João Batista Melo é escritor, cineasta e compositor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante muito tempo segui uma rotina bem definida. Por décadas tive um emprego fixo ao qual me dedicava no mínimo oito horas por dia, cinco dias por semana. À literatura e ao cinema restavam poucas horas à noite e nos finais de semana, descontando-se o tempo que eu precisava dedicar à família, aos amigos e, claro, aos livros, filmes, músicas. Enfim, era uma rotina na qual sobrava relativamente pouco tempo para a produção literária ou para me dedicar aos projetos de cinema. Na última década, a criação musical entrou também nessa disputa por espaço na minha rotina, já que comecei a me dedicar à composição orquestral.
Enfim, quase nunca eu tinha disponibilidade para escrever de manhã, exceto nas férias ou nos finais de semana. Coincidentemente, minhas tentativas de escrever nesse período raramente davam certo, e, com o tempo, eu próprio me convenci de que eu escrevia melhor à noite.
Há poucos anos consegui ter mais flexibilidade na administração do meu tempo, e comecei a tentar escrever pela manhã, mas não funcionou, e então normalmente dedico essa parte do dia a cuidar das atividades mais burocráticas, que, aliás, existem aos montes na atividade de produção cinematográfica no Brasil, pois somos obrigados a passar mais tempo preparando projetos para entrar em editais do que efetivamente produzindo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Seja por hábito ou tendência, acho que escrevo melhor a partir do entardecer. Parece que é necessário o sol ir desaparecendo para que a minha criatividade chegue. Provavelmente é apenas uma mania, mas tem funcionado bem dessa forma. O ritual que sempre mantive foi o de escrever ouvindo músicas, sempre trilhas sonoras de filmes. John Williams, Ennio Morricone, John Barry, Bruce Broughton, Vangelis, entre outros, estão sempre no entorno do meu processo criativo. Não por coincidência, quase todos os meus livros têm o registro de agradecimento a algum desses compositores. Parece que o fluxo das suas músicas, que já foram construídas pensando no envolvimento do espectador ou na criação de um clima nos filmes, me ajudam a avançar no mundo imaginário da minha criatividade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias. Normalmente produzo em fases. Quando mergulho num novo conto ou num romance, trabalho de forma intensiva, incontáveis horas por dia, vários dias seguidos, e quando termino o processo eu paro e fico sem escrever por um tempo imponderável.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nem sempre tomo notas. No caso de contos, costumo anotar uma síntese minúscula da temática, inclusive porque se não faço isso, normalmente eu me esqueço das idéias, quase sempre em caráter definitivo. Uma boa parte dos meus trabalhos depende de informações históricas ou científicas e, nesse caso, costumo pesquisar simultaneamente ao processo de criação. Muitas vezes interrompo a escrita para ler um livro ou artigo correlato ao tema sobre o qual estou trabalhando. E de maneira geral pesquiso exaustivamente. Por exemplo, para escrever o romance Malditas Fronteiras, eu tive que ler muitos livros, tanto antes de começar quanto durante a escrita, sobre a Segunda Guerra, a cultura e a história alemãs, toda a história brasileira das primeiras décadas do século XX, o processo e a economia da produção de cerveja, os castelos da Bavária, mobiliário e vestuário dos anos 1940, dados históricos de Belo Horizonte, de Blumenau, a tecnologia e a história dos dirigíveis, técnicas da esgrima, e por aí afora. Isso se traduziu em dezenas de livros e artigos sobre o tema principal e sobre temas correlatos. Sobre os quais eu tomava notas enquanto pensava no desdobramento de um próximo capítulo. E muitas vezes percorro esse mesmo caminho para escrever um conto de poucas páginas.
