José Santana Filho é escritor, autor de Flor de Algodão.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
No que se refere à escrita não costumo ter uma organização formal, a princípio. A não ser que esteja com um projeto em andamento. Organizo antes a semana do médico. O escritor permeia todo o cotidiano, mas não o mantenho à rédea curta, embora com frequência espere dele alguma formalidade. É quando o sento à frente do computador e sugiro que dê continuidade ao trabalho. Nem que seja para mudar uma vírgula de lugar. O exercício da escrita, como em qualquer outra atividade, é chave do bom resultado final. No momento estou envolvido com dois projetos despretensiosos, um deles bem antigo, que parece agora deslanchar. Se chama Aquário, e tem contribuído pros meus cabelos brancos. O outro é uma novela contemporânea: Errática, que se passa entre Belém e o Rio de Janeiro. E, apesar de fazer um ano do lançamento, Antônia ainda é capaz de me mobilizar; não é incomum que eu volte àquela gente lá, provocado por algum estímulo externo, alguma lembrança súbita, o comentário de um novo leitor.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O único projeto para o qual elaborei algum esboço é exatamente este que se arrasta há anos. Meus três romances publicados se escreveram à revelia de qualquer planejamento inicial. Evidente que alguma ideia sempre esteve presente, cintilante, mas apenas a escrita determina onde ela vai entrar. N’A casa das marionetes fui surpreendido pela cena final. Levei algum tempo pra perceber que a história chegara ao fim. Saí do computador e caminhei meio atônito pela casa. Só depois fomos nos pacificando: eu e a narrativa. As pessoas dos livros têm alma, trajetória, mas a história estava concluída. O resto seria por conta do leitor, para quem passei as cordas das marionetes depois do ponto final.
Quanto às frases, não tenho dúvida: as primeiras são mais fáceis, porque emergenciais, estão na ponta dos dedos doidas pra escapar. Os primeiros parágrafos são como uma comporta que arrebentou.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Não sigo uma rotina, mas me coloco disponível o tempo todo. Ainda que entremeando com as atividades profissionais e domésticas. Preciso de silêncio, mas não de um ambiente em particular. Nos últimos tempos tenho gostado de escrever no quarto, a mesa de frente pra uma grande janela aberta. Sei de autores que dizem se dispersar com horizontes, preferem algo mais circunscrito, não é o meu caso. A circunscrição é interna e se beneficia da ventilação.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
A trava no decurso do trajeto é inevitável, e, se prolongada, desgastante. Costumo me afastar do material (não necessariamente da história) por algum tempo, esperando que ela volte a adquirir algum frescor. Às vezes peço para alguém ler, na expectativa de que, ao discutirmos depois, surjam novas alternativas. Se não tenho compromissos ligados à escrita, não me cobro tempo, resultado a curto prazo, tentando evitar que aquilo adquira um peso desnecessário.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Não destacaria algum. O rio que corre estrelas, A casa das marionetes e Flor de algodão têm algo de pessoal, estão ali vivências que experimentei, conheço a ambientação, a comida, o modo de falar, o que lhes confere um percurso próprio, às vezes prazeroso, outras melancólico, sentimental, mas escritos com ímpeto. Antônia me exigiu uma investigação interna, em especial a relação com a mãe, ambivalente, muito diferente da minha própria, mas com intensidade parecida e algumas arestas que resolvi aproveitar na história. Não diria orgulho, mas se acontece de reler trechos dos livros e admitir que aqui e ali realizei o que pretendia, experimento uma sensação confortável e estimulante.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Minhas histórias costumam se originar de uma cena aleatória, a qual passarei a investigar e a esparramá-la para ver do que é contida. Como se partisse de um close que fosse se abrindo até alcançar uma grande angular sobre o microcosmo inicial. Assim, vou variando as tomadas de câmara à medida que preciso realçar uma situação, a cena, ou o mundo interno daquelas pessoas, da pele pra dentro, como gosto de dizer. Em Flor de algodão havia o pouso forçado do engenheiro na praça central da cidade, porém eu não sabia o que detonou aquilo, nem exatamente quem ele era, ou quem iria encontrar por lá. Tinha alguma ideia, a intenção de pelo menos duas personagens, o engenheiro e Hortência na janela, mas a cidade e os demais moradores foram se revelando na escrita. Com A casa das marionetes também. Um homem por volta dos 70 anos assistia a um programa na televisão de seu apartamento em Madri. Reconheceu a casa dos avós no interior do Brasil, onde passava as férias da infância. Precisei escrever para descobrir o motivo da reportagem e o que ele havia vivido naquela casa. Antônia começa com uma homenagem à própria, destacada cidadã de uma cidade do interior paulista. Antônia está ligada a trabalhos assistenciais, casada com um juiz de direito íntegro, em vias de se tornar desembargador. Eu já sabia quem ela era, sua verdadeira identidade, mas desconhecia o percurso para chegar àquela situação inicial. Gosto de criar ‘problemas’ a ser resolvidos com a escrita. Como se, ao passar por um longo corredor, fosse abrindo janelas aleatoriamente, às quais voltar para ver a que dão acesso. Algumas descortinam um universo inteiro. Outras estão desabitadas, o que me faz simplesmente trancá-las, esquecer, não pertencem àquela história. Vários leitores têm se referido a uma pegada imagética nos meus romances, algo de cinema, em especial ao Antônia. É engraçado, porque, apesar do meu apreço pelo texto em si, não é infrequente eu me sentir escrevendo com uma câmera na mão, girando um caleidoscópio.
