Jonas Ribeiro é escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Desde a adolescência, quando já desejava ser escritor e viver dos livros, para os livros, entre os livros, ou melhor, viver de direitos autorais, estabeleci uma rotina: acordo por volta das seis da manhã, jogo uma água e me arrumo para escrever. Antes, preparo o café e me sento à mesa com meus familiares. Às vezes, faço uma caminhada para oxigenar as ideias e vou escrevendo por dentro, organizando as ideias. Como não tenho patrão, nem mesmo editores cobrando-me uma produção regular, procuro trabalhar com disciplina, como se recebesse salário no final do mês. Aproveito o meu “expediente literário” para familiarizar-me com enredos, personagens, e reescrevo alguns trechos diversas vezes até ficar satisfeito com o resultado. A propósito, respondo a esta entrevista no mês de janeiro de 2022 e convém considerar o quanto a pandemia mexeu com nossa rotina. Antes de março de 2020, reservava os meses de dezembro, janeiro e fevereiro só para escrever, e o fazia diariamente. Nos demais meses do ano, também escrevia, mas bem pouco, porque as visitas às escolas para divulgar os livros ocupavam a maior parte de meu tempo. Agora, durante a pandemia, escrevo muito mais; no entanto, também faço as aulas remotas e Lives, e, como trabalho em casa, já não tem o tempo das viagens, de deslocamentos, de esperas em aeroportos, o que faz o dia espichar.
E que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã, das nove às quatorze. Depois desse período, pode acontecer de continuar escrevendo, mas prefiro ler e cuidar das burocracias. Se tenho algum ritual para escrever? Tiro toda roupa e danço a dança da chuva. Ah! Antes de executar os passos da dança, passo maionese nos cabelos e nas sobrancelhas, só para viajar na maionese, para as ideias fluírem… Brincadeira, não faço nada disso, nem sei se tenho um ritual que antecede a escrita. Gosto de ficar em silêncio ou ouvir música clássica, se é que posso considerar essa prática como um ritual. Também faço uma breve lista de tudo aquilo que pretendo realizar no decorrer do dia e defino as prioridades. O que não consigo cumprir, naturalmente, fica para os próximos dias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende da força do livro. Se estiver empolgado e com as ideias transbordando pelos poros, escrevo diariamente, nem que seja uma frase ou um parágrafo por dia. Agora, se o livro ainda não me arrebatou e nem anda me entusiasmando, o seu ritmo é arrastado. Vamos e venhamos, o que todo escritor deseja é estar no olho do furacão criativo, com ideias pipocando na cachola, com muitos ímpetos, insights, e acordando na madrugada fazer anotações. É ilusão pensar que um escritor leva uma vida pacata. É caótico o processo criativo. Se quisermos escrever livros viscerais, que carreguem a nossa identidade, precisamos jogar fórmulas para o espaço e olhar para o projeto atual, entender o que ele precisa para atingir a sua plenitude. Não, não tenho meta, apenas a de ficar satisfeito com o livro. Vale a pena observar que rasgar um calhamaço de folhas escritas e recomeçar do zero pode ser um baita avanço. Como sou um escritor infantojuvenil, não tenho esta medida de tantas laudas por dia, esse procedimento é mais para o escritor que tem alguma sessão em jornal ou revista, e muito apropriado para quem adora trabalhar sob pressão, com data para finalizar um projeto. Não existe um processo criativo perfeito, ideal, o que existe é o processo que se mostra mais adequado para cada profissional da palavra. Para mim, funciona assim, e, para o outro, funciona assado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou um escritor de ficção. As pesquisas acontecem simultaneamente, enquanto estou inventando a história e preciso saber quais são os hábitos de um coelho, os nomes dos ossos do esqueleto ou algumas profissões incomuns. Pesquisa e escrita se entrelaçam, não acredito que sejam momentos distintos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quarenta minutos ao piano são o suficiente para eu desfazer os nós complicados da insegurança e voltar a sorrir, isso quando fico tenso ou quando, não sei por que motivo, quero fazer literatura na marra. Daí, volto à razão e me recordo de que não é desse jeito que se faz um bom livro, que a arte pousa em nosso imaginário, bate à nossa porta, quando estamos pronto para recebê-la, ou seja, quando estamos bem. Não tenho intenção alguma de ser dono de alguma verdade, mas acredito que livro especial, que chega para ficar, é feito com emoção vibrante, delírio, sem um pingo de pressa. Agora, quando o projeto é longo, divido-o em partes e, ao longo das semanas, vou cumprindo as tarefas. Quando me dou conta, lá está ele, sorrindo, pedindo para ser disparado para os editores. Tudo uma questão de disciplina, suor, diversão: basta arregaçar as mangas e trabalhar com afinco, felicidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Geralmente, de quatro a sei vezes. Engana-se quem pensa que, uma vez escrito o livro, o trabalho está encerrado: é aí que o trabalho começa. Contarei em linhas gerais como procedo: colocado o ponto final, imprimo para corrigir com caneta, acrescentar, retirar e reescrever, substituir palavras, sentir a melodia da frase, procurar excessos e