Jaime Azevedo é jornalista, autor de “Tudo que Ama e Rasteja”, “M, Os Contos Gorgônicos” e “O Dedo da Santa”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Com o home office em tempos de pandemia a rotina ficou mais desorganizada, mas acabo acordando cedo para tomar café junto com a minha esposa e minha filha (apesar de nem sempre conseguir despertar junto com elas, assumo). Acompanho um pouco da aula à distância da minha menina até porque preciso esperar que ela libere o computador para que eu possa trabalhar – a concorrência pela máquina é grande em casa! Enquanto isso checo as notificações no celular e adianto os assuntos do trabalho. Definitivamente não sou uma pessoa matinal; se eu desse ouvidos ao meu corpo e valorizasse meus neurotransmissores o dia começaria lá pelas 10h da manhã…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O período da tarde é o ideal, a produtividade é maior e melhor, sem dúvidas. O nó da questão é que escrever não é, nem de longe, uma atividade profissional para mim, então sempre está relegada ao tempo que sobra – e longe de qualquer padrão ritualístico. Geralmente acabo escrevendo somente à noite, depois de cumpridas todas as tarefas do dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não escrevo todos os dias, nem mesmo quando tenho algum projeto com data de entrega em andamento. Vou escrever de acordo com minhas demandas internas, com o fluxo de ideias que surgem para nutrir o texto. Mesmo quando estou escrevendo uma narrativa longa, por exemplo, não estabeleço uma meta de palavras diárias, no máximo a meta global do livro inteiro (algo do tipo: quero fazer um livro que fique em pé sozinho; vi Rachel de Queiroz falando isso em uma entrevista e adorei).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha escrita é fundamentalmente caótica no que se refere ao início do processo. O trabalho é mental: as ideias vão surgindo, os temas, como se relacionam, e vou pensando sobre a narrativa de uma maneira mais geral, as imagens que quero evocar, as provocações, o clima geral da obra. Depois de tudo resolvido dentro da minha cabeça é que transponho o mapa mental para a tela em uma sinopse, escaleta, não sei o termo exato (minha formação é de jornalista; definitivamente amigo do texto, mas longe da ficção). No documento eu me permito manipular as ideias até os extremos, estruturar o enredo e estabelecer de forma mais organizada as relações entre o texto e os subtextos, signos e elementos extratextuais. A vantagem, para mim, é explorar as possibilidades sem ter o trabalho de escrever muito, apenas através de tópicos rápidos (a preguiça é uma forma pouco privilegiada de eficiência). Isso, claro, em narrativas mais longas. Contos são outro processo, mais instantâneo: é direto do cérebro para a prosa. Algumas vezes eu pesquiso antes sobre os temas, em outras vou buscando informações enquanto escrevo, mas não costumo criar quadros, separar imagens ou fazer fichas de personagens. O meu processo é de valorizar a espontaneidade, colocar no papel meus processos mentais, ideias e opiniões. Quase sempre meus textos tem um componente de fábula, lugares e personagens irreais, talvez para escapar da pesquisa mais aprofundada mas definitivamente para permitir a criação de um universo paralelo, autônomo e separado. A realidade objetiva não me interessa muito como autor; prefiro o imaginário, a mitologia, as neuroses, o que sonham os homens.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O fracasso sempre está à espreita, mas eu tenho uma vantagem, e é das boas: não vivo de literatura… Escrevo quando eu quero, quando dá, atendendo aos caprichos das ideias. Apenas uma vez enfrentei um prazo, com o livro “O Dedo da Santa” para a coleção da Editora Draco, mas a ideia que eu já vinha acalentando antes do convite encaixou-se bem na proposta do editor. A questão das expectativas é crucial e irrelevante ao mesmo tempo. Escrever é um jogo estranho onde você escreve para alguém (afinal um texto existe para ser lido) mas apresenta uma expressão particular, única, sua visão sobre as coisas. A escrita para mim é o território da liberdade criativa, sem amarras; eu mando naquele universo feito de palavras, naquelas pessoas flagrantemente falsas que povoam as páginas. Nunca conseguiria participar da criação de uma obra escrita a quatro mãos, por exemplo: qual a graça de censurar suas ideias ainda no nascedouro? Estou lá, nas páginas, para falar de coisas que eu acho que tem que ser discutidas: caos, sexo, política, choque e absurdo. Eu sou condescendente comigo mesmo, com meus textos, quero algum prazer dessa experiência literária. Quanto mais individual é a expressão do autor, eu acredito, mais interesse a narrativa desperta – escrever para agradar acaba sendo morte da criatividade. Então se estabelece essa dinâmica estranha entre leitor e autor que racionalizo escrevendo para mim mesmo, sendo autor e leitor ao mesmo tempo – se eu gostar está tudo resolvido. O horror em particular é um jogo ainda mais sórdido: o leitor busca o próprio sofrimento, quer ser torturado e surpreendido, experimentar o choque.