Todos temos um leitor ideal, mas não estou pensando nele ao escrever. Costumo reconhecê-lo depois, se houver a oportunidade. O dito leitor ideal proporciona um conforto danado ao escritor, justifica a escrita, a melhor companhia!
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Quando a história já se mantém em pé, ainda que tropece. Mostro para uns poucos amigos que têm experiências distintas como leitores. Sempre pedindo que eles se sintam à vontade pra fazer observações, e mesmo palpitar, sugerir cortes, acréscimos, uma vez que também deixo claro que a narrativa vai se impor a despeito disso. Aqui, se não houver sinceridade por parte do leitor e a permissividade do escritor, não dá jogo, perde-se a oportunidade de aprimorar o material. Uma boa leitura não tem preço, tenho ótimos leitores nesta fase.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Foi se dando aos poucos. Não houve um momento em que passei a me dedicar. Sempre escrevi, ainda que não cogitasse publicar, a minha vida se desenvolveu inicialmente fora do ambiente literário. Levei tempo para perceber que eu tinha na gaveta material para um livro escrito durante anos: O rio que corre estrelas, memorialista, o meu primeiro. Desde então mantenho um ritmo mais ou menos regular de escrita. Nem tudo o que escrevo visa publicação ou integra algum projeto maior. A verdade é que leio e escrevo desde sempre.
Acho que não precisei ouvir nada quanto à atividade formal. Como fui publicado em torno dos 50 anos já não tinha grandes ilusões quanto ao percurso, portanto as surpresas foram mais favoráveis do que o contrário. A boa notícia é que tenho conhecido gente adorável, com quem estabeleci ótima comunicação, algumas delas de convívio habitual.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
A maior dificuldade tem sido domar o estilo, e não exatamente encontrá-lo. Escrevo o que gosto de ler. Aprecio palavras, brinco com elas desde menino, portanto as conheço em abundância. Pode acontecer de me exceder, seduzido por elas. Essa luta com a palavra é contínua. Com frequência, o que temos de melhor é aquilo de que mais precisamos cuidar, pra não sucumbir ao canto da própria sereia. Certamente Proust influencia minha escrita, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, os grandes letristas brasileiros que ouvi na juventude: Chico, Caetano, Rô Rô, Fátima Guedes, Antônio Cícero, cineastas como Bergman, Fellini, circo-teatros do interior, etc. Adquiri um repertório bem razoável.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Pra quem gosta mesmo da companhia dos livros, e permite se vasculhar: Proust, toda a obra. Tem um pequeno livro japonês que considero uma obra-prima: O fuzil de caça, de Yasushi Inoue, este indico sempre. Tenho lido os contemporâneos brasileiros: Cheia, da Natália Zuccala, Copo vazio, da Natália Timerman, (as Natálias estão mandando bem, dignas representantes da contemporaneidade), Para que se façam sempre os dias e as noites, do Denis Ramos, Eu que não amo ninguém, do Franklin Carvalho, Nihonjin, do Oscar Nakasato, tem muita gente boa escrevendo. Ah, e dicionários de todo tipo: sou doido por eles.