira de estar em contato com o que o pessoal está produzindo agora, costurando relações e me impulsionando a escrever com mais regularidade. Então são seis anos nessa da dedicação, o que é pouco tempo, tenho bastante coisa para fazer ainda. E o que eu gostaria de ter ouvido, e também não posso esquecer, está disponível no ensaio “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo” da Gloria Anzaldúa com tradução para o português brasileiro de Édna de Marco publicada na Ref (Revista de Estudos Feministas) em 2000: eu preciso me convencer todos os dias que o que eu tenho para escrever não é um monte de merda. Chorei em público, de fungar o nariz, quando reli essa carta durante nosso curso de Crítica Literária Feminista, que eu e minha amiga tradutora Emanuela Siqueira oferecemos na UFPR em 2018.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Talvez minhas dificuldades sejam mais resultado do meu estilo do que causadas pela busca de estilo rs. Considerando estilo, no singular, como “modos de fazer” no plural. Acho que desde o começo meus modos de fazer, feliz ou infelizmente, tem uma cara própria. Mas pensando agora talvez isso às vezes tenha me deixado preguiçosa, me contentando só com algo com cara de “meu”. Às vezes o que é meu não interessa nem a mim quanto mais às outras pessoas rs. Pensando que a palavra estilo vem de vara para escrever na argila, estou profundamente comprometida a diversificar e fortalecer minha vara, minha argila, deixando às vezes outra mão desconhecida fazer a vez da guia. Sobre influências, eu não separo as literárias das não literárias, no momento a enfermeira do postinho tem tanta influência na minha escrita, quanto os relatos que estou há anos lendo do neurologista Oliver Sacks, quanto outras autoras que eu li e nem me lembro mais. Sempre quando me pedem uma relação de nomes de escritoras minha cabeça dá um bug, mas a Clarice de Onde Estivestes de Noite e o conto “Teleco, o coelhinho” do Murilo Rubião despontam imediatamente. São impressões de leitura que levantam a mão no meio do rio de almas que leva até o Hades (essa imagem não porque eu seja leitora boa dos clássicos gregos, mas porque a personagem Megan, que esteve no inferno por amor, do filme da Disney “Hércules” me marcou quando eu era criança).
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Eu recomendo muita coisa, uma salada de fruta (fresca e diversa), no meu podcast Raiz Lendo Coisas. Acho que “Jazz” da Toni Morrison é um desses acontecimentos grandiosos, mostra onde se pode chegar com a tal da dedicação. Mas campeão de recomendações mesmo é “Mundo Barbie” (Editora Jabuticaba, 2021), tradução minha em parceria com Emanuela Siqueira e Miriam Adelman, do livro de poemas da estadunidense Denise Duhamel, são mais de 40 poemas sobre a Barbie como traficante de drogas, fanática religiosa, na terapia etc etc. É um suco gástrico divertido.