Isadora Sinay é escritora, doutora em letras, autora de “Você não Deve Esquecer Nada”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias em que trabalho de casa, eu acordo por volta das 7:00 e tomo café lendo algum artigo longo da internet ou de revistas como a New Yorker. Eu gosto particularmente dos que são sobre algum assunto extremamente específico e desconectado de qualquer coisa atual, tipo hábitos de pequenas comunidades mórmons. Eu sinto que começar o dia lendo sobre algo que eu não tenho a menor necessidade de saber cria uma espécie de calma, um espaço para coisas que são só interessantes porque são.
Depois disso, eu vou para o escritório, respondo meus e-mails e começo a trabalhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto de escrever pela manhã, sinto que meu foco é melhor e minha cabeça ainda não está tomada por todas as coisas que vão acontecendo ao longo do dia. Para a escrita de ficção eu também acho que ainda estou mais próxima de todas aquelas ideias que flutuam enquanto você enrola na cama e que sempre se mostram úteis.
Normalmente eu preparo um café ou chá, coloco meu celular no não perturbe e fumo um cigarro antes de começar. As vezes eu acho que a verdadeira coisa que nunca vai me deixar parar de fumar é a escrita: nada cria um vazio no tempo quanto os dez minutos olhando para a fumaça subindo antes de começar a escrever ou quando eu travo em algum ponto. O ministério da saúde vai ter que me perdoar por essa apologia a maus hábitos, mas a minha criatividade é extremamente tabagista.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando eu estava escrevendo meu doutorado (que acabou se tornando meu primeiro livro) eu escrevia todos os dias e me coloquei uma meta (que raramente cumpri, vamos ser sinceros). Hoje eu não tenho mais nenhum tipo de prazo para minha escrita, mas também tenho um trabalho fixo como professora de ensino médio e faço freelas de tradução. O que isso acabou significando por um tempo é que a escrita foi engolida pela falta de tempo até que eu me vi muito frustrada por isso e sentindo que eu tinha deixado que os trabalhos que serviam para me dar espaço para escrever a tinham engolido, então passei a reservar um dia.
Agora, segunda-feira é dia de escrever. Se eu tenho algum prazo, uma resenha para um jornal, ou um ensaio que já prometi para uma revista literária, essa acaba sendo minha meta do dia. Senão, se estou trabalhando em projetos pessoais, a coisa é mais livre: eu escrevo até a hora que sinto que nada mais de bom vai sair da minha cabeça e aí paro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é sempre horrível. No doutorado eu brincava que queria ser uma acadêmica que só lia e guardava as ideias na própria cabeça, sem precisar nunca escrever uma linha.
Eu sou muito perfeccionista e minha luta constante na escrita é me permitir versões ruins das coisas, rascunhos, organizar as ideias no papel mesmo que elas não estejam “bem-escritas”. Eu tenho melhorado nisso e acho que é o hábito mais essencial para minha escrita: ser capaz de uma primeira versão que é só ideias no papel.
Isso é interessante também porque eu escrevo muitos ensaios e o ensaio, o próprio Montaigne definiu, é um pensar na página. É da natureza dele que você comece sem saber para onde ir, que você só comece e vá vendo para onde seu texto te leva, quais os ângulos que sua ideia te apresenta. Começar é sempre horrível, mas eu sou o tipo de escritora que uma vez que começou se deixa levar pelo fluxo e vai.
Curiosamente, embora eu trabalhe muito com não-ficção e escrita acadêmica, eu raramente volto nas minhas notas uma vez que o texto começou. A pesquisa me serve para criar a organização mental, para saber para onde ir. Depois, exceto quando o texto precisa de uma citação, eu não costumo voltar nelas. Com o tempo eu acabei aprendendo primeiro que a pesquisa nunca termina, o que termina é seu prazo, mas também que uma boa pesquisa é aquela que você introjeta, que te faz conhecer intimamente seu objeto e escrever a partir daí.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Muito mal (risos).
Uma vez alguém me disse que a procrastinação era essencial para o trabalho criativo, enquanto você não está escrevendo, aquilo está acontecendo dentro de você. Eu acredito na verdade disso, mas também luto com a linha entre ter o texto acontecendo dentro de mim e ele já ter acontecido, mas eu estar paralisada pelo medo de torná-lo concreto. Eu sou muito paralisada, tanto pelo medo de não corresponder às expectativas quanto pelas versões imperfeitas e necessárias. Eu tenho melhorado nessa segunda parte, mas não é fácil.
Algo que me ajuda muito quando travo com a escrita é fazer algo manual e pontual. Nunca se fez tanto pão numa casa quanto quando eu estava no limite do prazo do doutorado. Para mim, ir para a cozinha e assar alguma coisa ao mesmo tempo ocupa minhas mãos e libera minha cabeça de um jeito mais calmo, menos ansioso, que permite às ideias fluírem e se organizarem e me dá um projeto que termina em algumas horas e a satisfação disso alivia um pouco a angústia da escrita longa.
