Jordana Machado é educadora, socióloga, marginal influencer e mimesis manager.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou educadora, e no momento estou tendo o privilégio de trabalhar em uma escola que fica há meia hora da minha casa. Ir andando para o trabalho dá uma sensação absurda de qualidade de vida, apesar de todo os outros pesares. Entre outros tempos entrecortados, esse tempo caminhando diariamente eu uso para pensar e ouvir obsessivamente alguma música no repeat. Algum desavisado poderia pensar que música repetida poderia estagnar a cabeça, rodar em círculo, mas para mim dá a impressão de que estou em algum único lugar, algo como estar em minha mesa mesmo estando na rua. Isso me lembra uma frase de música: porque quem pensa, pensa melhor parado. Essa é minha rotina matinal, escrevo primeiro no pensamento, na intenção, na atenção, na busca, tentando me abrir para ser atingida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sonhar ou delirar com um cotidiano e contexto onde se poderia viver apenas para escrever é uma coisa gostosa e dolorosa. Em uma cena assim não haveria preparação porque o tudo já seria o todo, muito orgânico, muito palpável. Em específico, destacaria que gosto de música instrumental para escrever, caso contrário as vozes de fora e dentro se embaralham muito. Me sinto bem ao escrever pela manhã, a sensaçãode fazer algo junto com todo mundo. Já escrever em horários ou momentos inusitados aproxima da ideia romântica dos grandes escritores, o que também é gostoso e cafona. Num geral, a algema do tempo do capital não desaperta, é constante e desconfortável o conflito entre o que se está fazendo e o que pensamos que gostaríamos de fazer. Digo o que pensamos que gostaríamos de fazer, porque me provoca bastante essa questão de questionar nossos desejos, o que facilmente descamba para reprimi-los junto a toda a estrutura social que nos cerca, ou então para tentar entender o que eles podem me proporcionar de bom. Para mim, o ritual da escrita já começa no pensar sobre os motivos pelos quais escrevo e o que fazer com o que escrevo. Não chego nunca à conclusões.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Preciso escrever com frequência por motivos acadêmicos, e é sempre assombroso reparar, sobretudo sentir, as consequências que o tempo deste fazer produz em nossa subjetividade. Um constante alerta que não desliga, você está lá tomando banho e pensando no prazo, está lá tomando café pensando na sistematização. Uma eterna sensação de falta, um peso que rouba a curiosidade e a paixão. Por essas e outras tenho medo de me propor metas ou planos muito fechados. Até acredito e aprecio organização, não estou aqui trazendo a figura do escritor que senta e espera uma força mágica surgir e agir, só tomo muito cuidado para que o prazer de escrever não seja escravizado, o que facilmente acontece, apesar do zelo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pesquisar é algo que não faço muito, exceto quando sinto que aquele trecho precisa necessariamente de algo nesse sentido como base. Já o processo de escrever é uma luta, não é uma valsa. Sobre isso não tenho história bonita para contar. Escrever também é um pouco como se masturbar: você conhece aquela sensação, mas cada vez é de um jeito diferente; você sabe o que vai acontecer, mas a cada vez os movimentos que te fazem chegar lá não são sempre os mesmos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Achei muito interessante e importante a junção dessas palavras na questão: travas, procrastinação, medo e ansiedade. Todo mundo conhece o famoso ‘bloqueio criativo’, mas quando o assunto é literatura, penso que a ideia do escritor dominador e poderoso ainda impera. O que é uma grande capa fantasiosa, nenhum de nós sabe o que está fazendo, vamos descobrindo no caminho. E às vezes não descobrimos. É um poucocomo ir ao mercado comprar determinada coisa e não ter o item na prateleira, o que te leva para outro mercado ou então de volta pra casa, muito aborrecido e frustrado. Ou pior, volta achando que foi no mercado errado, ou que é você que não sabe nem ir ao mercado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Caracterizo minha revisão como responsável, porém falha e isso me abala um pouco. Principalmente em relação à gramática porque dou aulas de gramática, então como assim uma professora de gramática errou? Tento fazer o exercício de não me reduzir, muito menos pelo fato de exercer essa ou aquela função, mas é algo que eventualmente pode me melindrar. Sobre mostrar algo meu para outra pessoa, isso começou quando passei a escrever com outras pessoas. Explico. Primeira vez que escrevi com alguém foi há uns anos com um amigo. Inventamos de experimentar e gostamos. Pensamos juntos e saiu o seguinte acordo/proposta: tiramos um clima, se queríamos algo alegre, bem humorado, triste, reflexivo; depois tiramos um tema, que