Jéssica Moreira é escritora e jornalista, autora de “VÃO: trens, marretas e outras histórias” (Patuá).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Todos os dias, por volta das 8h ou 9h, eu me levanto. Escovo os dentes, tomo café e leio notícias. Sou escritora e jornalista. Assino diversas newsletters de veículos nacionais e internacionais. Tento ler as minhas preferidas diariamente. São colunas, reportagens, artigos ou podcasts. A ideia aqui é me manter informada, exercer meu trabalho como jornalista, mas também buscar assuntos para meus textos literários. Adoro ler artigos e reportagens de profundidade, com algum teor literário. Muitas vezes, surgem ideias de crônicas ou poemas por meio da leitura de veículos midiáticos. Isso faz parte do meu processo criativo, pois os assuntos e as variadas linhas editoriais me despertam a criatividade. Eu faço uma brincadeira de anotar frases ou palavras fortes de um texto e guardá-las em um bloco de notas do celular chamado “notícias que podem virar poema”. Muitas vezes, depois dessa “brincadeira”, eu realmente fiz um poema que conversava com os assuntos lidos, vide “199 anos da Independência”, “Oração às crianças pretas assassinadas por violência policial” e “As queimadas do Pantanal“.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto do período matutino e também da noite. Definitivamente, não sou vespertina. Eu sinto que as leituras matutinas noticiosas despertam minha escrita. Chego até mesmo a anotar palavras ou um conjunto delas que pode se tornar produção literária. Outras vezes, começo realmente a escrever. Além disso, não há outras preocupações, o dia está começando, sinto a mente mais livre para criar. Também funciono muito bem à noite. A casa está mais silenciosa, não há pedidos emergenciais de trabalho ou outras coisas que interfiram no processo. Muitas ideias que surgem durante o dia são lapidadas à noite. É um momento de poder riscar, sair em busca dos melhores sinônimos, colocar alguma música pra tocar e me aprofundar no texto que desejo. Há alguns meses tenho escrito um diário sempre no fim do dia. Um diário de crônicas. Eu escrevo sobre assuntos que me atravessaram de algum modo, seja por meio das notícias, familiares ou trocados por amigos. Porém, é importante dizer que isso se deu mais durante a pandemia, pois antes de pandemia, quando eu saía todos os dias para trabalhar, o trajeto de casa até o trabalho era um momento de criação. Meu primeiro livro autoral “VÃO: trens, marretas e outras histórias” foi escrito totalmente em minhas viagens de trem. Escuto histórias ou observo diálogos, vivências de pessoas e trabalhadores(as) dentr dos vagões e escrevo sobre isso. Assim surgiu VÃO. Mas possuo diferentes processos. Outra tentativa foi a criação do perfil no Instagram “A Janela dos Outros”, onde recebo fotos de pessoas e crio um verso ou mini-conto para elas. Já recebi cerca de umas 100 fotos, mas nem sempre consegui escrever algo. Porém, é muito especial essa troca e na pandemia algumas pessoas disseram que me enviar fotos foi um jeito de passar o isolamento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias eu escrevo, mas nem sempre no mesmo projeto literário. Antes da pandemia, eu realmente escrevia todos os dias no trem. Assim que a pandemia começou e eu passei para o home office, eu precisei me adequar. Demorou um tempo, para ser muito honesta. Eu sentia muita falta de estar em movimento. Ver gente. Ouvir outras histórias, além das que eu poderia criar. Então, demorou pra eu criar uma nova rotina, mais interna, mais para dentro. Foi então que comecei a escrever crônicas diárias, como cito acima. Crônicas que me ajudam a sintetizar ideias e que, ao fim de um período, podem até mesmo se tornar um livro. Hoje minha meta é escrever uma crônica por dia ao menos. Não estou envolvida em um projeto literário específico, então, estou aproveitando para ler muito e escrever essas crônicas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que a jornalista que existe em mim sempre vai se encontrar com a escritora. Antes de escrever um artigo ou reportagem, eu pesquiso muito. Quero saber dados, ouvir o máximo de fontes que consigo, pois acho que isso enriquece qualquer material. Na literatura, as pesquisas são muito presentes também. É claro que com finalidade distinta, mas eu pesquiso muito, principalmente porque acredito que a nossa escrita também pode ser um jeito de diálogo com outras pessoas, quando publicada (nas redes ou algum periódico). Nunca abro mão de ler muito sobre um assunto antes de escrever, pois além de conteúdo, isso me dá palavras também. Eu sempre caminho pelo poema e a crônica (uma mescla desses dois estilos também). Depois das pesquisas e leituras, eu vou tentando juntar as palavras, as ideias. Mas nem sempre sai no mesmo dia. Mas eu escrevo mesmo assim. Hoje em dia eu espero um pouco pra publicar nas redes sociais, por exemplo. Eu sinto que escrever é como fazer pão. Precisa deixar descansar algumas vezes, voltar no outro dia, pois a mente fica mais livre pra ter outras ideias, para editar o texto, limpar o que não precisa. Mas o meu jeito de mover da pesquisa à escrita é indo pro papel (ou word) mesmo. Fico tentando entender na prática mesmo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu já sofri muito com esse ofício: escrever. E confesso que ainda sofro. Sofro na hora de produzir, sofro na hora de publicar. Sofro com a repercussão: negativa ou, muitas vezes, a não repercussão. Sendo