João Nunes Junior é advogado e escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A rotina matinal é uma experiência relativamente nova, é uma descoberta recente na minha relação com a escrita. Sempre me julguei uma pessoa noturna, de pensamentos noturnos e tinha na noite o momento de maior vulnerabilidade das minhas percepções e dos meus sentimentos. Acho que isso até pode ser uma verdade ainda, mas tenho me sentido muito mais disposto para escrever pela manhã – e quando digo manhã, me refiro a acordar pelas 5h30, moer um café, beber enquanto provoca a criatividade com alguma leitura, depois pegar os blocos onde escrevo ou abrir os arquivos no computador e, aproveitando o silêncio da cidade ainda pouco disposta, trabalhar. Escrever algo novo, editar algo antigo. Alguns dias esse processo é um pouco atrasado por uma leitura mais encantadora. Atualmente tenho lido fragmentos de Folhas de Relva, do Whitman. Enfim, tenho optado mais pelo frescor da mente pela manhã e menos pelo caos da mente à noite. Será assim por quanto tempo mais?
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como respondi na pergunta anterior, tenho gostado do resultado da escrita quando exploro o frescor da mente pela manhã. Gosto de moer os grãos do café num moedor manual, gosto desse movimento físico, me anima os pensamentos. Na maioria das vezes início a rotina de escrita passando para o computador o que escrevi no dia anterior – ou em dias muito anteriores, pois tenho o costume de escrever à mão, em uma série de cadernos que costumam me acompanhar. Esse processo de “passar à limpo” também é uma etapa de edição e um estopim para novas ideias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
São raros os dias em que não escrevo. Recentemente, como tenho alguns projetos de ficção longa em andamento, busquei estabelecer uma meta de páginas, isso depois de ter fracassado na meta de horas de trabalho. Quero escrever três páginas por dia, as vezes consigo e isso me dá uma satisfação enorme. Muitas vezes me limito a escrever, à mão, um parágrafo, o que também me deixa realizado, pelo menos até o dia de passar a limpo e perceber que nada daquilo diz o que precisava ser dito. Durante o dia não é raro me acontecer um poema, um verso. De novembro de 2019, depois de um trauma sentimental importante, até o fim do ano passado, me ocupei na escrita de poemas longos. Poemas que serviram para compor verdadeiros murais de passado e presente. Um trabalho que pretendo em breve retomar, agora para edição. Nessa fase escrevia de forma desordenada, obedecendo o fluxo do espanto, considerando que a poesia é um espanto, como dizia Ferreira Gullar. Em síntese, acho que a pretensão de ser ficcionista me reclama alguma organização e muita coragem. Sinto que este processo, para mim, será um abandono do lúdico, será uma observação dos supostos fatos, que na poesia são matérias-primas que eu me permito destruir, se for o caso. O ímpeto poético me cobra estar sempre atento – e o poema não respeita os limites que pretendo colocar ao meu expediente literário. No fundo acho que prefiro assim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que os processos são diferenciados quando se trata de escrever um poema ou de escrever algum parágrafo de ficção. O poema me ocorre como um acontecimento. Nada metafísico ou sobrenatural. Mas um poema acontece quando vejo uma notícia, quando observo algo ou alguém. Um verso surge de súbito e uma palavra vai puxando a outra. Depois esses escritos vão ser editados e trabalhados exaustivamente. Com os projetos de ficção, sinto que há uma cobrança implícita, de mim a mim mesmo, em ter alguma organização. Faço um esboço geral da história, faço anotações sobre os personagens, estabeleço alguns roteiros. Depois sento e começo a escrever. Sinto um prazer enorme em subverter o que tinha rabiscado e planejado, principalmente quando leio e vejo que o resultado surpreendeu, superou o conforto de pisar em um terreno supostamente seguro. Aliás, escrever para mim nunca é um processo seguro. Sinto que coloco hastes na minha constante insegurança. Quanto à pesquisa, isso é um tema que levo bastante a sério. Gosto tanto de observar trejeitos e de estruturar e buscar características para personagens em pesquisa de campo quanto de me aprofundar em aspectos teóricos e práticos de um universo criado. Por exemplo, o sistema prisional é um ambiente que permeia meus projetos de ficção longa, então faço diversas pesquisas e muitas anotações. Normalmente eu sequer abro