Jarid Arraes é escritora, cordelista e poeta, autora de Heroínas Negras Brasileiras e As Lendas de Dandara.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo meio naturalmente, o corpo já habituado. Não me sinto bem quando durmo demais, dá até enxaqueca. Gosto de acordar cedo, fazer as coisas com calma, ficar um tempo com meu cachorro. Aliás, muitas vezes ele me acorda. E aí depende do que tenho planejado para o dia, mas geralmente trabalho de casa, então as pontas são soltas. Confiro as redes sociais, quais são as mensagens, respondo os comentários das pessoas que acompanham meu trabalho – porque faço muita questão disso e, enquanto der, pretendo continuar – e vou fazendo minhas coisas. Não tenho muita rotina agendada, fica tudo meio parecido por questão de gosto, mas me sinto agoniada com obrigações repetitivas. Quando elas acontecem, tento inserir pequenas diversões no meio dessa rotina, como levar meu cachorro junto, se for possível. Antes eu detestava as manhãs, hoje eu só detesto durante o verão, porque odeio calor. Mas aí eu detesto todos os dias do verão, então tanto faz. (risos)
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor quando estou sozinha, quando o clima está menos quente, quando não tem muito barulho. Acho que é muito mais uma questão de humor do que de horário. Nem sempre é um humor bom, tranquilo. O meu livro mais recente, o Um buraco com meu nome, que será lançado em julho, foi um livro que saiu a partir de um humor de raiva, de agonia, de angústia. Mas não tenho nenhuma preparação. Sempre explico que minha escrita é aquele processo de insight, de uma reunião de referências, pensamentos, sentimentos, ideias, palavras, e isso tudo vai se juntando, juntando, até que se encaixa e parece que é de repente, mas teve isso tudo por trás. Aí eu sento e escrevo “do nada”. Isso, é claro, com poesia. Com cordel me sinto mais organizada, me planejo com mais tempo livre, escolho um domingo, separo umas quatro horas e aí escrevo uns cinco cordéis inteiros de uma sentada só. Tenho muita facilidade, né? Porque cresci ouvindo e lendo os cordéis do meu pai e do meu avô.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A poesia vai saindo quando sai. Um dia aqui, outro ali. Quando estava terminando meu livro mais recente e queria mais poemas, procurei me suprir de mais referências, mas é isso. Não funciono muito bem me obrigando a escrever poesia, porque, para mim, é um outro processo. Com prosa e cordel, consigo sentar e elaborar uma meta. Tem dia que a coisa sai melhor, tem dia que é uma desgraceira, mas faz parte do amadurecimento da escrita e dessa reunião de peças que, no fim, viram o lance todo. Eu sou bem desorganizada, me movo muito mais pelo desespero. Dá um negócio e eu penso que não escrevo nada há muito tempo e agora socorro não tem jeito mesmo. Ainda mais com tanta coisa paralela acontecendo. Esse é o desafio também: não deixar o ser escritora te impedir de escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho muita dificuldade para começar. Com o cordel, preciso marcar na agenda, me obrigar, preparar o dia inteiro para isso. O mesmo com a prosa. Já com a poesia, eu tenho alguns caderninhos, fico com eles, vou escrevendo quando o “de repente” chega, e só depois passo para o computador. Quando “esqueço” um pouco dos poemas é que vou avaliar se trabalho alguma coisa, se mudo palavras, enfim. Quando escrevo um poema, não fico pensando em técnica-forma-e-chatices-e-mungangas, porque sinto que me trava e bloqueia minha expressão mais sincera. Depois de trabalhar uma vez, esqueço lá mais um pouco, deixo um tempo, releio. Assim segue o processo até que eu publique. Chega uma hora que é preciso desistir daquilo que você escreveu, ser vencida pelo que você escreveu e compartilhar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olha, eu lido me desesperando. Principalmente num mercado como esse, num mundo literário como esse, cheio de racismo, de machismo, de exclusão regional. Como mulher negra e caririense, tenho que fazer tudo tantas vezes mais, sem o luxo da mediocridade. Mas é esse desespero que me bota um fogo quente, que me dá raiva e isso me move. Trabalho