IkaRo MaxX é poeta, editor e tradutor.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Uma das coisas que mais me admira em estar vivo é sentir a liberdade de decidir o que quero fazer, como quero e por quanto tempo sem qualquer traço de arrependimento por decisões que possam engendrar a continuidade ou a ruptura de um projeto. É uma dessas coisas que, quando você começa a fazer, fica difícil abdicar, você meio que se “vicia” a essa sensação de desprendimento favorável – mesmo que surjam imprevistos ou algumas adversidades que te levam a “vender” o seu tempo e sua energia para propósitos básicos de sobrevivência ou alguns dos tais “confortos” da vida plástica. Em minha vida em nível profundamente pessoal e subjetivo tudo flui e “funciona” com o seu próprio propósito sem o mínimo possível de interrupções e “propósitos” impostos por coisas de outras ordens.
Para responder especificamente sobre “projetos” eu teria que analisar as circunstâncias da vida no momento – sim, há tempos em que trabalho e faço coisas dentro de certas “programações” e “agendas”, seguindo as coisas à risca. Digo, não roboticamente ou muito preso às convenções, princípios e “precisões” minuciosas numa lógica de departamentalização do espaço-tempo, da acomodação de energia num certo enquadramento do existir, seguindo regras muito castradoras.
E sim, há momentos em que sou puramente “anárquico” e bem “I don’t give a shit…” em que me atiro na pura vivência com todo o direito à fruição, ao gozo, ao espontâneo, sem me macular ou chafurdar em qualquer tipo de automartírio, culpa católica ou “pressão” de classe socioeconômica.
Na maior parte do tempo, no entanto, busco uma deflagrada, consciente e alegre dança entre tais pólos extremos. Nem tão impositivamente organizado do tipo robô-ditador, nem tão “ao vento” no gosto daqueles que se perdem nas distrações e, assim, “procrastina”. Sempre que me distraio entro num fluxo existencial onde me perco me encontrando, sabe como é? Muitas vezes voltando com novas ideias e com as antigas melhor arejadas.
Dentro disso consigo comportar diversos projetos. Não que seja sempre assim (você percebe como evito como posso a coisa da “resposta definitiva”, né?).
Acho que todos nós somos múltiplos, o grande problema é que o capitalismo e as formas culturais da sobreviência atualmente impostas nos cindiram e então reinvidicam para si o foco de nossa atenção e energia – o que nos desagrega em termos mentais, em nossa saúde social, moral, espiritual e mesmo econômica. O que torna cada ser humano o palco marginal de uma esquizofrenia que leva ao decaimento e à decadência, ao burn-out, ao exercício falido de se cumprir papéis inautênticos para “fazer parte” desta mundo-loucura e não se sentir do lado de “fora” da sociedade ou do tempo. Isso nos torna cada vez mais alienados de nós mesmos, fatiados por canibais forças externas que são insaciáveis, jamais satisfeitas (e acabamos nos tornando objetos devorados refletidos no distorcido espelho dessa voracidade). E nesse mar de fragmentação se torna difícil encontrar o seu próprio centro, o seu próprio eixo e terreno fundacional, a estrutura real de si. (Viajei um pouco? Bem, a viagem faz farte: let’s trip together!)
Gosto de trabalhar quando a energia do trabalho me atravessa, me rasga e me colocar no humor “certo” (minimamente construtivo) para fazer as coisas – aliás, quem é que gosta de “trabalhar” com o tempo, as coisas, a faca, a corda no pescoço, né? No entanto, ás vezes (de forma alguma defendo essa pressão como algo que deva ser “normalizado”) essa “urgência” de certos prazos produzem “milagres”. Mas, como disse, só “ás vezes”. Depender dessa pressão é esquisita e esgotante em diversos níveis, como já disse.
Gostaria de poder fazer mais de me concentrar em uma coisa só – sabe aquilo de religiosamente se dedicar a algo? Gostaria muito de poder estar fazendo algo assim agora. No entanto, é justamente o capitalismo e suas ameaças amorais de degradação e exclusão do tal “pacto social” que me colocam na necessidade de ter que me fatiar, prostituir e imiscuir em várias versões de mim (ou que eles fizeram de mim!) para conseguir manter meus órgãos dentro de meu corpo funcionando ainda como um organismo ativo e nutrido e sob um teto com as coisas minimamente funcionais em meu entorno. Que triste isso, certo?
(Você que pensou em responder: ‘É, mas é assim que as coisas são.’ – Não! Se não existisse algum tipo de evolução histórica – sem levar em conta contingências acidentais como ‘asteróides’ ou acontecimentos naturais que tivessem tirado do ‘mapa da cadeia alimentar’ outras espécies mais perigosas como os ‘dinossauros’ – nossa espécie ainda estaria presa nas árvores sem precisar em pensar em trabalho para pagar o aluguel e as contas, cartões de créditos e etc.)
