Jozias Benedicto é escritor e artista visual, autor de “Estranhas criaturas noturnas” (2013, finalista do Prêmio SESC de Literatura), “Como não aprender a nadar” (2016) e “Erotiscências & embustes” (2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em meus dias não sigo uma rotina rígida. Trabalhei anos em uma grande empresa, o tempo todo tolhido por regras, normas e procedimentos, e o maior prazer desta minha atual reencarnação é ser o único dono do meu tempo, para o bem e para o mal. No entanto, o padrão da maioria de minhas manhãs é este:
Em geral acordo cedo, porém pela manhã sou um meio zumbi e acabo concentrando nessa parte do dia as tarefas que não exigem tanto esforço de raciocínio – exercícios físicos, idas ao banco, ao supermercado, tentar por ordem em meu pequeno escritório, um dos quartos do apartamento onde moro, com janelas antirruído, ar condicionado sempre ligado, uma mesa bem ampla coberta de papeis e estantes abarrotadas de livros. Logo que acordo abro meu tablet e leio o jornal, dou uma circulada pelas redes sociais, mas até a tarde esqueci mais ou menos uns 90% das notícias que li, o que não é nenhuma perda significativa.
Pelo meio da manhã e já encharcado de café forte é que meu cérebro passa a funcionar bem, e é quando eu inicio minhas leituras e pesquisas, começo também a responder e-mails, preparar aulas e a resolver assuntos mais complicados. E a escrever.
Claro que há manhãs nas quais eu prefiro não fazer nada disso e tão somente pegar um livro do qual não consegui me afastar na madrugada anterior, ou trabalhar em textos que me vieram em sonhos durante a noite. Ou simplesmente passear pela orla ou pelas ruas movimentadas, sentar em uma mesa na calçada e observar as pessoas, roubando delas pedaços de conversas, inventando enredos para estes personagens que ainda não sabem que vão sair da calçada para as páginas de um texto de ficção.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou muito noturno, começo a trabalhar melhor em escrita pelo meio da tarde, e meu rendimento vai aumentando à medida em que as horas passam, chegando ao máximo entre 21h e meia-noite. Este é o horário em que, em geral, fecho o computador – quando não continuo lendo ou escrevendo até 1h ou 2h da madrugada, adiando a hora de dormir e com isso acordando tarde no dia seguinte.
Mas mesmo quando não estou totalmente dedicado à escrita, o tempo todo estou pensando e fazendo anotações. Ideias e frases (às vezes parágrafos inteiros) vêm à mente nas horas e locais mais impróprios e sei que preciso registrá-las ou elas vão se perder, não dá para confiar apenas na memória.
Não tenho exatamente um ritual complicado de preparação para a escrita: me fecho em meu escritório, abro o computador, coloco uma música, desligo o celular, revejo minhas anotações e a escrita começa a fluir, só isso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Estou sempre registrando ideias, e todos os dias procuro trabalhar pelo menos um pouco em escrita, nem que seja organizar as anotações, rever ou burilar textos, relembrar projetos esquecidos. Tenho projetos que meio que me obrigam a isso, a uma rotina diária de trabalho. Um deles é o “999 dias/999 desenhos/999 versos” – me propus a, cada dia, durante 999 dias, escrever um verso (um decassílabo) e fazer um desenho – hoje estou na casa dos 890 dias. Mas há muitos dias em que nem este compromisso funciona, escrevo a muito custo o verso do dia e olhe lá; em outros dias, a obrigação funciona como um aquecimento, como o introito para um bom período voltado a escrever.
Eu funciono mais em períodos concentrados, o esquema que chamo de “mutirão”. Nestes casos, me coloco metas; fico, por exemplo, trabalhando uma semana direto, noite e dia, em um projeto (em geral premido por um prazo), chego a 10, 12 horas de trabalho a cada dia, e vou acompanhando o quanto avancei na direção da meta. É cansativo, eu deixo de lado todas as minhas outras responsabilidades, tudo em volta de mim fica uma bagunça e eu sempre me culpo por não saber organizar melhor meu tempo, porém no fundo sei que, para mim, a adrenalina do trabalho sob pressão é um afrodisíaco.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha tendência é nunca saber quando as anotações ou as pesquisas são suficientes. Sou obsessivo, e se não me policiar, os assuntos das pesquisas vão se abrindo em outros e outros assuntos e vou acabar escrevendo a enciclopédia britânica. Aos poucos, vou aprendendo a dosar melhor esta minha característica, a saber a hora de parar de abrir desvios e de começar a restringir o foco; e este movimento da pesquisa para a escrita está se tornando mais natural, intuitivo: eu simplesmente “sinto” que a escrita brota e ela é muito mais viva e interessante que as pesquisas enciclopédicas, e nela me concentro.