essas anotações. O que aparece no texto é o que internalizei. Também estou trabalhando num projeto de roteiro de longa-metragem (concluí recentemente um curso de formação de roteirista). A história demanda uma pesquisa sobre a vida no interior do Rio Grande do Sul, sobre o modo de vida de uma cidade do interior. Então o objeto de pesquisa é o meu passado, mas sobretudo características próprias da rotina em uma comunidade repleta de quartéis do exército e dependente da produção rural. Algo bem distinto do que vivo hoje em dia morando no centro de São Paulo. Busco então pesquisar e anotar ao máximo, até as características estarem bem internalizadas ao ponto de me sentir seguro para escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas da escrita são mais fáceis de resolver porque eu costumo estar envolvido em dois ou três projetos que andam em paralelo. Quando um trava, normalmente consigo fluir no outro. Quando os dois travam, costumo ler – leio livros de filosofia ou de antropologia. Fatalmente algo ali me desperta de novo o impulso de escrever (nem sempre algo que me agrada, mas o botão delete no computador é terapêutico e libertador). A procrastinação já me é uma dificuldade absolutamente real. Há dias em que muitas coisas me interessam e isso faz com que eu adie. Adio editar poemas e montar um livro. Adio dar sequência às histórias. Isso geralmente me preocupa e me incomoda. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, posso dizer que o ego, por aqui, é um vigilante atento. Mas sinto que publicar, aos 31 anos, meu primeiro livro de poemas – um livro que reunia escritos de vários períodos diferentes, de certa forma me libertou dessa preocupação de agradar – e de me agradar, de modo que hoje eu continuo escrevendo porque tenho isso como uma carência existencial, para mobiliar e mobilizar o meu verbo ser, mas sobretudo eu escrevo o que acho que devo, o que acho que tenho para dizer, o que sinto ser urgente na minha precária percepção do mundo. O que isso vai representar para as outras pessoas já é algo que foge do meu controle – e de certa forma me dá gosto quando sou surpreendido com a recepção de algo. Quanto aos projetos longos, não consegui diagnosticar em mim, ainda, nenhuma ansiedade. Tenho curtido bastante a convivência com personagens, as descobertas de características deles, a forma como eles se comportam ou a imaginação de como eles se comportariam em situações cotidianas. Talvez isso tenha alguma relação com a pandemia e com o isolamento social. Sempre fui uma pessoa adepta a estar rodeado de amigos. No fim, sei que muitos desses projetos, dessas ideias de história, não terminarão. Me consola a imortalidade de algumas figuras que convivem comigo num banco de praça da minha imaginação. Entretanto, tenho a expectativa de terminar ao menos um ou dois dos projetos longos que tenho rabiscado nos cadernos aqui de casa. Quero que alguém veja como estão vestidos os meus amigos imaginários.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Faço inúmeras releituras. Trabalho excessivamente no texto, acho que isso é bem corriqueiro nos processos de escrita. Meu primeiro e único livro, A Parte Viva da Noite, de poemas, esgotou recentemente e o editor perguntou se eu queria “corrigir algo” para uma futura reimpressão. Mudei 8 poemas. Queria mudar mais, mas resolvi me policiar. Como eu disse, a grande maioria das vezes escrevo à mão. Ao passar a limpo no computador, edito. Depois imprimo e releio. Edito. Ao corrigir no computador os apontamentos que fiz à mão na versão impressa, edito. Ao selecionar para algo, edito. E assim vai. Já aconteceu de eu fazer todo esse processo e o poema publicado ser a primeira versão, exatamente como escrito à mão. Quanto a mostrar, costumo sim. Tenho amigos que são ótimos leitores, pessoas em quem confio e que tem grande paciência para ler e reler os meus escritos. Ao menos os meus poemas. Os textos ficcionais, exceto dois ou três contos, ainda não mostrei para ninguém. Acho que vão precisar maturar ainda bastante até eu me sentir seguro de expor. De me expor, no caso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto muito de escrever à mão, gosto do movimento físico, do formato da letra, da relação da letra com o sentimento, a gravidade e a urgência do que se está escrevendo, tanto na poesia quanto na prosa. É impressionante ver a oscilação do sentimento expresso assim, de forma motora. Algumas vezes mal consigo compreender a minha própria escrita e acho isso uma parte muito bonita do