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu não costumo reler um texto mais extenso logo depois de finalizado, já estou enjoado daquilo tudo e meu olhar vai estar viciado mesmo, cego para as imperfeições. Prefiro passar logo para algum amigo que, na minha cabeça, tem o perfil adequado para avaliar aquela obra em particular. É algo que eu acho importante: a adequação desse primeiro leitor externo às intenções da narrativa. É preciso ser muito cuidadoso com quem lê essas coisas tão frescas, imaturas. Eu não lido bem com críticas, minha reação sempre é de fúria contida e desconforto: é estranho ter que explicar o que isso ou aquilo quer dizer, excruciante, e é melhor que eu tenha liberdade para brigar e ser desagradável. O que eu não consigo escapar é da minha irmã: ela sempre lê primeiro tudo que eu escrevo, é um contrato familiar. Esse primeiro leitor vai analisar o texto de uma forma mais geral mas acaba dando uma olhada nas questões gramaticais que escaparam também, o que é bem útil.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é de dependência absoluta. Já cheguei a dar um tempo das redes sociais (intensifiquei demais o uso durante a pandemia, talvez buscando o mundo lá fora mesmo que através das telas) e o celular é quase uma prótese da qual estou em um constante e frustrado processo de desapego. Escrevo sempre no computador, às vezes no celular também, nunca no papel; é trabalhoso e minha letra é horrível. Costumo criar os arquivos no Google Docs para que o texto fique acessível em qualquer dispositivo, a qualquer hora, com a vantagem de facilitar o compartilhamento para leitores iniciais, revisores e editores.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei exatamente de onde vêm as ideias gerais, o coração de cada livro. Acho que é uma combinação do que eu ouço, leio, vejo, jogo e experimento – minha vida e as mídias que consumo. Os detalhes vou copiando dos outros: diálogos, subtramas, personagens… Existe algo não escrito no mundo? A maior parte do que fazemos é recombinar esses textos que já vivenciamos, fingir que é original e torcer para que ninguém descubra. Quando alguém me pega após cometido o crime o álibi é o de sempre: não é cópia, é referência. Não sofro dessa ansiedade criativa em relação à literatura; se não conseguir escrever eu apenas não escrevo, é a vantagem de não precisar disso para viver. Meu trabalho do “mundo real” também envolve criatividade e é bem mais frustrante: design e propaganda.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu não paro muito para refletir sobre o que ou como eu escrevo, somente em momentos como este, esta entrevista. Algo mudou, tenho certeza, mas é como mofo na parede do quarto: você não percebe a mancha crescendo se a vê todos os dias. É inegável que, ao ler um livro um tempo depois de publicado, tenho milhares de ideias para melhorar aquilo – mas tudo pode ser melhorado. Então acaba não sendo muito sobre o processo ou o estilo, mas sobre cada texto em particular. E o conselho: eu não tenho nada para me dizer, disseram pra mim! Quando lancei meu primeiro livro, “M, Os Contos Gorgônicos”, Pablo Capistrano, um grande autor e filósofo potiguar (leiam “Pequenas Catástrofes”) fez a orelha da obra e entregou o ouro em uma conversa: “O importante, Jaime, é continuar publicando, produzindo. Deixa o resto pra lá”. Com ou sem leitores eu vou continuar lançando um livro de vez em quando, um conto, uma novela.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não é um projeto, mas um desejo: gostaria de escrever um livro para ganhar todo o dinheiro do mundo, resolver todas as minhas questões financeiras em definitivo. Virar filme, série, camiseta, lancheira, chiclete, action figures e embalagem de preservativo para viver de royalties para sempre. O livro eu gostaria de ler, sinceramente, não sei qual é: os melhores são os que nos surpreendem, que a gente nem sabia que precisava.