São os momentos em que a escrita me invade, eu penso o tempo todo no que estou escrevendo, em detalhes que caracterizem melhor os personagens, em enredos, situações e diálogos, em frases a corrigir, a completar. Nesta hora as pesquisas e anotações mudam, passam a ser direcionadas: para esclarecer pontos obscuros, para resolver anacronismos, inconsistências, não mais para abrir assuntos novos.
Releio agora minhas respostas a esta entrevista, e vejo que descrevo meu processo usando palavras como “fluir”, “a escrita brota”, “me invade” – o que pode dar a impressão de que meu processo de criação é um processo tranquilo, suave, natural, o que não é exatamente verdade. Ao mesmo tempo que eu me sinto um “cavalo”, como alguém que recebe uma entidade e passa a funcionar dirigido por aquela força que o domina, eu também tenho o tempo todo a sensação oposta, a de que “arranco” a fórceps a escrita de dentro de mim, em um processo doloroso, feito de engasgos, de palavras que me escapam, de dúvidas, de “brancos”, de fugas, de esquecimentos, de desânimo. Que também é extremamente gratificante – depois que a escrita engrena e eu leio o que escrevi como se aquilo tivesse sido escrito por outra pessoa, como se aquele texto já estivesse no mundo desde sempre e eu não o “inventei”, apenas o “descobri”, e ele vai continuar no mundo mesmo depois que eu me for, esperando apenas um leitor que o coloque de novo vivo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Os bloqueios que levam as pessoas a adiar indefinidamente suas tarefas são especialmente perversos em relação à escrita. Inúmeros escritores abordaram esta experiência, e não sou exceção: muitas e muitas vezes eu passo um tempo enorme fazendo coisas sem importância nenhuma ou simplesmente evitando começar a escrever, com medo, achando que vai ser difícil, impossível, uma tarefa acima de minhas forças. O mundo tem tanta coisa mais legal para fazer que escrever, que estudar ou que fazer ginástica… e nestas horas estes estímulos exteriores, estas tantas coisas “mais legais”, têm sua voz amplificada como o canto de milhares de sereias em cada esquina, em cada estante, em cada evento “imperdível”.
Nestes momentos o que eu vejo é que aquele texto pendente, em suspenso – principalmente se associado a um prazo, uma cobrança, até quando sou eu mesmo quem me cobro – começa a me enlouquecer, a me perturbar em meu sono, e eu sou como que obrigado a começar a escrever para não ficar doente, e entro no ritmo do trabalho sob pressão – e aí eu não entendo mais onde estava aquela enorme dificuldade que antes eu achava intransponível. É um processo muito neurótico, obsessivo, irritante, mas, paradoxalmente, bastante prazeroso, o de vencer a procrastinação – embora eu saiba que ela não se deixa derrotar, está à minha espera na próxima esquina.
Sobre medo de não corresponder às expectativas: eu não tenho isso. Talvez pela idade – que significa a consciência inescapável do menos tempo à frente – as expectativas das outras pessoas não me afetam; é claro que todo escritor quer ser lido e reconhecido, mas para mim o importante mesmo, no final das contas, é escrever. Já fui jovem e dependente de um comentário positivo, os comentários negativos me arrasavam; depois passei a buscar comentários, não importa se positivos ou negativos, o que me arrasava era a indiferença. Acho que os muitos anos de oficina de escrita, ouvindo toda a sorte de comentários, diminuíram esta minha ansiedade. Hoje sou muito realista em relação a isto, se você escreve ou faz alguma atividade artística esperando reconhecimento e riqueza, está no caminho certo para a frustração. O máximo que nós, artistas, podemos fazer é jogar as garrafas ao mar com bilhetes dentro – não adianta depois ficar nervoso na praia sonhando com o telegrama que não virá.
