Joice Barbosa da Silva é escritora, graduanda em Letras pela UFRRJ.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu costumo começar pelo banho. Sempre foi algo muito comum para mim, mesmo antes de estar confinada por conta pandemia, despertar depois de um bom banho enquanto a manhã ainda está silenciosa. Pra mim é terapêutico. Tem dias que eu percebo que se o meu quarto, que é o lugar de onde eu, geralmente, escrevo, e estudo, diariamente, está com “cara de dengo”, é muito provável que eu vá querer voltar para a cama. Então, eu costumo fugir dessa tentação e manter esses passos básicos na minha rotina matinal: levantar, forrar a cama, tomar banho e tomar café. Depois disso é muito mais difícil para a cama conseguir me seduzir de novo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Se você me perguntasse isso a dois anos atrás eu te diria que a noite era minha parceira de escrita. Geralmente esse era o momento do dia que eu me ouvia melhor, por conta do silêncio externo. Conforme a ordem da nossa rotina foi se tornando mais caótica, mais confinada, eu sinto que o meu relógio interno cedeu ao caos, então eu passei a produzir a qualquer hora do dia, porque eu estava ativa o dia inteiro e as coisas simplesmente surgiam. O que eu costumava fazer era anotar alguma ideia pra não perder e deixar ela descansando até quando eu pudesse me voltar para ela com mais calma. Hoje, eu sinto que mesmo com as nossas vidas retornando, de rodinhas, ao normal, eu ainda não consegui determinar um turno de produtividade, mas até acho isso bom porque eu também percebi que hoje eu produzo mais que antes.
Olha… eu tenho um ritual que deveria ser mais sagrado do que é. Depois que eu cumpro a minha rotina matinal eu busco fazer pilates. Consigo todos os dias? Adoraria, mas não. Só que quando eu começo o dia com essa atividade de concentração corporal e mental, eu entro num estado de paz e amor surreal… Então, eu consigo lidar melhor com os ruídos externos, e assim eu consigo me ouvir melhor, logo, escrevo com mais sensibilidade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu procuro escrever um pouco todos os dias. Mas quando eu falo escrever pode ser que eu nem chegue a anotar cada aspecto detalhado do que me atingiu. Às vezes, uma história parte de um título, porque pode acontecer de eu estar estendendo roupa e surgir um conto, por exemplo, então eu penso num título que dispare imediatamente para aquela história e anoto no bloco de notas do meu celular. Eu tô falando sobre isso porque eu tinha muita dificuldade para nomear os textos que eu escrevia porque eu não conseguia fazer essa síntese, mas hoje eu consigo partir justamente de um nome e desenvolver uma narrativa com personagens, um universo partindo de um título e isso pode levar minutos, horas ou dias. Então, a minha meta é tentar não abandonar esse texto e começar outro. Eu busco me comprometer aos poucos, mas pode acontecer? Claro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Olha, eu tenho algo comigo que eu poderia até mencionar como um ritual meu, mas que eu imagino que não seja só meu. A escrita me parece muito alinhada com as nossas sensações, nossas percepções humanas, porque acontece da gente ter escrito algo e sentir que não nos identificamos com aquele mesmo texto depois de algumas horas, e se nós seres humanos somos mutáveis de acordo com as inteferências do meio externo, porque a nossa escrita não seria?!. Então, eu procuro respeitar esse tempo de maturação. Eu saio dessa imersão no texto e vou fazer outras coisas, vou bater um papinho, vou comer um negocinho e deixo o texto lá descansando. Isso acaba me ativando gatilhos para outras perspectivas, e, geralmente, é para uma informação a mais, uma correção para algo que eu não prestei atenção e preciso melhorar, daí eu pesquiso, me certifico e volto para o texto. Essa percepção acaba dialogando com outra coisa importante pra mim que é escrever sobre o que eu sei, e a gente não sabe de tudo, né?! Então, muitas vezes eu me pego apredendo ou reaprendendo alguma coisa nova e isso pode levar mais tempo do que o de costume. Tendo superado essas questões, eu me volto para aquelas anotações no bloco de notas, que partiram de uma ideia, e elas começam a ganhar forma. É nessa hora que eu me desligo de tudo e mergulho na escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu simplesmente deixo eles acontecerem, se tiverem que acontecer. Eu já me cobrei bastante nesse sentido e isso não me tirou do lugar que eu estava. Além disso, tem algo sobre mim que eu também costumo ouvir e respeitar, a minha permanência em lugares, projetos ou com pessoas que eu acredito. Se essas travas forem um impedimento para o meu bem estar, eu não costumo me culpar por não cumprir certas expectativas, principalmente, quando elas não partem de mim, enquanto estou passando por esse momento. Sabe, eu acredito que esses bloqueios criativos aconteçam com todo escritor, mas que alguns tenham mais facilidade do que outros para admitir que não produzir também é produtivo. Você tá fazendo um backup mental e ele vai acontecer naturalmente se você continuar introduzindo ou não mais conteúdos onde não há espaço. A diferença é que ceder a esse momento, além de nos dar um descanso humanamente necessário, nos permite avaliar com mais nitidez o que precisa ou não permanecer em nós mesmos enquanto escritores. Depois disso, eu sou