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Há certos projetos que precisam sim de certo planejamento para execução adequada – principalmente aqueles que pretendem, de algum modo, soarem mais “acadêmicos”, ou formalmente conceituais, inclinados a comunicarem algo também por meio de uma estrutura mais sólida, organizada, depurada, etc.
Mas, nem sempre é assim.
Como tenho a música, a performance e algum nível de “encenação” do sangue, acaba sendo um pouco mais fácil pra mim fazer certos trabalhos na “improvisação” – uma confiança absurda em meu nível de comunicação subconsciente com todo o universo dentro e fora de mim. Ou mesmo com até certa “cegueira” metódica, processual e intencionada – buscando mesmo o surgimento do imprevisível, do inaudito. Acho que é algo que acrescenta ao meu trabalho, à uma das formas possíveis de minha poética. No entanto, ela não trata apenas disso ou não se prende a nada que se possa ser dogmatizável ou canonificável. Ou fossilizável em algum ponto ou momento. É como uma serpente mágica que vai deixando camadas e peles ao longo de seu intrincado percurso e provações.
Deixar no fluxo é legal e positivo, em alguns momentos é o melhor. Em outros, definitivamente não.
E, dentro dos espectros presentes nesse ponto de vista, ás vezes, concluir é mais difícil do que começar. Tem momentos em que a primeira frase é como uma agulha no palheiro e em outros está logo abaixo do seu nariz, ao alcance dos seus dedos. Absolutamente tudo pode ser transformado em literatura – e eis a grande coisa, a flor enigmática, o cadafalso e a glória para uns e outros.
Em algum momento minha primeira frase do dia pode ser “que belo que ornitorrinco me tornei”, ou algo que minha mente acaba de esculpir no sabão ou no granito. Quem é que pode realmente saber?
Sinto que provavelmente alguns leitores poderão se confundir – mas, não vejo confusão alguma nisso. A não ser aquele que o cartesianismo e aristotelismo implantou em nossa educação ocidental como sendo a lógica inerente às coisas, quando na realidade é um campo de saber (a lógica) que ingressou no mundo primeiro pelas asfixiante e totalitária mente dualista, bipolarização e pela linguagem que se corrompeu da riqueza poética ao pauperismo da categorização delimitada. Um dos dias mais empobrecedores que padecemos enquanto seres vivos e humanos foi quando o conceito, ou a categoria, tornou-se a pedra (ilusoriamente) irremovível perante o qual o entendimento humano curvou-se como escravo e hermeneuta.
Sim, há beleza nas coisas pensadas e até logicamente construídas. Concordo sim. Nenhuma bela catedral poderia ser erguida sem a formulação exata de todas as fases, períodos, materiais, ligações, pré-condições e efeitos posteriores. Concordo que um músico de jazz não poderia colocar um tijolo e esperar com isso fazer uma Igreja em São Peterburgo, mas há de reconhecermos que a imemorialidade, a evanescência, o “perder-se no tempo”, o transcurso, o devir que desintegra e reconstrói como “outro”, o despedaçamento também pode atingir seus próprios cumes.
Um João Cabral de Melo Neto jamais, talvez, fosse possível num ambiente de puro fluxo freejazzístico, por exemplo. Fazes versos como aqueles exige mastigação minuciosa, numinosa e racional de cada sílaba, sentido e construção imagética a partir da materialidade das palavras.
E que há muita beleza nisso – nisso tudo. E que o ser humano se forja no fogo cruzado entre essas oposições que foram construídas como tais por uma cultura que gosta de compartimentar as coisas e dar nomes muito específicos a elas e assim restringi-las, impedindo a “contaminação” dos opostos – que pra mim é uma das coisas mais belas, indecorosas e deliciosas de se ter.
A todas essas coisas eu sussuro uma única palavra: VIDA!
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Cada livro, cada texto, cada palavra, pode ter sua própria natureza, seu próprio ciclo e pulsação.
O artista – quando verdadeiramente inspirado – é aquele ser capaz de se pôr na posição de abertura, de escuta e a partir daí pode ter a liberdade de ser tomado – de se deixar “levar” – ou tomar as coisas de acordo com certa disposição que delimitou antes de começar a fazer qualquer obra. Ele vai, assim, mover-se no campo aberto – ou fechado/delimitado – deste jogo de criar.
Afinal, existe alguma “regra” sagrada nesse jogo? Só reconheço como “sagrada” a regra que o próprio artista se coloca e que ele mesmo pode burlá-la se a obra pedir que assim seja. Ás vezes é uma batalha, um conflito, o que ocorre no peito, na cabeça, do artista. E isso pode vir à tona na obra – seja camuflado ou visivelmente.