processo. No entanto, acho que algumas coisas preciso escrever no computador direto, justamente pela velocidade, por uma imposição do ritmo. A mão é mais lerda que o pensamento, isso acho que todo mundo sabe. E o computador é um grande aliado, permite se criar várias versões de um mesmo tema, de um mesmo texto. Acho, então, que nesse ponto sou híbrido – e a escolha é muito mais instintiva do que propriamente racional. E por incrível que pareça, a decisão de escrever no computador ou à mão diz muito também com as condições de espaço, do que tenho à disposição para criar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho o meu processo de ter ideias algo um pouco caótico, algo que não pode ser organizado ou explicitado como fruto de um método. Muitas vezes tive ideias caminhando, pois costumo (ou costumava, quando o mundo era algo que a gente minimamente conhecia) fazer caminhadas, tanto em Porto Alegre quanto aqui em São Paulo. Nestas caminhadas, surgem ideias que eu prontamente anoto como rascunho no meu e-mail. Muitas vezes as ideias surgem provocadas por outras expressões artísticas. Músicas, filmes, exposições de arte. Pintura em geral é algo que me dá ideias, tanto de conteúdo quanto de forma. De resto, acho que o meu processo é um esmiuçar particular do pouco de cotidiano que tenho e que faz parte da minha rotina. Este estar no mundo que, no meu caso, se cinge a um apartamento, um supermercado, uma padaria, alguns quarteirões, algumas dezenas de pessoas conhecidas e outra de pessoas desconhecidas que, por alguma razão, vão me chamar atenção. Acho, contudo, que o passado, meu passado, minhas lembranças e minhas invenções a partir de fragmentos de passados alheios são, por enquanto, a fonte mais adequável à minha sede.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a escrever por uma brincadeira, fazia versos metrificados, rimados e o passar do tempo me fez perceber que a escrita é bem mais importante e “fisiológico” do que eu percebia. Hoje em dia, dividindo minha rotina entre advogado e poeta/escritor, percebo que passo muitas horas do meu dia em volta da literatura e que eu preciso disso tanto quanto preciso advogar para pagar as contas. Não é como se a escrita pagasse as contas da alma ou do espírito, é como se a escrita e a leitura me deixassem sempre à vista quem eu sou e eu preciso me reconhecer para ter certa alegria. Então sim: a escrita passou a ser cotidiana e imprescindível para mim. Como respondi anteriormente, por mais caótico que seja o processo, eu tenho me preocupado em me organizar dentro desse caos. Salvo os arquivos por data e assunto, trabalho no que acho que pode vir a ser um livro, busco organizar minhas intuições. Se eu pudesse dizer algo a mim mesmo, diria para ter medo, sim, mas para que eu me aproxime desse medo, para compreendê-lo, escutá-lo – e diria para não esquecer da curiosidade que eu tinha quando muito jovem mexia em tudo no ferro velho que foi do meu avô e que tinha no pátio da casa onde morava, onde eu abria as coisas, quebrava, tudo para descobrir o que tinha dentro. Acho que meu processo de escrita tem muito disso. Quebrar e esconder as palavras quebradas. Me esconder no emaranhado de fios de cobre, esconder um pouco do cotidiano para ver o que surge quando se decompõem as supostas verdades. E por fim eu diria para mim mesmo que a gente ainda é muito parecido, por pior que isso seja quanto se tem alguma pretensão no mundo literário (o que não sei se é o meu caso).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria muito de escrever um livro que explorasse a história de um grupo de quase-humanos ou de recém-humanos, recém emancipados da pessoa-bruta e que de alguma forma atravessaram oceanos congelados ou longuíssimas distâncias para povoar esse continente que a gente chama de América, mas que devia ter outro nome logo no princípio da linguagem – gostaria de imaginar e escrever essa origem dos habitantes primeiros desse lado do mundo onde moramos hoje, nem que para isso tivesse que criar dois deuses, um fundando a humanidade aqui, outro fundando a humanidade na África. Me seduz muito essa gênese. E eu gostaria bastante de ler algo ficcional que explore a existência de vida muito semelhante à humana em algum planeta com condições muito semelhantes à terra. Gosto muito do Universo. Acho um tema que não precisa se ater à ficção científica, mas concordo que essa seja uma opinião um tanto isolada. Anda raro diagnosticar a vida por aqui mesmo, imagina há anos-luz das nossas possibilidades?