muito a favor do retorno. Ele costuma ser interessante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Hmmm… muitas vezes! Eu costumo seguir aquele passo, que pra mim é fundamental, deixar o texto descansar. E eu costumo ser bem crítica enquanto leitora dos meus textos, mesmo enquanto eles ainda estão sendo escritos. Eu paro, passo o braço esquerdo pela cintura, apoio o queixo na mão direita, aperto os olhos, e releio tudo o que já foi escrito até certo ponto, aos poucos eu me desfaço da escritora e assumo o lugar da leitora, então eu preciso entender se eu estou me fazendo entender. Entendeu!? (Risos) _ aconteceu algumas vezes enquanto eu respondia essas perguntas _. Depois de alguns minutos eu acabo me envolvendo com o texto, me divirto, me emociono, e é nesse lugar que eu gosto de estar, do leitor que se envolve com o que está lendo. Então, eu escrevo sobre aquilo que eu leria. Gosto de escrever de onde eu venho e isso me pega, muitas vezes, mas é exatamente nesse feeling que eu quero chegar. E vou seguindo esse caminho, atendendo a essas pausas, ao mesmo tempo que procuro por conexão, erros e ajustes. Quando eu termino todo esse processo eu releio, e aí já era. O último passo é mostrar para alguns amigos, alguns são escritores, outros não, o que é muito positivo, porque são ouvidos e olhares diferentes sobre o mesmo conteúdo. Esse feedback é muito importante para minha construção, porque esses amigos escritores são as minhas referências em autorias negras e periféricas, eles e outras pessoas que eu amo, foram essenciais para que o meu primeiro texto tenha sido publicado em um livro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu adoro a tecnologia. Nesse momento pandêmico que a gente está atravessando ela foi convidada para entrar nas nossas casas de uma forma que nunca nos aconteceu antes, e ficou, né?!. Gosto muito de me avaliar hoje em dia, porque eu também precisei sair de alguns lugares que me pareciam confortáveis para me arriscar. Isso é muito doido porque eu não escrevo em papel. Quase todos os meus textos, exceto um, saíram de um aplicativo de bloco de notas ou do computador. Esse “filho único” foi escrito à mão porque está no gênero carta, então foi algo que eu escolhi manter, e foi o primeiro a ser publicado, justo em uma antologia de cartas, inclusive. Com essa introdução mais enfática da tecnologia na nossa rotina, eu também acabei me desenvolvendo melhor em outras ferramentas textuais, como o Padlet, o Notion, até o podcast, por exemplo. Felizmente a tecnologia não dá ré, então, se antes eu tinha o notebook ou o celular como meus aliados para rascunhar o que eu escrevo, hoje eu também tenho os recursos de voz, porque é algo ainda mais sofisticado para que eu reserve informações mesmo estando em movimento. Sou muito fã.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias tem uma relação muito forte com a minha vivência e com outras vivências que se cruzam com a minha. Eu venho de um cenário que ilustra realidades muito presentes no meu cotidiano e no de tantas outras autorias negras, então, falar desse lugar toca na minha identidade com ele. O que me resta pensar é na forma que vou narrá-lo.
O único hábito que eu cultivo e dedico muito respeito é o de rememorar a minha ancestralidade e as contemporaneidades que me cercam. Eu escrevo com muitas mãos, falo através de tantas vozes que me atravessam e retorno a minha escuta para continuar ecoando a afirmação de histórias existentes no nosso país. Então eu me deixo levar por essas percepções porque eu sinto que, para além da nossa criatividade e das nossas habilidades, nós devemos prezar por evidenciar a nossa identidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu acredito que foi o fato de me reconhecer como escritora. Sabe, muitos escritores, pricipalmente os que começam a escrever muito cedo como eu, sentem essa insegurança por pensar que nossa escrita é inferior àquelas que possuem visibilidade. Esse não é um medo virtual porque, além de presente, ele vai nos drenando a dimensão de um dia ser lido ou publicado. Quando eu penso nos primeiros textos que eu escrevia eu tinha um sentimento muito medíocre em vista dos cânones mais acessados ou discutidos, começando pela linguagem. Então, por muitos anos eu senti que o que eu pensava e reproduzia era bobo, e que não existia um lugar para mim na literatura porque eu não tinha a “cara” dela. Eu não me identificava. Com o tempo essa insegurança foi crescendo e os meus textos alugaram as minhas gavetas por anos e mais anos. Não me culpo por isso, mas me solidarizo com os que se sentem assim hoje porque eu gostaria que alguém me dissesse o que eu tenho ouvido recentemente. Mudou tudo. Eu entendo. Então, se eu pudesse voltar no tempo eu diria para aquela menina que nada do que ele sentia era besteira.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ai! Essa pergunta é muito legal! Se fosse presencialmente eu ficaria rindo por uns dois minutos enquanto pensava na resposta. Olha, eu tenho um sonho que se relaciona com a resposta da pergunta anterior. Ele ainda não tem um roteiro, nem forma, mas é um desejo que eu gostaria muito de realizar. Tenho fé. Vou deixar um mistério no ar (risos). Me pegou demais essa história de um livro que não existe, hein? Genial… Se não existe, então eu gostaria de ler uma antologia com todos os amigos escritores que eu conheci até aqui.