Pode-se prever qual a rotina de uma guerra? Será que se conhece também o “amigo” ou o “inimigo” nela? Sim – boa parte do tempo batalhamos e nos enredamos internamente numa trama que é o processo da criação. Mas, nada disso esgota o sentido ou mesmo o caminho de se criar e se auto-criar no processo.
Ao final, não só a obra vem ao mundo, mas um novo “artista” emerge do processo – seja lá como ele o viveu ou o que enfrentou ou o que evitou ou o que descobriu ou não-descobriu.
No meu caso atual tenho escrito muito com música – de preferência música instrumental, sem palavras ou com sons não inteligíveis (me distraio muito com outros discursos mais elaborados…). Quando estou escrevendo poesia torno-me tão esponja que mesmo uma agulha caindo num quarto vizinho pode vir ao texto como um choque epiléptico do chão ao sentir as cócegas do medo de ser chão, ou a segurança de ser chão no momento em que os sentimentos desabam sobre a casa como uma chuva sem esperanças. As coisas são unitárias quando nossa capacidade de perceber não sufocam os objetos e os temas, não tentar escavar fossos para enterrá-los numa admiração babosa, num ventriloquismo solipsista, dentro de uma esfera de asfixia onde ventilamos algo como destacável de todo o resto. As vozes da harmonia cósmica cuspem decifrações que exigem diversos e escalonáveis sentidos de atenção. Todo recorte artístico de temporalidade ou espacialidade acaba sendo um pouco injusto e arbitrário, embora justo quanto ao grau de finitude e limitação de nossas faculdades perceptivas.
Em outros – como algumas prosas mais densas e concentradas – exigem o silêncio que gera esse “destacamento” arbitrário de que acabo de falar. Exije como espaço de exibição de suas qualidades, de suas capacidades, de sua dureza ou versatilidade – ás vezes até impõe-me seu próprio universo. E eu digo – “Ok, mostre-se, como você quer me aparecer? Assim? Não? Assim?” – e no fundo tá tudo bem.
A fusão e a confusão podem servir – e geralmente preservam certa inocência do devir ou certa natural capacidade de uma coisa se tornar outra, mesmo que isso possa chocar um ou outro leitor incauto.
Vai da ingenuidade ou da experiência do leitor, do fruidor. Ele também completa o que vivencia com sua própria vida.
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Quando se trata de um trabalho que investiga um tema, um objeto, um autor específico (como os de fundo mais “acadêmico”) um ambiente mais calmo e silencioso é bem mais promissor. Claro, porque a atenção precisa estar afinada e a mente não pode ser sublimada em distrações contínuas.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Minha técnica consiste em simplesmente viver (e no meio de uma pandemia com um governo de inspiração fascista estar e manter-se vivo é meio uma arte e desvio, concordam?). Mesmo procrastinar pode nos pôr num estado sagrado de parto silencioso e inconsciente. Você não gê a gestação – você não sabe sequer que está “grávido”! E, de repente, não mais que de repente, você tem aquele “enjôo” e BLERGH! Vomita! E quando percebe o seu vômito é ouro, é lindo, é corpulento e vigoroso porque ele veio pronto para bagunçar o mundo e as percepções das pessoas: quando se propõe a ser apreciado como obra.
Claro, não é sempre que funciona ou que isso é percebido dessa maneira.
Há textos – ou momentos – em que a fome é quem escreve (quase como uma alucinação). A saudade, a tara, a perversidade, o delírio, a mania, a luminosidade, a carência, o devaneio, a insaciabilidade… cada uma dessas coisas já encontrou a auréola de sua equação criativa em algum momento enquanto produzo ou produzi algo.
Existem, sem dúvida, aqueles momentos em que estamos tão mergulhados na coisa, no tal do problema, no trabalho – e em que estamos “atolados”, chafurdados” ou sem “perspectivas” – que o melhor que fazemos é “desligar” o modo “produtivo” e dar uma volta, respirar!… pelo bem de nossa saúde, nossa energia e até mesmo do próprio trabalho, da própria “obra”. E isso favorece as chances do Grand Insight, aquele momento “Eureka!” que tantos tem sonhado por toda a sua vida. Alguns ao ponto até de transformarem suas existências cotidianas em batalhas entre sombras em busca do sagrado momento do “óóóóó” quando as cortinas são abertas e os raios divinos de inspiração aquecem seus cenhos dissipando qualquer um dos sinais das incertezas, inseguranças e outros ladrões de força.
Se você sentir que empacou em algo… ou que está distraído demais, viva um pouco. Dê uma volta, veja algo, dê uma folga a si mesmo: gaste um pouco de sua energia física aprisionada. Depois regresse como um herói que foi a uma exaustiva guerra.