Mas nem sempre há esse trânsito fluido entre a pesquisa e a escrita. No caso do próprio Malditas Fronteiras, a ideia inicial e as primeiras pesquisas aconteceram uns vinte anos antes de eu escrever a primeira linha do romance.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esses são alguns dos meus principais problemas, em especial a procrastinação. Tanto que gosto quando recebo convites para escrever textos para algum projeto, porque nesses casos há um prazo a ser cumprido, que me obriga a produzir dentro de um determinado período de tempo. A minha dificuldade maior é sempre começar. Depois que o texto decola, quer seja um conto ou um romance, não tenho problemas para me manter escrevendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso inúmeras vezes. Na verdade, acho que nunca considero um texto pronto. Eu quase nunca reescrevo totalmente algum trabalho, mas por outro lado enquanto eu tenho oportunidade de cortar ou substituir frases e palavras, eu mexo interminavelmente nos textos. Isso inclui quando reviso provas, quando preparo material para uma nova edição, enfim, um texto meu é algo que está sempre me pedindo para ser alterado. Acho que se eu pudesse pediria de volta os exemplares que já estão com os leitores para fazer algumas modificações.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Durante muito tempo eu escrevi somente à mão, com caneta esferográfica azul e num tipo de papel, hoje em desuso, chamado papel jornal. Meus dois primeiros livros de contos foram inteiramente escritos assim. Até que comecei a escrever Patagônia, meu primeiro romance. Quando eu estava com umas cem páginas do livro prontas, olhei para aquele tanto de papeis manuscritos que precisariam ser passados a limpo, para a minha letra tão difícil de ser lida, e decidi mandar meus hábitos às favas. Escrevi as duzentas páginas seguintes diretamente no computador, sem que encontrasse nenhuma dificuldade nessa transição. Daí para frente, raramente escrevo à mão. O papel e a caneta servem apenas para pequenas anotações, ou para registrar alguma frase especial que passa pela minha mente quando estou longe do computador.
Joao Batista MeloHá muito tempo percebi que o melhor hábito para minha criatividade de escritor está exatamente na leitura. Procuro ler ficção constantemente, e de forma bem variada, inclusive nos períodos em que estou produzindo algum texto novo. Existem escritores que temem esse processo pensando que podem ser influenciados por aquilo que estão lendo. Não tenho esse temor porque não acho que eu vá sofrer influência daqueles livros que eu leio simultaneamente à criação dos meus próprios textos. Eu tenho certeza de que, em algum grau, eles me influenciam. E acho ótimo que isso aconteça. Porque sei também que essa influência será permeada ou filtrada pelo meu próprio estilo. Estilo que não é e nunca será perfeito, assim como nunca estará completo ou será definitivo. Eu gosto de me deixar influenciar pois penso que isso me fará um escritor melhor. Na literatura assim como na vida.
Quanto às idéias, elas vêm de qualquer lugar. Algum texto que li, um comentário de alguém, um filme, uma cena vista na rua. O romance Patagônia, por exemplo, veio da minha súbita e estranha vontade de escrever um faroeste, enquanto eu ouvia a bela trilha sonora do filme “Da terra nascem os homens”. O conto “As baleias do Saguenay” surgiu quando eu viajava pelo Canadá e li um cartaz do governo de Quebec informando que as belugas não haviam desaparecido do Rio Saint Laurent nem estavam estéreis em decorrência da poluição.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Embora hoje eu escreva bem menos do que antes, talvez o que tenha mudado seja minha autoconfiança. O que eu me diria, se pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, seria para hesitar menos antes de escrever, para acreditar mais na minha capacidade de produzir um bom texto. E por outro lado eu me cobraria ser mais disciplinado, ter horários bem definidos para escrever, e produzir sempre alguma coisa, independente da qualidade. Acho que perdi muito tempo à espera de frases e idéias perfeitas, que às vezes vinham, mas com essa expectativa talvez se desperdice muito tempo. Se não ficar bom, é para isso que existe a revisão ou, em último caso, a lixeira real ou virtual.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há muitos projetos que estou procrastinando para começar: novas coletâneas de contos, novos romances. Os livros que eu gostaria de ler e não existem são aqueles que eu tento escrever. Mas, de maneira geral, acredito que todos os livros já estão aí em algum lugar. O problema é a nossa incapacidade, no período de uma vida, de conhecer todos, ou pelo menos os bons livros. Por mais que leiamos, qual a porcentagem dos bons escritores brasileiros que nós realmente conhecemos? Qual é a porcentagem dos autores internacionais? Há literaturas nacionais das quais nunca lemos ou leremos uma linha sequer. E certamente há muitos textos maravilhosos que não teremos a possibilidade de conhecer algum dia. Talvez algum livro publicado do outro lado do mundo. Talvez algum livro publicado na nossa própria cidade. E nós podemos nunca saber da existência desse livro e, talvez, até mesmo do seu autor.