foi Família; depois decidimos mais ou menos quantos parágrafos para cada e o tamanho deles, tantas ou quantas linhas. Esse jeito foi mais formal, mais organizado. Posteriormente, conheci algumas pessoas e passamos a escrever em conjunto. Desta vez a coisa era mais aberta, então às vezes calhava de cada pessoa entregar parágrafos de tamanhos parecidos, às vezes calhava de terem tons semelhantes e em outras vezes não, e mesmo assim nos misturávamos. Uma outra coisa que já experimentei e gostei bastante, é pegar meus trechos preferidos dos textos de alguém e montar um texto com essas frases. Praticamente um Frankestein de onde sai muitas maluquices bonitas. Como são trechos e frases que me tocaram, parece que acontece meio que uma mágica e você vai montando um texto feito uma outra versão. É como uma homenagem para a pessoa e o trabalho dela. Acho uma experiência incrível porque escrever com o outro, ou com o que pertence ao outro, é baixar a guarda, dar espaço para o outro, brincar com o que vem, deixar que brinquem com o que você oferecer.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma boa relação com a tecnologia, apesar de certamente não estar plenamente alfabetizada digitalmente. Por exemplo, não digito como uma escrivã, mas catando meus milhos aqui e ali até que levo bem. Por outro lado, tenho histórias tão afetivas com papéis e por isso tenho alguns apegos. Lembro da maestria da minha mãe ao encapar meus cadernos da escola, aquilo era uma execução, um cálculo, me impressionava sua habilidade e seu capricho. Ela também teve uma papelaria, então tenho fortes lembranças dos cheiros dos almaços, dos papéis pardos embrulhando coisas, do barulho do durex naquele suporte, das dobraduras no papel de presente, o fitilho virando cachos de enfeitar. Diante disso, paraliso de encanto diante de um Moleskine. Passo o dia todo com um caderninho no bolso, nele vou anotando listas, sonhos, frases, palavras soltas. E também tenho os cadernos maiores onde escrevo e depois passo para o computador. Seja lá qual for o lugar onde coloco o que eu escrevo, permanece sempre também o medo de perder aquilo. Uma xícara de café que cai num computador e tudo que estava ali não estava na famigerada nuvem. Ou uma bolsa que se perde com um caderno dentro. Cito esses exemplos porque são verídicos e ainda me doem.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Muitas ideias que tenho vem de roubos descarados que cometo. Sou uma grande ladra e da pior espécie: a que não tem vergonha e a que ainda avisa que vai roubar. Como é raro e maravilhoso encontrar um interlocutor, alguém com quem ter conversas por escrito, trechos imensos, trocas sem fim, entrega e prazer mútuo. Costumo dizer que 90% do meu tesão em interagir com alguém nasce da comunicação escrita. São essas conversas que costumo assaltar bastante. Desde ideias até frases inteiras. Então digo: nossa, isso que você acabou de dizer ficaria ótimo em um texto. Se a pessoa reagir bem, uso sem pudor. Se sinto alguma reserva, amasso, vou sovando aquilo até ficar irreconhecível. Você vai de corte e costura e remenda tudo, e só você conhece o espantalho por trás de cada página enquanto transforma seu inconsciente num ateliê de costura rumo a uma SP Fashion Week literária e imaginária, com itens que mesclam cortes da mais pura seda indiana com retalhos de trajes juninos. Penso que estar atenta pode ser nomeado como um hábito que pode manter a criatividade em movimento.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Essa pergunta me fez lembrar que antigamente eu achava muito ruim o tipo de resposta que dão, dizendo que tal ou tal coisa era desde criança. Ficava imaginando onde é que estavam essas crianças geniais, porque as crianças que eu conhecia não sabiam limpar a bunda, e não dá pra você imaginar uma criança que não sabe limpar a bunda escrevendo um soneto ou coisa assim. Mas hoje realmente acho que de bunda suja, enquanto tomava aquela sopa de letrinhas, foi ali que pode ter começado, aquelas letras boiando naquele caldo, e algo do tipo parece acontecer dentro da minha cabeça desde então. Quando comecei a escrever a coisa era muito mais pessoal. Também tive minha experiência na escola. Foi na escola que de fato entendi que me comunicava melhor escrevendo. Foi especificamente com o olhar de uma maravilhosa professora de Português. Foi especificamente com eu travando na hora dos seminários mas a parte escrita dos trabalhos era o que me dava notas. Quando você estuda literatura aprende a mentir melhor, colocar a culpa nas personagens. Sobretudo aprende-se a tentar sentir e ver como o outro. Isso é a coisa mais importante e bonita que a escrita pode proporcionar. Hoje eu diria para a minha adolescente que vai continuar doendo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro que gostaria de ler é o meu. O projeto consiste em ter coragem o suficiente para escrevê-lo.