Outro aspecto perverso do trabalho artístico é que nada é garantido. Diferentemente de trabalhos burocráticos nos quais você tem um encarreiramento, e sabe que se fizer as coisas “direitinho” aquela promoção vai vir com certeza no Natal – o artista, todo artista, sofre com a síndrome do “próximo livro”, da “manhã depois da estreia”, da “próxima exposição” – um sucesso não significa que você “subiu de patamar”; pelo contrário, ele te apresenta novos e maiores desafios: fazer melhor, não se repetir, surpreender os que acham que conseguiram te encaixar em um padrão – e atrás de um sucesso estão sempre escondidos milhares de fantasminhas de possíveis fracassos a te espreitar.
Sobre trabalho em projetos longos, eu tenho projetos que vou desenvolvendo e que acabam durando muito tempo e ficando de certa maneira “velhos” antes de amadurecer. Neste caso eu procuro não ficar ansioso para concluí-los, tento de vez em quando deixá-los “dormir” para depois retomá-los, e vejo que isso é positivo, alguns deles voltam com nova perspectiva e muitas travas se resolvem por si sós; já outros continuam hibernando, talvez no aguardo de outra primavera.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar é uma tarefa infinita, sempre tenho que me obrigar a dar um basta e congelar uma versão. Mas mesmo depois de fechado e publicado um texto, volta e meia registro uma ou outra mudança “para as futuras edições”. Há os erros que se escondem nos textos tantas vezes revisados para aparecer de surpresa, tocando escandalosamente suas trombetas, naquela revisão que você achava que já nem precisava mais fazer. E há também as melhorias propriamente ditas, aquelas palavras repetidas em excesso, aquelas rimas ocultas, as incongruências, as quebras de ritmo, as deficiências na estrutura – é o ajuste fino, que só vai aparecer quando você finalmente “ouve” a voz do seu texto fora de você. E haja outra revisão, e outra e mais outra.
Tenho alguns poucos leitores prévios. Minha formação se deu em oficinas, e nesta época os textos eram lidos e discutidos exaustivamente com o grupo, depois das oficinas é que me tornei um lobo solitário. Minha experiência como leitor e editor de textos alheios me ajuda no trabalho de revisar e reescrever, mas com certeza bons leitores prévios, quando possível, agregam muito, principalmente ao fornecer novas visões sobre os textos nos quais você, mergulhado, dificilmente consegue se distanciar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Embora eu tenha trabalhado grande parte de minha vida com Tecnologia da Informação, não sou um dependente da alta tecnologia, pelo contrário: sou um usuário apenas médio de tecnologias sempre beirando a obsolescência. Escrevo no computador, desde os primeiros rascunhos; só eventualmente tomo notas em papel. Quando estou longe do meu local de trabalho prefiro salvar estas notas escrevendo no celular – mando e-mails para mim mesmo – tenho medo dos papeizinhos que vão parar na máquina de lavar dentro do bolso de uma bermuda suja – e lá morre afogado um poema ou um personagem.
Em paralelo, mantenho meus cadernos, que uso para estruturar melhor os projetos. Em um determinado ponto do trabalho o caderno entra em ação como suporte para os diagramas dos “pedaços” do projeto (os contos ou as poesias de um livro, os capítulos de um romance), que me trazem a visão geral que fica mais difícil de ter no computador, pois uso o Word, e acabo ficando com uma “tripa” de texto na qual a visão geral facilmente se perde.
Já tentei usar um aplicativo para apoio à escrita, o Scrivener, principalmente por esta facilidade da visão de conjunto, mas acabei desistindo, pois se ele ajuda nesta visão geral, o Word (pelo menos para mim) é bem melhor para a edição e formatação. Ainda uso o Scrivener, mas somente como repositório dos trabalhos prontos, das versões, e nisso ele possibilita que eu me organize melhor do que ter os textos em arquivos dispersos em dezenas e dezenas de pastas no computador e na nuvem, com redundâncias e versões conflitantes.