eliminá-los, esticar ideias instigantes, verificar se deixei comida para as personagens (pois, acreditem, há histórias em que o escritor não cita sequer uma refeição, nem lanchar as personagens lancham, vê se pode…). Depois, digito essas mudanças feitas com a caneta e imprimo novamente para empreender o mesmo processo, diversas vezes. Também leio em voz alta para ouvir a melodia do tecido frasal, do sutil arremate que liga um parágrafo a outro. Vejo se consigo ocultar alguns sujeitos e usar apelidos dos protagonistas a fim de não superlotar o texto com os nomes das personagens principais. Tudo é importante no texto, procuro fazer frases curtas, parágrafos não tão longos, e, em nome da clareza e da simplicidade, corto parágrafos inteiros e recomeço a buscar um novo jeito de dizer o que pretendo comunicar. Há mais de vinte anos, conto com a mesma revisora, a Márcia Rizzardi. Nós dois somos apaixonados pela Língua Portuguesa e ficamos encontrando o melhor caminho para que a leitura deslize gostosamente e os leitores não empaquem em ambiguidades, em uma construção verbal que não soa bem aos ouvidos, em uma frase confusa. Penso que um livro que chega bem escrito às mãos do editor tem maiores possibilidades de ser aprovado. E vamos e venhamos, o editor está com a mesa abarrotada de bons textos para apreciar. Ou seja, não basta escrever um bom livro, é preciso buscar a excelência, o nosso melhor, a plenitude daquele trabalho. Daí a importância de revisar, revisar, cortar, duvidar. Sim, eu disse duvidar porque há escritores que se acham a última bolacha do pacote, acham que aquilo que escreveram é simplesmente imexível, fabuloso, um clássico da Literatura Universal. Por isso, recomendo que trabalhemos feito operário na construção de nosso texto. Não preciso lembrar que um edifício começa da fundação e tem uma infinidade de etapas até os leitores poderem habitá-lo. Mas fora a Márcia, às vezes peço a duas amigas que o leiam: minha irmã escritora Ana Carolina Lemos e minha diretora teatral, a Marilena Cabral. A quarta pessoa que lê é o editor. Da mesma forma que não gosto que fiquem lendo meu texto antes de ele ser publicado, também fico arrepiado quando alguém me pede para ler um texto. Claro que, às vezes, não consigo escapar, mas, para mim, é um martírio. Não gosto de dar toques, pareceres, sugestões. Adoraria que as pessoas que me pedem para ler um ou outro texto olhassem para dentro de si e reunissem toda confiança para escrever e assinar uma obra impregnada de identidade, personalidade. Exatamente, gosto de fortalecer as asas de meus colegas que escrevem, e não de voar por eles.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Era um fiasco a minha relação com a tecnologia. Vivia na idade da pedra lascada. Não vou mentir para vocês: foi dificílimo substituir a máquina de escrever pelo computador. Resisti o quanto pude. Pra dizer a verdade, se pudesse, faria tudo à mão, mas não tem a mínima condição. Foram necessárias longas conversas com os meus botões para que, hoje em dia, eu e a tecnologia nos tornássemos amigos e não mais nos estranhássemos. Claro que conto com a assessoria de um profissional da área que esclarece até as minhas dúvidas mais triviais sobre tecnologia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Faço silêncio dentro de mim e eis que capturo um fio de voz sussurrada. É a voz da intuição, que vem lá de minhas profundezas, de meus escombros, e que precisa falar, contar, dividir alguma imagem, algum aprendizado, uma história que vem sendo escrita há anos…
As minhas ideias vêm de minha inquietude, de meus incômodos, da observação atenta do mundo, das pessoas que me cercam, sejam elas familiares ou completamente estranhas. Nem sempre estou tão criativo quanto gostaria. Aproveito esses dias de criatividade minguada para cuidar de burocracias. Desse modo, quando voltam os dias abençoados pela criatividade, eles encontram um Jonas com mais tempo e leveza para a escuta das ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não tenho mais necessidade de provar para o mundo que sou capaz. Nada disso mais importa. Agora sei que sou um bom escritor entre milhares de bons escritores e esse saber me faz um bem tremendo. O duro é quando a gente quer ser o melhor, o mais premiado e talentoso dos escritores de nossa época. Daí, o bicho pega e a gente vive um martírio, uma luta infrutífera e descabida para provar algo tão infundado, tão sem pé e sem cabeça. Porque, vamos e venhamos, é maravilhoso ser apenas um bom escritor entre milhares de bons escritores. A gente não precisa ser o suprassumo da Literatura. Escrever alguns poucos livros essenciais já é o bastante. Se pudesse voltar no tempo, gostaria de ter comigo, assimilado por todas as minhas células, de que fazer menos livros com mais qualidade é sensacional. Mas também, se não tivesse lançado tantos títulos, não chegaria a esta maturidade, a este aprendizado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Depois de ter escrito e lançado tantos livros, quero agora desacelerar e escrever livros para a primeira infância, com poucas frases, poucas palavras e com um universo de emoções genuínas. Ah! Ainda estou escrevendo o livro que gostaria de ler e, sobretudo, que gostaria que os leitores lessem e dissessem: o Jonas acertou a mão…