João Nunes é crítico de cinema e escritor, formado em teologia e jornalismo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A partir de 2007 comecei a trabalhar em casa. Fiz acordo com a empresa Correio Popular de Campinas, onde eu era crítico de cinema, e comecei a prestar serviços para ela. Isso me obrigava estabelecer uma rotina diária, mais ou menos a mesma de quando trabalhava na redação. Levantar, tomar café, banho, etc, e, por volta das 9h, sentar-me ao computador. A única diferença: eu não precisava trocar de roupa. Na medida em que o tempo passou, fui estabelecendo uma rotina bem pessoal. Se precisar cochilar uns dez ou quinze minutos, eu tenho essa liberdade. Ou fazer alguma coisa na rua, como ir ao banco, tirar uma fotocópia. A rotina ajuda estabelecer uma regra para você mesmo. É necessário ter disciplina, muita disciplina e organização. Afinal, estou com computador nas mãos e poderia viajar pelas redes sociais ou dar uma paradinha para ver televisão ou coisas desse tipo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu costumo trabalhar melhor durante a manhã. Acordo por volta das seis horas e minha manhã rende muito com a cabeça fresca. Eu disse seis horas, mas no auge da criação os últimos dois livros (Um Dia na Vida, romance; e Paulínia – Uma História de Cinema, relato sobre o polo de cinema da cidade, ambos em 2018) eu comecei a levantar cada vez mais cedo. Cinco, depois quatro, três. Dormia um pouco mais cedo e quando acordava no meio da noite a cabeça estava limpa. Os melhores momentos de produção criativa foram efetuados nesses horários.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Levo o ritmo do trabalho na medida da necessidade. Se vou escrever um texto para concurso e tenho prazo, trabalho com especial atenção sobre aquele texto. Fora isso, escrevo todos os dias, mas não me sinto obrigado a escrever ao menos uma linha por dia. Têm muitos dias que não saem nada. Então, costumo revisar os capítulos mais ou menos definidos. O livro sobre o polo de cinema de Paulínia exigiu muito trabalho de pesquisa. Fiz a pesquisa no Correio Popular e li tudo o que achei lá. Depois fui para a internet, também lendo os textos. Mas não estabeleci uma ordem. No mesmo dia em que decidi escrever sobre Paulínia eu sentei diante do computador e fiz a apresentação do livro. Escrevi três livros nos quais tive de fazer pesquisa e era confortável ler tudo no papel e ter esse material a mão quando eu precisasse: Paulínia – Uma História de Cinema (terminando), Renato – O Discreto Charme do Futebol (Pontes, 2014) e 25 Anos + Um – A História de Trair e Coçar (Giostri, 2010).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou muito do impulso. Disse-lhe acima que no dia em que decidi escrever sobre Paulínia eu comecei imediatamente a escrever. Nos três livros citados, estabeleci a ordem (que pode mudar) dos capítulos e, como são temáticos, tudo o que lia a respeito eu colocava no capítulo adequado. E isso também se dá na ficção. Posso escrever o final do livro primeiro. Se ele está definido, sei que é aquilo que eu quero, eu escrevo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É exatamente como lidar com as travas da vida. No nosso cotidiano, há coisas que nos favorecem; outras que não, aquelas que nos estimulam e as que provocam efeito contrário, o desestímulo – e a gente tem de lidar com isso o tempo todo. Escrever, em que pese ser um trabalho criativo, é igual a qualquer outro. O lado criativo (e aqui talvez resida uma diferença bem visível) pesa muito porque somos levados a questionar nossa capacidade, nosso talento. Mas é isto: lidamos com a frustração literária e com expectativas não alcançadas como lidamos com os problemas do dia a dia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Inúmeras. Não há parâmetro. E tenho um amigo escritor, Maurício de Almeida, que em 2017 ganhou um dos três prêmios São Paulo de Literatura, com A Instrução da Noite (Rocco). Sou amigo dele há quase quinze anos. Tudo o que eu escrevo ele lê e vice-versa – também escrevemos seis peças teatrais em parceria e estamos na sétima. Ao longo dos anos temos mantido um pacto: se o texto for bom, a gente elogia; se for ruim, a gente detona. Então, quando ele diz que gostou do meu texto é porque gostou mesmo. Se for ruim, ele fala. Isso nos dá confiança de expressar-nos livremente sobre aquilo que escrevemos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou quase um analfabeto em tecnologia, ela me estressa muito. Mas, sim, faço tudo no computador. Uso o papel para a revisão. Imprimo o texto e faço uma leitura mais acurada possível. Aí, sim, só o papel nos mostra os erros e acertos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vêm de mil lugares. Das leituras (tem escritor que não lê, assim como há cineastas que não vão ao cinema), dos filmes, da observação – eu adoro olhar pessoas e conversar com pessoas. Muitas coisas que escrevo vêm da observação. Nossa peça (Maurício e eu) Quando a lua estiver na Sétima Casa nasceu assim. Faço caminhada em um grande parque da cidade (o Taquaral) e vejo uma situação dramática e falo: isso dá uma peça. E há projetos que surgem pela necessidade. Eu acompanhei o polo de Paulínia desde a construção até o último dia e precisava contar essa história. Lancei em 2017 o livro Estou vivo (Pontes), mas a ideia não foi minha, mas de uma pessoa que trabalha em um centro de recuperação. São treze depoimentos de pessoas que sofreram traumas físicos e renasceram em uma vida diferente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sou jornalista. Na áurea época do impresso nós chegávamos à redação às 9h e nos mostravam quantas páginas brancas teríamos que encher naquele dia até às 17h: seis, oito, dez, doze. Se tivesse como encher, legal. Se, não, desse um jeito. Levei muito disso para a literatura, mas foi um equívoco. Na literatura é necessário apuro. Por isso um livro demora tanto para ser escrito. Vivo atualmente a fase obsessiva de reescrever e reescrever e reescrever. Hoje, não tenho coragem de ler meus textos antigos porque eu os reescreveria todos. Mas isso não é produtivo. Não queiram ler meus dois livros primeiro. Não vale a pena. Da primeira novela, Partido ao Meio (Pontes, 1999), eu gosto da ideia e do desenvolvimento dele na narrativa, mas é ruim como literatura. Do segundo, As Mãos do Pelé (Pontes, 2006, contos de futebol) também acontece como ideia, mas está mal escrito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sei dizer, não tenho a menor ideia de um livro que eu gostaria de ler. Acho que todos os grandes livros lançados de alguma maneira respondem às minhas expectativas. Tanto que a vida passa e nós não lemos um monte de livros que seriam obrigatórios. Neste momento estou lendo Doutor Fausto (Thomas Mann). É impressionante como ele responde questões contemporâneas porque ele fala sobre seres humanos e todas as nossas contradições. Os grandes clássicos fazem isso. Li e reli o primeiro volume de Tempo Perdido, do Marcel Proust – outros volumes me esperam. Ler um sujeito como esse me é suficiente. Refiro-me a ele, ao Mann e todos os grandes. É sempre uma surpresa descobrir coisas que nunca eu tinha pensado e que foram escritas muito antes de nós e estão disponíveis para serem acessadas.