Júlia Grilo é romancista, ensaísta e cronista, autora de Cães (Penalux, 2020).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Às vezes eu sou óbvia que dói: não gosto de acordar, não sei acordar, mas também não sei dormir. Geralmente acordo desesperada, com a urgência de quem acabou de chegar no mundo. E não digo isso com orgulho, é até meio constrangedor; tento fugir da representação do artista desajustado mas ela acaba sempre me puxando de volta. Na adolescência, eu não conseguia passar uma madrugada sequer dormindo, e foi nesse frenesi que concluí meu primeiro livro. Matava muita aula, claro – meus hábitos noturnos já me causaram bastante sofrimento, porque eu via o universo ocorrendo e eu ficando de fora dele. Me sentia péssima, péssima mesmo, incapaz de estar no mundo, e se não acolhi com orgulho o título de notívaga foi por medo de me levar muito a sério, de envaidecer. A justificativa biológica de que a disposição para a noite se trata de uma inclinação orgânica me aliviou um pouco – as ciências naturais têm esse respaldo, não é? Hoje, na transição para a adultez, tenho estado mais comprometida com a vida diurna, porque o mundo para de funcionar às 18h e Deus ajuda quem cedo madruga. Acordo, alongo, tomo banho, como e vou para a faculdade. Não que isso interfira em alguma coisa, porque em tempos de escrita eu vou escrevendo em tudo quanto é canto, sob qualquer circunstância.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que escrevo melhor quando estou escrevendo, e fico escrevendo até não escrever mais. O negócio de ter prazos me dá um medo danado, mas a disciplina para mim é fundamental. Não me preparo. Não sei dizer bem o que é “inspiração”, acho que tem a ver com sopro, o sopro das musas. Não gosto de estar à mercê delas. A inspiração que funciona comigo é a que tem sentido de choque, de assombro, que me deixa febril. O cinema cumpre bem esse papel para mim, há filmes que me deixam eletrizada, que me implicam, e eu fico doida para entrar na brincadeira. Gosto da ideia de ter domínio sobre o texto, ainda que a dimensão de produção para o consumo me assuste bastante (caramba, tudo me assusta). Detesto o calor da tarde, mas quando estou dentro de um projeto – quase obcecada, quase em transe – não me atenho à passagem do tempo. Eu adoro as coisas que explodem de madrugada. Tem dias que depois da meia-noite eu fico com vontade de, sei lá, construir um império.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou uma escritora sazonal; no resto do tempo, apenas leio. Essa é uma coisa horrível de dizer em voz alta? Fico escrevendo cartas, rabiscando crônicas, ensaiando um pouco, mas nada me implica tanto quanto a feitura de um livro, um projeto extenso, que é o que mais gosto de escrever. Há algo na frequência e na constância da prática que qualificam o ofício, eu acredito, mas dessa maneira tem funcionado muito bem para mim. Quer dizer, tem funcionado mais ou menos: a leitura passou a me aborrecer um pouco na medida em que eu fui avançando no íntimo das formas, entrando no coração da besta. Estou com essa mania horrível de fazer ciência, de querer explicar as coisas, destrinchá-las em partes. Isso é também resquício da minha presença acadêmica, que eu ainda não decidi onde colocar, e nos últimos meses a minha atitude tem sido a de exploradora, pesquisadora, entendedora. Trata-se de uma disposição meio gananciosa, acho, e não à toa o racionalismo clássico é atribuído como uma das bases da colonização. Sinto falta do contato ingênuo com o texto, às vezes.
Quando estou trabalhando num livro, costumo escrever todos os dias, muitas horas por dia, atendendo uma meta diária de páginas. Adoro ser absorvida pelo texto, a vida fica tão bonita. Será que um dia vou deixar de gostar de escrever? (Por enquanto eu ainda gosto e me divirto bastante). Tem uma coisa que eu digo reclamando e ninguém leva a sério: eu escrevo rápido demais. Tive que me segurar, no processo de elaboração de Cães, para não fazer tudo de uma vez. Acho muito chique (muito adulto!) quem passa dois ou três anos trabalhando no mesmo livro. Agora, pensando num próximo romance, fantasiei que passaria um ano inteiro escrevendo-o, só para bater um recorde e deixar o texto descansar, ir respirando. Não sei se essa rapidez é um ritmo que eu devo acolher ou se devo ajustar, se é coisa minha, das minhas pulsões, ou só a pressa da jovialidade. Também não sei onde o pensamento, a fala e a escrita se distinguem, mas desde que eu esteja sempre pensando, estarei sempre escrevendo.
