Iriene Borges é mestranda em Cinema pela UNESPAR.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De escrita? Para roteiros sim. Na poesia minha escrita é cíclica.
Meus roteiros estão parados, todavia, por estar em outros projetos e pela necessidade de sobrevivência, que às vezes nos exige mais tempo e dedicação. Então eu faço o que preciso fazer pela manhã, mas infelizmente nessa fase de pandemia não tem sido escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em se tratando de poesia, quando ela me pega eu escrevo a qualquer hora, em qualquer suporte. É um processo meio doído. Já ouvi a expressão “poesia vomitada” para os poemas que surgem do nada. Mas pra mim, a “poesia vomitada é um processo visceral, espasmódico, nauseante e incapacitante, até que o processo se conclua, nesse poema que dizem que “brota do nada”. As vezes eu procrastino o quanto posso, pois sei que quando começar a escrever o poema, só vou parar quando terminar. Para o roteiro o processo é mais tranquilo, mais racionalizado e técnico. Não mergulho nas imagens, as vejo em uma tela.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Na escrita de roteiros, eu já criei essa rotina de escrever todos e sim, funciona muito bem. Creio que ao escrever um roteiro a gente mergulha na história e ela vai ganhando vida própria. A história dialoga comigo o tempo todo, e eu preciso dar andamento na narrativa diariamente, até o desfecho, mas de uma forma mais tranquila. Talvez porque começo o roteiro ´com uma premissa, já prevendo o final, quando na poesia tudo é tão perto e intenso, e muitas vezes incerto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na poesia há uma compilação de vida vivida, de vivências, acho. E no tempo certo da poesia nascer eu me percebo no estágio final de uma espécie de ruminância. Eu não havia percebido essa ruminância das experiências e emoções em segundo plano, até ela clamar expressão, ar, mundo. Mas no roteiro já tenho a premissa, um recorte de vida que quero contar. E enquanto na poesia tudo é muito meu, tudo me revela, no roteiro posso dialogar com os personagens, e formá-los mediante pesquisa, ou emprestar minha bagagem sem me sentir desnudada . Uma das experiências mais interessantes de escrita que vivi foi a transformação do conto Helena Queria o chapéu, criado em versos, por quê nasceu como um poema, em um roteiro de longa-metragem. Perceber as necessidades de adaptação da narrativa, e o potencial das imagens evocadas pelo conto para criar cenários e novos personagens que possibilitassem essa história saltar do livro para a tela, expandiu minha percepção da arte da escrita e sobretudo da arte de contar histórias.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu já entendei que a poesia é cíclica. Para mim, pelo menos, escrever poesia é algo como “lavar a alma”, é o momento do louvor, da bênção, do esconjuro e do perdão. É um cântico necessário e libertador, que vem quando precisamos expressar algo. Já no roteiro também há um chamado, e há um tempo de maturação. Helena queria o chapéu é um roteiro escrito em dois meses. Scarlet Moon já é um projeto de roteiro que precisa de maturação. Eu tenho material para uma trilogia ou para uma série? Quando eu decidir e tiver tempo para escrever de fato essa história, provavelmente ela vai “surgir” em dois meses de escrita diária e sistemática, graças a essa maturação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso algumas vezes, mas nunca o suficiente. Faz falta ter a leitura de outras pessoas para me situar. Não é muito fácil achar leitores com o intuito de ter um feedback.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Poesia escrevo sempre à mão. Tenho coleções de cadernos. Reinicio o poema para recuperar o ritmo e, por isso, alguns cadernos estão cheios de um único poema reescrito. Roteiro é direto no computador, requer os softwares apropriados para facilitar. Claro que existem notas feitas à mão, desenhos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu acredito que as ideias criativas são uma reelaboração intuitiva de nossas experiências, e que exatamente por isso somos um reflexo de nossas experiências e do espírito do nosso tempo. Eu percebo em meu trabalho algumas características muito pessoais que prefiro não revelar, e que falam do meu embate comigo mesma e do meu embate com o mundo. É um bom combate, que precisa ser travado para que o grotesco se expresse no mundo transmutado em belo, ou quase. E essa intuição, claro, abre caminho para a busca, a pesquisa, e isso aumenta o repertório, o vocabulário. É um circulo vicioso do bem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu me descobri amante da poesia ainda muito pequena. Me descobri poeta na adolescência, e por muito tempo eu usei a poesia como um escudo. A poesia a meu ver conta lindas histórias que falam direto aos sentimentos, não requerem linearidade, mas são histórias. Eu, no entanto, neguei esse entendimento e suprimi essa necessidade narrativa. Foi através de minha formação acadêmica, como artista visual, que comecei a compreender essa narratividade que intrínseca ao meu trabalho. Mas só me emendei ao começar a escrever roteiros. Isso me faz lamentar os poemas descaradamente narrativos que descartei na adolescência. Ou até mesmo alguns satíricos, que reprimi por medo da minha própria ferocidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu escrevi um livro de poesia em 2018 chamado Perséfone em Hades, que pede continuidade. Esse foi um projeto que ruminei e maturei durante uns 10 anos. Foi concebido logo depois que escrevi um poema na voz masculina chamado Eros e Tânatos, sobre amor e morte, claro. Tencionei escrever Perséfone em Hades, como um poema. Tentei várias vezes ao longo dos anos, ciente de que o poema era sobre o inferno de amar. Para alguns, amar é um inferno sim. Bem, precisei de uma década para entender que seria um livro, que seria um livro de poesia cujos poemas seriam células independentes, mas quando juntos comporiam um organismo, um corpo literário narrativo pela jornada de amar. E quando comecei, concluí o livro e alguns meses. Escrevia todo dia, no ônibus, nos intervalos de aulas, onde desse. E no decorrer desse processo criativo eu compreendi que Perséfone, que já foi Cora, emergiu desse mundo sombrio, e precisa, na superfície achar um novo eu. Nem Perséfone, nem Cora. Não mais presa de um ciclo interminável, mas dona do próprio destino. Essa continuação ainda precisa existir. Protelo, talvez por não ter tempo para mergulhar em Perséfone agora, talvez por que a poesia ainda não me chamou de fato. Está maturando. E isso mostra que esse é meu projeto mais ambiciosos, pois reúne poesia e narrativa. E desde que o poema se revelou um livro, uma narrativa visual foi imaginada para complementar o quadro. E eu preciso de tempo e recursos para me debruçar sobre essa narrativa visual, que fecha meu circulo criativo poesia-narrativa literária-narrativa visual.
Esse livro ainda não existe, mas vai, um dia. O que de fato não existe e é uma utopia, é aquele que faria de mim uma escritora, uma poeta melhor, mais cedo. Se ele existe eu não soube, mas suponho que se existisse esse manual, teria chegado até mim de algum jeito.