Acho que hoje a tecnologia imprescindível para que trabalha com a escrita é a internet – dirimindo as inúmeras dúvidas de português, disponibilizando em tempo real bons dicionários de sinônimos, de rimas, a Wikipédia e outras fontes para pesquisas. Mas continuo tradicional: para mim a tecnologia que me ajuda mais em minha escrita é um livro; o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, do Francisco Ferreira Azevedo, sempre ao meu lado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou bom ouvinte, não só de histórias que me contam, me confidenciam, mas sou também daqueles que ouvem fragmentos de conversas no metrô, no restaurante, no elevador, em filas. Muitas vezes tenho até que me proteger para não acabar afogado em tantas conversas, e passo alguns dias andando o tempo todo com fones de ouvido até me desintoxicar. A maioria das conversas é bobagem, tagarelice quase sempre preconceituosa, mas garimpando bem aparecem ideias preciosas.
Leio muito, tenho sempre uma pilha de leitura enorme que vou devorando sem nunca conseguir reduzir. A ficção para mim é uma fonte inesgotável de ficção.
Vejo muitos filmes (dificilmente vou ao cinema, prefiro baixar e ver no computador, assim vou regulando de acordo com meu tempo – e também prefiro os clássicos, faço “degustações verticais”: maratona de “tudo” de um determinado cineasta, de um ator ou atriz, de uma época ou um movimento, de um tema etc.). Já fui de ver séries, mas hoje quase não vejo mais, são interessantes, mas as estruturas e personagens são muito repetitivas, é bom ver para matar o tempo, mas como alimento para a escrita o custo/benefício é baixo.
Outra fonte muito fértil de ideias para mim é a do sonhar. Muitas noites tenho sonhos extremamente vivos, coloridos, com personagens e situações marcantes que é só sentar e escrever; outras noites acordo com sensações fortes, palavras soltas, pedaços de poemas – e vale fazer o que todos os escritores que usam sonhos fazem: escrever tão logo acorde, antes que a estranheza se dissipe com a rotina diária.
E disso tudo as ideias vão brotando, às vezes de uma frase, de um personagem, de uma situação, se combinando, adormecendo em minha mente ou em anotações para depois ressurgirem prontas para assumir seu lugar nos textos que escrevo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Uma coisa que mudou é o rigor nas revisões que faço. Hoje sou muito mais obsessivo com erros, repetições desnecessárias, inconsistências. Sei que revisar é eterno, e tenho que me policiar para parar, mas este rigor, mesmo quando é exagerado, acabo vendo como positivo. Também me sinto mais “capaz”, no sentido de me propor metas e cumpri-las. Não necessariamente que eu “seja” mais capaz, eu me sinto como tal e isso me dá mais segurança.
Ao mesmo tempo, uma grande mudança é a consciência sempre presente de que tenho menos tempo para completar tudo o que gostaria de fazer, e que tenho que ser mais objetivo para conseguir realizar, ir mais direto ao ponto, me dedicar mais, vencer os desperdiçadores de tempo e a procrastinação. Uma certa canseira de como os dias são curtos, como seria preciso dias de pelo menos umas cinquenta horas para conseguir fazer uma pequena parte de tudo o que é preciso!
Não acho que se eu voltasse aos meus primeiros textos eu mudaria muito, no geral; apenas faria revisões mais apuradas que mudariam detalhes, mas não chego a me arrepender de meus escritos mais antigos. Ou isso é devido ao incêndio que tive em meu apartamento em 2015 e que destruiu meus sonetos de adolescência e outros escritos muito antigos – talvez o que tenha resistido à prova do fogo já tenha conquistado o direito a permanecer vivo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos “na fila”, todos eles já andados porém com muita coisa a trabalhar. Alguns são fragmentos, outros pouco mais que roteiros, mas todos os meus projetos estão pelo menos “começados”. O que eu gostaria de atacar mas vou postergando é um livro de ensaios, que parte da dissertação que escrevi em minha pós-graduação (“Um incêndio com Borges e Clarice”) mas na verdade é um “falso” livro de ensaios, pois os “ensaios” vão se mesclar com ficção ou autoficção.
No final do meu livro ainda inédito “Um livro quase vermelho”(atenção, aí vem spoiler!) conto de um personagem que passa muito tempo procurando um livro que perdeu em um voo noturno; e enfim vai encontrá-lo em uma livraria fechada na cidade onde ele foi criança; a leitura deste livro não apenas traz memórias perdidas – como uma madeleine – mas, mais forte, o faz encontrar uma vida perdida. O livro que eu gostaria de ler é esse, que me trouxesse a um tempo perdido e me desse a oportunidade de vislumbrar esse eterno retorno.