demais, estou sempre trabalhando, uso as redes de uma forma que as grandes editoras simplesmente não sabem usar. Como disse Jurema Werneck: temos orgulho de possuir o que nunca nos foi dado. Então acredito na resistência dessa literatura. Acredito que não é apenas sobre mim. Quando me desespero, sinto a ansiedade forte, lembro de que não é apenas sobre mim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, ao ponto de que pego um abuso danado do que escrevi. Mostro o que escrevo para amigas escritoras, gente que está na mesma pegada que eu e compreende a importância política das coisas que faço, não somente o lado estético da coisa, que também é muito importante, é claro. É todo um conjunto de coisas que merece muito cuidado. Sou muito exigente, muito crítica, sobretudo comigo mesma. No fundo, nunca acho que as coisas estão prontas, acho que estão possíveis, acho que elas são o que eu consegui que sejam, são o que é sincero. Então também trabalho esse ato de soltar. Conto com pessoas lindas que me fortalecem nesse processo de amadurecer o que escrevo, sou muito grata.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu meio que falei um pouquinho disso, mas depende do tipo de coisa que estou escrevendo. Poesia, primeiro escrevo em caderninhos, em agendas. Gosto de comprar cadernos e agendas bem lindos, coleciono, deixo guardados para sempre. Depois passo para o computador, porque aí vou trabalhar o poema, modificar, amadurecer, se for o caso. Já o cordel, a prosa, ou qualquer outro estilo, faço direto no computador. Ganho mais tempo, consigo aproveitar melhor meu pensamento, levar para todos os lugares utilizando algumas ferramentas.
Meu trabalho é o que é porque construí tudo nas redes sociais, utilizando a internet para quebrar as barreiras absurdas, racistas, machistas e regionalistas do mercado editorial. Então mantenho a minha rede, que é bem forte, converso com as pessoas que acompanham meu trabalho, respondo todo mundo, estou sempre presente. Minha energia vem disso, me alimento disso, me encorajo disso. É incrível ter essa amizade com quem me lê.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm muito das minhas opiniões, das coisas que penso sobre o mundo, dos meus sentimentos em relação ao que está ao meu redor, da vontade que tenho de ver coisas diferentes, criativas, que rompam o mais do mesmo. Gosto das histórias que ainda não foram contadas, dos personagens que não foram vistos, das vozes que tentaram silenciar, mas que resistiram. Isso me emociona, me move. Acho que isso pode ser escrito em diversas linguagens e formas. Acho que essa é minha principal fonte de criatividade. Consigo usar isso para ter ideias muito diferentes, levantar projetos distintos e provocar alguns debates que considero necessários no meio literário. E para me manter consciente, afiada, estou aberta ao novo, ao diverso, buscando referências, lendo muito mais do que é branco, masculino, sudestino ou sulista, validado pela academia. Isso faz tanta diferença…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Acho que me autorizei a escrever e me expressar muito mais livremente. E vejo que passei pelo que eu precisava passar. Escrevi o que eu precisava escrever para que hoje eu pudesse lançar o Um buraco com meu nome, que considero um livro que me representa intensamente. Meus livros anteriores são como raízes, são processos de cura, são resgates e afirmações. Tenho muito orgulho deles, eles construíram minha carreira, trouxeram pessoas incríveis, abriram caminhos maravilhosos e a partir deles muita coisa ainda virá. Agora eu me permito fazer coisas um pouco diferentes também, experimentar, expandir. Penso que criatividade e escrita é isso. Se eu pudesse voltar eu diria apenas que é isso aí, está dando tudo certo, é isso mesmo. Que bom que hoje posso dizer isso. É uma alegria imensa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um romance que a ideia está toda aqui na minha cabeça, mas ainda não consegui começar a escrever e que também é esse livro que eu gostaria de ler, mas ainda não existe. (risos) O jeito é tentar me organizar, o que está cada vez mais difícil. Bora lá, quem sabe em breve.