muito honesta, escrever e viver num mundo rodeado de algoritmos nos deixa frustradas muitas vezes, entristecidas, principalmente quando sua escrita vai contra os ideários de uma parcela da população que é preconceituosa, racista e machista. Mas nesse processo, eu tenho aprendido a seguir o meu caminho. Como diria Toni Morrison, o racismo está aí para nos distrair, para nos desviar de nossos objetivos. E quem escreve pode querer publicar e ter grande alcance, mas antes de tudo eu, Jéssica, quero que o meu objetivo seja escrever (e aprender a cada dia). Eu faço terapia e em quase toda sessão eu reflito sobre a produção de meus textos, sobre repercussões e como isso me atravessa. Um exercício sugerido por meu terapeuta foi o de escrever um diário sobre o que eu sentia em relação à escrita. Eu, então, tendo personificar minha escrita nesses diários, como se o diário fosse da própria escrita. Fiz um pouco isso antes de publicar meu livro, o VÃO. Eu fiz uma entrevista com o livro, para tentar entender o que ele esperava ao ser publicado. Parece uma loucura dizer isso, mas deu certo. O livro foi meu processo mais longo, mas ao mesmo tempo mais maduro e menos frustrado, pois eu segui o meu objetivo em sua escrita, e não o que estavam esperando de mim. Ou seja, eu lido com todos esses sentimentos conflitantes também escrevendo. Escrever é, ao mesmo tempo, meu problema e solução.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. Até depois de publicado eu reviso. Meu livro foi enviado a umas 15 pessoas, pelo menos, antes de ser publicado. Eu acho interessante termos uma amostra de como o público vai reagir. No jornalismo, nenhum trabalho é publicado sem revisão. Eu me criei muito nessa lógica e, mesmo quando estou na produção de um verso que seja, eu leio e releio muitas vezes. Não tenham receio de fazer isso, pois há uma grande oportunidade de crescer e de enriquecer o texto. Não tenham medo de mudar palavras, frases. Excluir muitas coisa ou até quase tudo. Trabalhar o desapego é muito importante para quem escreve. É um exercício difícil, mas fundamental para alcançar o objetivo que deseja com o texto. Isso não quer dizer que você não pode errar. Aliás, erre, erre muito, experimente, escreva, poste. Mas também tente experimentar esse processo de revisão. Eleja amigos de confiança (não só literária, mas confiança afetiva, que possam ser honestos sem arrogância) e mostre a eles/elas sua produção. Fazer isso sempre me ajuda muito mesmo, pois há muita coisa que a gente não vê, mas o outro vê, principalmente por não estar tão dentro do projeto como a gente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu uso o que tiver na hora. Muitas vezes foi o papel. Hoje em dia o computador e o celular têm sido minhas plataformas de guardar ideias e até de produção. Muitas vezes, quando quero escrever algo mais próximo, que converse com outras pessoas, até começo escrevendo no Instagram e no Facebook direto, pois ali é um espaço de troca, por ser uma rede social. Embora eu copie e cole depois, e revise, eu uso isso como estratégia para soltar a mão na hora de escrever algo. Comigo funciona, mas sei que pode desviar a atenção de outras pessoas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como contei acima, eu tento de tudo (risos). A leitura me ajuda a ter ideias. Tento escrever a partir do estilo da autora ou autor que estou lendo no momento. Mas a leitura da vida (do dia a dia na minha cabeça, a roupa sendo lavada, o carro do ovo passando misturado ao latir dos cachorros na rua), o dia a dia dos vendedores ambulantes nos trens, absolutamente tudo ao meu redor vida matéria-prima para meus textos. De tudo isso, ler é meu lugar favorito para o despertar de ideias. No meu processo pessoal, ler ajuda muito. Me dá muitas ideias de textos, de versos. Adoro observar o estilo de cada escritor/escritora. Faço dos livros uma escola de escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A primeira coisa que eu diria a mim mesma é o que eu digo a qualquer pessoa que está começando a escrever: continue escrevendo, escreva muito e leia muito. Não só os livros, mas a vida. Toda a vida ao seu redor. Em casa, na rua, no transporte público: leia as vidas que atravessam a sua. Colecione o máximo de palavras que conseguir. Tenha sempre um dicionário analógico por perto, para te ajudar a dar mais corpo ao que quer dizer. Mais que isso, se alimente de muitas palavras e de muita gente diferente, assim você vai encontrando o seu tom de voz, a sua voz narrativa. Mais que tudo: confie na sua palavra. Confie no que você está escrevendo, principalmente se isso passa pelo coração. Isso não quer dizer que o processo será romântico e fácil. Pelo contrário, vai ser mais difícil. Mas acredito que quando escrevemos a partir do que está dentro, pode ser que a gente consiga dialogar mais com o dentro do outro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um livro afrofuturístico que também dialogasse com o gênero de terror. Algo próximo dos filmes US e Get Out, mas tendo as periferias como cenário. Com certeza já há alguns nesse sentido, mas eu quero muito construir um projeto que caminhe nesta linha. Sou apaixonada por filmes de terror e pelo estudo de memória. Acho que todos eles trabalham memória e história de alguma forma, além de mostrar muitas camadas complexas do ser humano. Aprendo muito com esses filmes e quero muito, um dia, voltar aqui para contar como foi o processo de escrever algo assim.