(Infelizmente, estou sempre pensando).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
…infelizmente estou sempre pensando. Assim, a escrita, para mim, aparece como um receptáculo, um lugarzinho onde os sedimentos podem repousar quando escoados. Aí eu me vingo da vida: tudo se torna aproveitável, tudo é significável, tudo tem um lugar para caber. Isso me alegra bastante, sobretudo porque não sei o que fazer com a maioria das coisas que aprendo na faculdade – e também porque eu estou sempre pensando, claro. Não sei se é muito comerciário da minha parte, ou muito teleológico, mas as coisas inúteis me desesperam. Eu fico pensando: “E agora, o que eu faço com isso? Para onde vai isso?”, na expectativa idiota de que tudo deve caber em algum lugar. Por essa razão, não acho difícil começar a escrever, exceto quando não estou a fim.
Quando começo um livro, é porque já tenho em vista seu universo temático, suas camadas, seus sistemas. Isso tudo aparece antes, enquanto sou leitora, mas quando sou escritora a vida passa a existir por mim, em meu favor, e eu me coloco como um canal entre o texto e o mundo. É como se eu passasse a enxergar o universo com as lentes daquela história, que é antes disso uma questão, e tudo vai escoando para a narrativa. A forma, porém, até então tem sido uma aventura. Tenho vontade de um dia planejar toda a estrutura da narrativa antes de começar a escrevê-la, acho que é uma experimentação interessantíssima.
Ah, lembrei de uma coisa engraçada para contar: quando eu era mais jovem, de repente formulava orações inteiras na cabeça, durante a vigília, e conseguia recordá-las de cor na manhã seguinte. Acho que perdi um pouco dessa habilidade com o tempo, mas vários problemas narrativos já foram resolvidos durante o sonho, quando eu entrava numa espécie de diálogo onírico comigo mesma. Meu pai, que é kardecista, adora essas histórias (risos).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É muito ruim escrever algo que não me satisfaz. Quando estava escrevendo Cães, tive que fazer uma transição da voz narrativa que foi bem difícil. Nesse período, sofri como uma diva: mandava mensagem para os amigos dizendo que ia largar tudo, desistir de tudo, que não tinha nascido para escrever. Cheguei a pensar – de verdade – que o romance não era a minha praia e que era melhor eu me bastar com os ensaios. Há momentos em que tudo o que eu preciso fazer é me ignorar, mas a tática de enviar um enxerto só para ser elogiada por um amigo também é muito boa (risos). Os projetos longos são mais divertidos porque os dias vão passando para se encaixar neles. Há mais tempo para a vida acontecer. Acho que ficaria mais ansiosa se não pudesse escolher o que quero publicar, se tivesse que ficar escrevendo qualquer coisa para não passar batida na festinha. Como passei muito tempo escrevendo para ninguém ler, aprendi a ser discreta, até um pouco tímida, com o que escrevo. Não acho a publicação necessária; nem tudo precisa vir à público. A existência do texto basta, e isso me alivia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Adoro revisar! A revisão é a parte mais divertida, e mais senhorial também. É quando eu sinto que sou a pessoa mais apropriada do mundo para a realização daquela tarefa, aquela tarefa que é minha, só minha e de mais ninguém. Nunca passou pela minha cabeça cursar Medicina, mas o poder da revisão é quase um poder cirúrgico, meio cientista maluco, e com uma pinça e um bisturi eu vou entrando nos tecidos. Gosto de deixar o texto descansar um pouco antes de retomá-lo; é muito bom quando eu consigo me ler com olhos de leitora. Acho que revisei Cães sozinha umas cinco vezes antes de mandar o original para o preparador. Depois da preparação eu revisei algumas outras várias vezes, ciente de que eu não poderia exagerar muito no processo. Já havia recusado a publicação de dois livros, então finalizei Cães comprometida a publicá-lo apesar de mim. Não sei se um dia conseguirei estar absolutamente satisfeita com o que eu escrevo. Para sair um pouco de mim mesma, costumo mostrar o que escrevo para amigos cujas visões de mundo me interessam, ainda que sejam visões diferentes entre si. Agora, nos próximos trabalhos, fico com vontade de contratar alguém só para falar mal do texto, antecipar as críticas. Uma vontade meio masoquista.