Júlia Côrtes Rodrigues é professora, pesquisadora, tradutora, mestra em teoria literária pela Unicamp
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordar bem é importante para mim, mas não somente por causa do trabalho. É uma forma de tomar as rédeas do dia. Sou uma pessoa muito diurna, então tomar café e comer é essencial mesmo quando estou com uma rotina apertada. Se não tenho compromissos de manhã, sempre estudo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Essas horas de trabalho variam muito conforme os compromissos que tenho. Geralmente prefiro aproveitar a manhã ao máximo, mas por necessidade tenho me reconciliado também com as horas noturnas. Quanto aos rituais de preparação, gosto de experimentar exercícios e ferramentas novas, mas não chamaria de rituais. Escrevo quando tenho vontade, não deixo escapar insights, vou anotando coisas em vários cadernos pequenos e até no celular, onde estiver. Tento fazer com que a escrita atravesse o dia, não com que uma série de esforços culmine na escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não gosto da palavra “meta”. Eu a associo a um vocabulário do universo corporativo, a um tipo de exigência cujo objetivo é dividir pessoas entre as que estão abaixo e as que estão acima dela. É um esforço diário não me medir com padrões de produtividade. Escrevo alguma coisa todos os dias, embora nem sempre o resultado possa ser considerado um texto.
Hoje, às voltas com a escrita de uma tese de doutorado, adotei a referência de escrever uma página por dia, mas trata-se de um norte, não de uma imposição. Inclusive porque, na minha maneira de trabalhar, não faz sentido se obrigar a escrever uma cota a todo custo ou cruzar os braços depois que uma tarefa foi concluída. Se escrevo cinco, dez páginas, penso sobre como está o processo, o que tem me movido e me interessado. Se escrevo menos, penso em como estou, no que pode estar faltando ou me bloqueando. Como desenvolvo vários projetos ao mesmo tempo, analiso também que tipo de escrita me atrai mais, não somente a quantidade de texto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Aprendi (a duras penas) que a melhor estratégia é não esperar o acúmulo desse volume de “notas suficientes”. Nem, ao contrário, se impedir de voltar aos livros e fontes durante etapas mais densas de escrita. Pode ser difícil começar a escrever quando pensamos que é necessário ler todos os livros de uma bibliografia, por exemplo, antes de sentar para escrever um trabalho acadêmico. Eu intercalo meus fichamentos com anotações minhas, associações livres, pensamentos que precisam ser desenvolvidos. As proporções mudam bastante, mas leio e escrevo todo dia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que, em maior ou menor medida, todo mundo tem medo do fracasso. Sem minimizar de forma alguma defeitos e fragilidades que são muito meus, fico feliz em perceber que hoje lido melhor com medos e ansiedades do que há alguns anos. Considero a atividade acadêmica solitária e competitiva, o que dificulta falar abertamente sobre esses impasses. No entanto, estamos também testemunhando projetos coletivos, debates sobre adoecimento na universidade e iniciativas solidárias de muitos tipos. Inspirada por essas reflexões, comecei a falar abertamente sobre travas de escrita, problemas com prazos, inseguranças da autoria. O retorno foi bastante positivo: colegas, professores e amigos, em resposta, falaram sobre seus processos. De uma forma geral, entendo que lidar com bloqueios significa também aprender algo sobre si mesmo, aceitar a imperfeição, encarar fantasmas de frente.
No meu caso, preciso manter a saúde física, controlar o impulso de assumir tarefas demais e, sobretudo, vigiar a autoexigência. A ansiedade de trabalhar em projetos longos diminuiu quando passei a trabalhar com projetos menores, em particular os do blog, que segue um calendário fixo, mas com textos de menor fôlego. O trânsito pelos formatos é bastante enriquecedor em termos de formação, disciplina, experiência.
Eu diria, por fim, que evito de mil formas sucumbir à pressão de ser “produtiva”, pois ela tira de mim o prazer da leitura, da escrita e da tradução.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incontáveis vezes todo texto que escrevo. Na medida do possível, escrevo com antecedência para poder fazer intervalos médios entre uma leitura e outra. Mostrava meus trabalhos para amigos próximos buscando aprimoramento, mas também uma espécie de validação pouco saudável. Hoje tenho feito o esforço de mostrar textos para colegas da área que compartilham meus interesses, incluindo pessoas que sequer conheço pessoalmente, como forma de manter diálogos em aberto. Ampliar os horizontes de interlocução, sobretudo através do blog que cultivo, arejou muito minha vida profissional.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Acho cansativo demais fazer fichamentos e escrever textos acadêmicos à mão. Para isso, utilizo um computador. Faço um uso bastante instrumental da tecnologia, sei o quanto certas facilidades são fundamentais, mas não tenho um fascínio particular por elas. Tenho quase sempre um caderno comigo para anotar ideias que me ocorrem quando não tenho um computador, mas dou um jeito de passá-las para um documento rapidamente. Escrevo à mão apenas textos pessoais como diários, dedicatórias e bilhetes.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Seria maravilhoso saber de onde vêm as ideias. Eu possuo mil interesses e às vezes ideias preciosas surgem de pontes imprevistas. Já tive ideias frutíferas assistindo um filme, lendo um romance, ou mesmo em situações de lazer. Entendo que cultivar a criatividade significa também manter uma abertura para o novo. Tenho ideias quando estudo, diante dos meus fichamentos quadrados, mas também em momentos de felicidade e dispersão.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha relação com a escrita mudou profundamente. Já me cobrei muito por resultados sem desfrutar dos processos. Claro que colher frutos do trabalho é ótimo, é uma sensação muito boa reler um texto próprio do qual você se orgulha. Mas atualmente venho alimentando de forma incisiva uma espécie de empolgação pelas lacunas que preciso preencher, tanto nos textos e nas traduções em andamento quanto na minha formação, de forma mais ampla. Eu gosto muito, por exemplo, do momento em que encontro uma palavra desconhecida. Também tenho me animado diante das listas de autores e obras que preciso ler, ao invés de me frustrar diante do que ainda não sei, do que ainda falta. A criação do blog também foi essencial nesse sentido porque me obriga a escrever sobre poetas que não estão em minha pesquisa. Além disso, acho divertido. A tradução de poesia, mesmo com suas dificuldades, é uma atividade que desenvolvo com prazer (o que é bastante curioso, pois foi uma tarefa tradicionalmente associada à melancolia, considerada insatisfatória por natureza).
Se pudesse voltar, eu diria a mim mesma para não brigar com a página em branco e, ao invés, abrir um livro desejado, sair de casa sem rumo, visitar um lugar desconhecido. Diria algo sobre não ter medo de desacelerar e pedir ajuda. Diria que a escrita não pode ser inimiga de uma leitora tão apaixonada e que, até antes do que se imagina, a gente se encontra no próprio texto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Amo Patti Smith. Dela sempre quero ler mais, espero que ela esteja escrevendo nesse momento algo que ainda não existe para seus leitores. Quanto a um projeto meu, quero expandir o esforço que coloco no blog em outros formatos. Estou estudando possibilidades, tentando dar corpo a propostas coletivas. Em termos de escrita, há muitas ideias germinando, bastante incipientes. Um projeto futuro, que ainda está bem distante no horizonte, é uma introdução à poesia de língua inglesa para leitores brasileiros. Talvez essa escrita já até tenha começado sem que eu tenha percebido — acho que se existe vontade é porque alguma coisa já começou.