Hoje estou trabalhando em um primeiro romance e acho que a dificuldade vem também de eu ter que me comprometer comigo mesma. O processo vai ser longo, mas não há prazos nem relatórios de bolsa, eu preciso manter a coisa indo só porque eu decidi. Acho isso bastante difícil também, mas ainda não sei como lidar, acho que vou ler o arquivo de entrevistas daqui para ter ideias.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O texto acadêmico eu reviso várias vezes e em geral gosto de pedir que alguém que não é da área leia. Eu aviso que ela não precisa entender tudo, mas é importante conseguir acompanhar o raciocínio. Isso porque é muito importante para mim uma escrita teórica que não fique encastelada, falando sempre para os mesmos especialistas, eu quero que qualquer pessoa interessada em literatura possa ler meus trabalhos e, portanto, é essencial testar em alguém leigo.
Eu mantenho uma newsletter mensal que nunca reviso, mesmo que isso signifique enviá-la com erros de português. Isso porque a proposta ali são ensaios pessoais e o tipo de vulnerabilidade que tira de mim os melhores textos não resiste ao reexame. Se eu ler demais, eu desisto de enviar ou então começo a editar para me esconder e os textos perdem a força. Acho que a mágica da internet as vezes é essa, você pode colocar um texto mal-acabado no mundo porque dois dias depois ele já virou papel de peixe digital.
Para a ficção minha relação com tudo isso é mais conturbada. Isso porque é um tipo de texto ao mesmo tempo pessoal e elaborado, vulnerável e técnico. Eu reviso algumas vezes, mas acho muito difícil mostrar para pessoas próximas, acabo preferindo enviá-los direto para editores ou outras pessoas que vão ler sem as lentes de me conhecer pessoalmente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu escrevo sempre no computador. Eu odeio começar as coisas, mas uma vez começado sou aquela escritora que só entra no fluxo e para isso digitar acompanha melhor a velocidade do meu pensamento. Às vezes, quando estruturas precisam de um rascunho espacial (setas indo de um lado para o outro, desenhos, esquemas, coisas assim) eu uso um caderno e também sempre ando por aí com um caderninho para anotar ideias, embora nos últimos tempos eu tenho achado mais útil gravar mensagens de voz para mim mesma no celular. Eu gosto de fazer caminhadas e ir narrando ideias no celular como uma maluca.
Porém, eu mantenho um diário pessoal desde que era criança e esse sempre foi a mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Da minha experiência pessoal e do que eu leio e assisto. Como escritora de ficção tudo que eu faço é muito ancorado na experiência vivida, ficcionalizações que me permitem explorar com mais carga dramática sentimentos e situações pelas quais eu passei. Autoficção, se você quiser chamar assim.
Mas muitas vezes a inspiração para como abordar um tema ou estruturar uma determinada narrativa vem de coisas que eu li ou vi. Recentemente, li “Esforços Olímpicos” da Annelise Chen e esse livro me causou quase uma epifania sobre como alinhar elementos ensaísticos à escrita de ficção.
Eu sempre fui uma leitora quase compulsiva, mas também assisto filmes e séries de televisão com a mesma voracidade. Eu acho que a ficção dos outros é minha maior fonte de inspiração como ensaísta porque é ver uma narrativa alheia que me permite olhar para algum tema que estou interessada. Eu uso muito esse recurso: tomar uma obra de ficção qualquer, levantar os temas que ela aborda e seguir daí um fio da minha própria reflexão.
Tudo isso e sair para caminhar, sair para caminhar sempre me dá ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu tenho aprendido a ser mais disciplinada e principalmente a conviver melhor com a falha e o processo. Antes eu me preocupava muito em ter um texto bom desde a primeira versão, hoje eu sou mais capaz de conviver com todas as versões ruins dele até chegar lá.
Mas eu diria também para nunca abandonar uma certa entrega e instintividade da escrita, eu ainda acredito que alguns textos apenas jorram de você e funcionam assim, você só precisa dar uma lapidada depois. Meu principal objetivo é manter esse jorro e aprender a domá-lo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero muito escrever um livro de ensaios que partam de um feminismo cotidiano. Não textos teóricos, mas ensaios a respeito do ser mulher no mundo, vendo coisas, assistindo coisas e se relacionando. Um livro que talvez pense na formação da intelectual mulher.
Isso, aliás é algo que eu sinto falta. Sinto muita falta também de narrativas de mulheres já não tão jovens que não sejam definidas pela maternidade. Eu sinto que toda personagem feminina com mais de 30 é definida por ser ou não mãe e eu quero muito ver alguma que simplesmente esteja fora disso.
Eu tenho pensado muito nas relações entre estruturas familiares e afetivas tradicionais e a forma como nós mulheres nos formamos intelectualmente e gostaria de ver isso mais refletido na ficção.
* Entrevista publicada em 10 de julho de 2022.