João Nunes é professor de relações internacionais do departamento de política da Universidade de York (UK).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo sempre bem cedo, no Inverno saindo de casa ainda de noite. No ônibus – que a essa hora ainda está vazio – leio algumas páginas da revista New Yorker, que aprecio não só pelas temáticas mas também pela qualidade da escrita. (Nos últimos anos a New Yorker se tornou grande inspiração para mim pela sua escrita clara, simples e rigorosa.) Chegando na universidade a primeira coisa que faço é preparar um chá – preto, forte, com leite, um hábito britânico que adotei depois de muitos anos como imigrante. Durante a manhã tento sempre avançar rapidamente nas questões relacionadas com preparação de aulas, coordenação de curso, pareceres, entre outros. Tudo isso para limpar minha lista de tarefas e ganhar confiança. A minha escrita depende muito de confiança e ritmo. Gosto de chegar ao meio da manhã sentindo que já alcancei bastante no dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O período da manhã é essencial para mim, mas muitas vezes o trabalho que faço durante a manhã (e que inclui outras tarefas sem ser escrever) é apenas a base que me permite ganhar ritmo para avançar na escrita ao longo do dia. Nunca sei bem quando a inspiração vai chegar mas ela sempre depende de ficar bastante tempo sentado, escrevendo, corrigindo, fazendo outras coisas, voltando à escrita, desistindo, tentando de novo. O meu único ritual de escrita é ter o espaço à minha volta o mais desimpedido possível. Quando escrevo gosto de ter na mesa apenas o meu computador, papel e lápis.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Neste momento eu tendo a escrever em períodos concentrados – normalmente quando se aproxima um prazo. Gostaria de escrever todos os dias, mas é um nível de disciplina que até agora não consegui alcançar. Acho que eu seria mais feliz se escrevesse um pouco todos os dias, nem que fosse dois ou três parágrafos. Não gosto de estabelecer metas quantitativas de escrita pois o importante é sentir que estou avançando. Todos os passos de escrita são importantes, mesmo os mais pequenos. Por vezes há parágrafos que são verdadeiros gargalos: demoro dois ou três dias a resolvê-los mas uma vez desbloqueados permitem que a escrita flua mais rapidamente. É claro que sempre há uma satisfação quando escrevo muitas palavras, mas igualmente satisfatório é resolver aquele parágrafo problemático que abre as portas para o resto do trabalho.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para a primeira versão, faço as leituras e pesquisas de forma a que todas as minhas notas estejam disponíveis no computador (normalmente num software de referência bibliográfica que me permita aceder facilmente ao que preciso). Em seguida organizo um plano ou mapa do que estou escrevendo – esse plano é feito a lápis numa folha de papel A4, e sempre o tenho na minha frente. Vou corrigindo esse plano ao longo do processo de escrita, mas sempre de modo a ter na minha frente um “esqueleto” do que quero dizer. Isso me ajuda a não perder o fio do argumento e a distinguir o essencial do acessório.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido com as travas na escrita de forma simples: gerando mais texto. Um dos conselhos mentais que dou a mim mesmo é continuar a escrever mesmo que pareça não ter qualidade, mesmo que pareça inútil ou ruim. É importante continuar gerando texto. Mesmo que numa versão posterior esse texto desapareça, ele terá servido de suporte ou andaime para uma versão melhor. Na luta contra a página em branco a melhor estratégia é encher a página de palavras e se preocupar com a qualidade depois. O sentido se alcança corrigindo, mas para isso é essencial começar por ter algo que precise ser corrigido.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A primeira versão é um mal necessário que tento terminar o mais rapidamente possível. Depois gosto de me distanciar mentalmente durante uns dias ou mesmo semanas, para não ficar apegado ao que escrevi. Sempre tento obter comentários de outras pessoas, me preparando para as críticas como um remédio que arde mas sempre cura. Os comentários de colegas me permitem enfrentar a segunda versão de forma mais confiante e orientada. Uma vez que já tenho um bloco de texto, a escrita avança mais rapidamente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como referi acima começo sempre no papel e lápis, preparando uma estrutura do texto (com ideias principais, referências-chave e encadeamento geral do argumento). Esse é para mim um momento criativo quase sensual, pois gosto do som do lápis deslizando no papel, da textura da folha, do cheiro do lápis acabado de aparar. Depois escrevo diretamente no processador de texto do computador, com o apoio do software de referência bibliográfica que contém todas as minhas notas e que me permite introduzir as referências à medida que escrevo. Em momentos de indecisão, ou assim que inicio uma nova secção do argumento, regresso ao papel e lápis para me desbloquear criativamente. Preciso desse suporte para pensar sistematicamente e organizar minhas ideias.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Uma parte do processo permanece insondável. O funcionamento do cérebro e as emoções humanas, essenciais para a escrita, continuam envoltas em mistério – e ainda bem. Mas tento ter uma atitude de abertura intelectual e emocional que me permita acolher ideias novas, problematizar e mudar o que penso, e estabelecer ligações entre coisas que até então tinha como separadas. Essa abertura eu tento manter escutando outras pessoas, adotando um espírito de aprendizado constante e me recordando sempre que possível das razões por que escrevo – ou seja, da minha motivação ética para fazer esse trabalho.
O próprio processo de escrita também é importante. Com frequência, é durante o ato de escrever que eu penso de forma clara e descubro o que estou tentando dizer. Nesses momentos, por vezes novas ideias se revelam, súbitas, discretamente, quase sorrindo para mim como se sempre lá tivessem estado.
E, claro, é fundamental ler bastante. Ler além dos textos académicos me ajuda muito no processo criativo e a aprimorar a escrita. Sempre estou lendo dois ou três livros de ficção ao mesmo tempo. Os escritores cujas obras mais admiro – Leo Tolstoy, Anton Chekhov, Elena Ferrante, James Salter, V.S. Naipaul, J.D. Salinger, Roberto Bolaño, Denis Johnson – me ajudam a ver uma frase bem construída como algo de precioso, quase um milagre.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Durante os anos me tornei mais organizado na escrita, pois me conheço melhor e sei o que me ajuda a escrever e, pelo contrário, o que prejudica a minha escrita.
Também me tornei mais tolerante comigo mesmo, aceitando que há dias bons e outros menos bons. Aprendi a confiar no processo. Isso é algo que me ajuda: confio que se seguir um determinado processo (gerar texto, escutar a opinião dos outros, corrigir, cortar, adicionar, reescrever, receber mais opiniões, desesperar, reescrever de novo) irei atingir o suficiente ou satisfatório.
Finalmente, aprendi a colocar tudo em perspectiva. Independentemente de conseguir ou não escrever, a vida segue e no fundo há coisas mais importantes. Sou um privilegiado por ser pago para ler, estudar, pensar e compartilhar nas minhas aulas e na minha escrita. O processo de escrita pode ser incómodo mas isso não é nada comparado com a vida verdadeiramente difícil de tanta gente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho sempre muitos projetos. Por exemplo, neste momento tenho pelo menos seis ideias para livros que quero escrever. Os detalhes guardo para mim até conseguir concretizar – assim tenha tempo, paciência, determinação e saúde.
* Entrevista publicada originalmente em 30 de janeiro de 2018, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).