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Até a pandemia de Covid-19 (não aguento mais repetir essas três palavras), eu preferia a digitação, porque ela acompanhava melhor a velocidade do pensamento. Nessas ocasiões, eu não sou tão óbvia, porque a imagem romântica do escritor que datilografa ou manuscreve em caderninhos bonitinhos nunca me convenceu. Eu gostava das telas, da rapidez, mas a obrigação digital que a pandemia impõe me fez cansar dos computadores. Deixou de ser tão bom ficar digitando, com aquela luz violenta nos olhos. Me tornei míope nos últimos meses, inclusive, e o uso de óculos pela primeira vez passou a ser obrigatório. Será que estou ficando velha? Agora, tenho preferido escrever a meu próprio punho e só depois passar o texto para o computador, geralmente para o Google Docs, que eu aprendi a usar. Eu achava antes o Google Docs uma plataforma esquisita, cheia de botões, muito aberta. No Word eu ficava isolada, quieta no meu cantinho, mas com o ensino remoto eu vi que tudo tem que estar aberto mesmo, precisa ser compartilhável. Blocos de notas no celular ainda são um recurso essencial para a minha escrita, porque me permitem escrever em qualquer lugar. Escolho a dedo o app – agora estou usando um que é muito fofo, que deixa as notas coloridinhas. Às vezes eu me perco em mim mesma porque anoto umas palavras-chave ou argumentos centrais avulsos e depois fico pensando: “Que diabo é isso que eu escrevi?”. Mas rearticular as ideias acaba sendo um desafio divertido, também, que me impõe certo desapego, certa espontaneidade: o que quer que eu tenha pensado, agora eu tenho que pensar de novo, de outra forma. Para a revisão, trocar de telas é uma tática boa (escrever no notebook e editar no smartphone e vice-versa), porque o texto fica parecendo que não é o meu, então eu consigo acessá-lo por outra perspectiva.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minha criatividade é pura paranóia. Tudo me afeta, tudo me assombra, tudo me intervém – o que eu ainda não descobri é se isso é caso de médico, se eu deveria ser curada, consertada. Passei muito tempo constrangida pelo que considerava um defeito. E, quando eu digo muito tempo, é muito tempo mesmo: só vim a questionar esse delírio médico há uma ou duas semanas. Não vejo correlação entre genialidade e loucura, mas tenho medo de acreditar muito em mim e por isso nunca quis reivindicar o desajuste como uma marca do meu fazer artístico. Tinha medo de que achassem que eu gostava de mim, tinha medo de que me achassem metida. Mas talvez seja justamente a recusa do sofrimento o que me gere sofrimento, talvez eu não precise de um hospício, talvez eu possa ser assim, gostando muito de pensar, de ficar pensando, pensando em voz alta, pensando em papel. Uma vez eu li num livro de filosofia que o conhecimento surge do assombro.
Há no mundo tanto que eu não sei e tanto que eu não li que quando eu me dou conta fico abismada. Um dia ainda vou pagar um mico, vão me perguntar se eu li um desses livros importantes e eu vou dizer assim: “Não li, do que se trata?”. Houve uma vez que eu disse que gostava muito dos filmes de Godard com Anna Karina e um cara disse que isso era “baixo cinema”, que eu me sensibilizava com muito pouco. Primeiro eu fiquei triste, pensando que eu era burra, mas depois eu achei o máximo, é o máximo que eu me sensibilize com pouco, com nada. Tenho lido muita coisa que eu não gosto (detestei “Guerra e Paz”, mas não conto para ninguém), mas necessito. Nunca leio o que não gosto e nem necessito, acho que cada leitura tem um tempo quase místico para ocorrer. Não sei explicar isso, não sou mística, mas é o que é. Viva o baixo cinema!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu gosto de como o que eu escrevia ainda existe no que eu escrevo. Não tenho muito a dizer a quem fui; e, se eu pudesse me dizer, eu provavelmente não me daria ouvidos.
