João Peres é jornalista, autor de Corumbiara, caso enterrado (Elefante, 2015), finalista do Prêmio Jabuti 2016.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar cedo, por volta de 6h30-7h. Sinto que funciona bem para mim porque, descansado, o trabalho flui melhor. Tomo café e já começo. Normalmente, leio o noticiário, respondo e-mails e, então, dou início a questões que me demandam mais concentração.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã. Sempre. Sinto que depois do final da tarde aquilo que me demanda concentração já não funciona.
Quando tenho de escrever algo que me exige aprofundamento, tento “esvaziar” a cabeça, deixá-la livre de outras questões. Muitas vezes, caminhar me ajuda a ir elaborando o texto mentalmente, ou pelo menos fragmentos importantes para sustentá-lo. Em uma situação ideal, caminho um pouco por dia durante vários dias até que o texto comece a se concretizar. Vou anotando algumas ideias centrais, formando parágrafos, até que tenha um texto completo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nesse momento, feliz ou infelizmente, a escrita é apenas uma parte da minha rotina. Não consigo construir uma meta de escrita diária, como já fiz em outras fases da vida, em especial durante a elaboração do meu primeiro livro-reportagem, Corumbiara, caso enterrado. Nessa etapa foram vários e vários meses de concentração matinal. Eu sempre acordava muito cedo e já começava, até mais ou menos o final da manhã. Atualmente, quando preciso escrever algo mais denso, tento me liberar de outras tarefas para um período concentrado de escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A maior dificuldade é organizar o resultado de pesquisas muito aprofundadas. Começo por tentar hierarquizar as informações, entender se há algo que é imprescindível e algo que é descartável. Pode soar meio tonto, mas sempre começo pelo começo: peno bastante para decidir o que virá primeiro e como serão as primeiras frases. Imagino que seja um processo bastante comum entre jornalistas, porque estamos acostumados a pensar em aberturas de impacto, o famoso lide (ou lead). Depois que surge essa abertura, no geral é mais tranquilo construir o que virá em seguida, e os parágrafos costumam surgir com certa naturalidade porque já passei por um processo de elaboração mental de onde quero chegar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que o mais difícil para mim é lidar com a ansiedade entre pesquisa e escrita. Muitas vezes, a escrita quer começar a surgir sem que a pesquisa tenha sido finalizada, sem que eu tenha todos os elementos em mãos para saber com precisão onde pretendo chegar. Isso é especialmente penoso quando se lida com jornalismo investigativo, uma vez que pode ser necessário esperar semanas e meses pelo desfecho de uma apuração.
Meu medo de não corresponder às expectativas diminuiu bastante com o passar do tempo. Por um motivo simples: é impossível controlar o que as pessoas pensarão, qual entendimento terão do que está escrito. A gente controla o processo, mas só até que o texto esteja publicado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende muito do texto. Quando se trata de um livro, reviso muitas vezes. Gosto de conduzir esse processo por etapas: é importante tomar uma distância de algumas semanas ou meses para reavaliar o texto, ver onde está bom, onde precisa melhorar. Mas, depois que estão publicados, normalmente não volto a eles. Pelo motivo que citei acima: já não me pertencem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É uma relação tensa. Em mais de um sentido. A tecnologia é, hoje, o grande desafio quando preciso escrever. A sensação de urgência criada por redes sociais e aplicativos, somada ao excesso de informação, cria uma dificuldade enorme para tarefas que demandam concentração. Afinal, sabemos bem que muito dinheiro foi gasto para descobrir como esses dispositivos poderiam capturar toda nossa atenção.
De outro lado, evito o computador quando tenho de escrever um texto longo. Opto por fazer tudo à mão porque sinto que a velocidade do teclado trai a lentidão do meu raciocínio: quando me dou conta, o computador já me levou a um desfecho que eu não desejava. E, uma vez que o texto está no papel, tenho dificuldade de apagar tudo e recomeçar. É algo de que realmente não gosto. Porque, ainda que eu apague um arquivo ou amasse um papel, essas ideias ficaram registradas na minha cabeça e é muito difícil livrar-me delas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Da observação da realidade. Das conversas, das ruas, dos espaços rurais e urbanos. Essa é minha maior dívida de gratidão com minha profissão: graças a ela, fui a lugares e conversei com pessoas que jamais teria conhecido. Nunca senti necessidade de escrever ficção porque a realidade já me parece tão, tão fascinante que merece ser bem contada. Esse horizonte me é suficiente. No século 21, então, tem ficado cada vez mais difícil entender se há uma linha que separa realidade e ficção.
Ou seja, para me manter criativo, além de fazer o básico (ler tanto quanto posso, assistir filmes e séries), preciso estar na rua. Ouvir conversas, ver pessoas e coisas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Por uma série de questões pessoais e profissionais, eu já não disponho do tempo de que dispunha antes para elaborar o texto mentalmente. Já não posso confiar tanto na minha memória. Isso me levou a recorrer mais a anotações. E criou uma pressão para conseguir chegar mais rapidamente ao resultado final (o que, obviamente, no mais das vezes não acontece porque esse processo de elaboração é naturalmente difícil de acelerar).
O que eu diria a mim mesmo? Que me desapegue do cânone. No começo, eu tinha uma fixação por seguir as regras básicas de uma linha mais tradicional de jornalismo: evitar adjetivos, manter certa distância, fazer uma estrutura clássica de texto piramidal, onde o mais importante está no topo, no começo. É evidente que isso me serviu no começo para estruturar um estilo próprio de escrita. Mas, olhando pra trás, vejo que havia muitas amarras improdutivas. Gostaria de ter me livrado delas mais rapidamente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos. Numa conjuntura vertiginosa como a que vivemos, ideias surgem aos montes. Necessidades, também. Mas, logo, o que parecia importante se desmancha no ar e dá lugar a algo ainda mais passível de ser contado.
Não consigo pensar em um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe porque há tantos livros que já existem e não consigo ler que me são mais do que suficiente.