Talvez eu me falasse para ir aprendendo desde já estratégias para lidar com a indústria da arte. Posso estar sendo um pouco catastrófica porque acabei de assistir ao filme Perfect Blue (1998), mas me parece que as indústrias são capazes de perverter qualquer coisa. Quando eu era pré-adolescente e ouvia indie rock e desejava morar em Londres para tomar café no frio dos dias nublados, ser indie parecia muito glamouroso. Acho que estar em antítese é uma das premissas de tornar-se adolescente e assim a coisa de se contrapor às instituições hegemônicas parecia muito atraente. Mas a verdade é que para mim, tupiniquim, baiana de Amélia Rodrigues, Alex Turner e Julian Casablancas representavam o que há de mais hegemônico no mundo. “Indies pero no mucho”: eu me interessava mesmo é pelo contraste que formava a imagem daquelas figuras poderosíssimas navegando pelos porões, pelo submundo, como numa das câmaras do inferno dantesco. E a verdade é que o que havia de arte independente ao meu redor, verdadeiramente indie, verdadeiramente contra-hegemônico – como a arte do recôncavo, da periferia, das populações negras como um todo – me passavam despercebidas. O Brasil bolsonarista nos revelou que muita gente ainda tem gosto pela tradição. Eu acho que há pessoas que gostam mesmo é do poder (essa é uma coisa horrível de ser dita em voz alta, porque remonta a uma natureza humana sanguinária e individualista), e a publicação independente dificilmente tem fim em si mesma, mas é o preâmbulo de uma inserção mais estável na indústria cultural. E desde que Engels narrou a condição dos operários de Manchester no séc. XIX, a gente sabe que a vida dos trabalhadores das indústrias não é a das melhores, risos.
Eu me diria que ser uma autora publicada é muito divertido. Na infância, minha mãe planejava festas de aniversário que eram capazes de mobilizar a cidade inteira (todo mundo ficava esperando por um convite e eu achava isso o máximo). Nós costumávamos passar uma semana organizando os preparativos da festa – o que significava que a festa durava uma semana –, e eu acompanhava de perto a confecção dos cenários, do figurino, a produção dos salgadinhos e docinhos. Foi assim que eu descobri que a melhor parte da festa é esperar por ela, e desenvolvi um gosto pelos bastidores, pela produção. Um pouco mais velha, no ginásio, eu adorei liderar a gincana, adorava ver a coisa sendo feita, e os momentos por trás da coxia tornavam o espetáculo ainda mais fascinante. Agora, eu que sempre fui muito fã (não num sentido devocional, porque nunca soube lidar muito bem com a autoridade), que sempre gostei de admirar e contemplar os espetáculos que me atropelavam, estou aprendendo como é que funciona aquela parte que os meus artistas prediletos escondiam de mim. Me sinto um pouco enganada, confesso, e os fios soltos dos bastidores têm me deixado aflita. Diferentemente do meu aniversário, onde eu me abrigava sob os braços de minha mãe para coordenar uma equipe composta por um monte de gente, e diferentemente das gincanas do colegial, onde meus colegas davam voltas e mais voltas para não fazer feio na frente de nossos professores, agora eu estou sozinha. Eu sou, ao mesmo tempo, os bastidores e o espetáculo, o que me enche de ansiedade. A dubiedade desta condição, que me permite transitar entre a luz e a sombra, às vezes me deixa pensando que nada existe a não ser que seja inventado.
Por fim, eu me diria para não desistir do teatro, sem dúvidas. Quis tanto ser atriz que não consegui. Fico besta com os atores que não acham que o público é um touro a ser domado, que não é preciso conquistar a plateia pois ela está ali para acolher e apreciar. Estou aprendendo a lidar com o público, com a vida pública, e minha atitude é ainda um pouco pessimista. Não dá para ignorar o bolsonarismo: o que é que as grandes massas não são capazes de fazer, meu deus? A ação humana tem limites físicos, mas não morais – e a possibilidade de que qualquer um é capaz de fazer qualquer coisa me fascina bastante, principalmente dentro da orientação do comportamento de grupo. Tenho medo da admiração. Lembro das pessoas batendo na Marina Abramovic porque ela estava ali sentada. Lembro de Perfect Blue, do sadismo que há na adoração, da vontade de suspender só para derrubar depois. Eu vejo o público com desconfiança. Preciso voltar ao teatro; vou voltar ao teatro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero ler um livro que dê febre, que me deixe empapada de suor. Na escrita, eu quero apreender as imagens, porque os verbos quase sempre são insuficientes; quero escrever o que não se escreve. Estou escrevendo um romance sobre as guerras – todas elas.