Com a dissipação desagregadora a mesma coisa. Vai chegar um momento em que você vai sentir que essa nuvem passou e vai retomar a coisa. Ou realmente desistir de vez, ou temporariamente. Já cheguei a desistir de algo e só retomar quinze anos depois. E foi bom que tivesse me ocorrido assim.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Eu não saberia te dizer, para ser bem franco. Costumo ir com muita fome e luxúria pra cima dos textos – não apenas os meus próprios. Há tantas vísceras colocadas ali, de tantos modos possíveis e inimagináveis.
Digo isso assim porque tem textos que me saíram fácil ou espontaneamente e um olhar mais demorado e profundo pode relevar camadas muito complexas do que um mero vômito verbal sem sentido intrínseco. Não sei bem explicar porque não é nada racional.
Minha obra é bastante variada em termos de vozes, registros, perspectivas, visões, tessituras, estruturas. Já comentei antes que permito com que personalidades – existentes ou não – se expressem da forma mais desmedida possível, sem travas, sem regras (e algumas vezes, sim, com regras, limites, formas estéticas e mesmo “padrões”, mesmo que invertidos).
Escrevo já há mais de duas décadas e não consigo de uma visão rápida e superficial apresentar qualquer hierarquização de importância, qualidade ou o que seja a respeito das obras que fiz.
Tenho obras espontâneas e que se querem transitórias (algumas performances, pela própria natureza irrepetível delas), brincadeiras literárias (como o caso de “Lóki-Down”), sátiras, ensaios, crônicas, narrativas curtas, aforismos, poesia em prosa, prosa poética, poesia de longo fôlego (“Ode a Lorca” e “O Céu Fechado Batendo Pregos em Nossos Olhos”), haikais, escrita experimental (“Saliva” ou “InacabadaMúsica”, por exemplo), teatro, teses (“68 teses provokeativas…”), antologias poéticas, traduções… detesto literalmente e literariamente quaisquer limitações. Não tenho perspectiva de me deixar capturar ou fixar em um “nicho” ou “estilo”.
De alguma forma meio que gosto de todas por refletirem honestamente certas condições específicas do mundo e de minha subjetividade quando foram criadas. Ironicamente algumas até com certos tons proféticos acurados que ainda me chocam um pouco.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Os temas me são revelados em insights que me acontecem com certa constância. Seja em certos acontecimentos cotidianos, acontecimentos históricos do mundo, eventos sonhados – tenho muitos e muitos textos, poemas, composições, experimentações audiovisuais que me brotaram de sonhos (um da última leva até apresentei em entrevista com o Canal Cloe, de número 60).
Às vezes vem de certa carência de algumas coisas – temas, approaches, perspectivas. Olhando o panorama ou a paisagem da época sinto que algumas coisas ou não estão lá ou não estão/são suficientemente consideradas. E, claro, toda época tem suas deficiências, suas lacunas e os artistas criadores atentos são capazes de, por meio de suas obras, criarem paisagens diversas e contrastantes de modo a não se perder numa certa homogeneidade discursiva, semiótica, que tem o efeito de certos consensos espaço-temporais.
Da mesma forma que não “hierarquizo” temas: do supérfluo, do corriqueiro ao mais abstrato, do acontecimento memorial da infância retomada ou recriada ao símbolo, do contato imersivo na natureza com o mais profundo da mente, da experiência místico-religiosa ao protesto político explosivo, não há nada de que alguma forma caiba em algum momento literário ou exija sua própria forma de apresentação estética. Posso desde analisar discursos usando instrumentais acadêmicos, lingüísticos, cinematicos, etc, a contar a impressão ingênua de uma expectativa amorosa com o mesmo nervo e capacidade de abarcar distintas realidades – a gama é ampla e eu não me furto a realmente fazer da literatura o espaço criativo par excellense. Um espaço de refutação do sórdido impregnado do histórico com a quimera, elucubração fantasticorgânica e sonho que é o fundo mesmo da vida que viceja. Refutar também se torna parte do processo criativo como destruir é parte do processo vivo e natural de criar.
Quanto ao tema do leitor tampouco o idealizo – até porque já cansei de pensar e projetar o “leitor do futuro”, aquele que potencialmente poderia descobrir a importância dessas coisas que expresso como um arquéologo que encontrasse uma lugar potente escondida no amontoada de quinquilharias dos milênios. Quero, apenas, que ele venha como ele realmente é: com seus traumas, com suas experiências e idiossincrasias, seus medos e pequenas ou grandes alegrias, com disposição ao erro e a experimentação, com a fome de outras vidas e realidades, possíveis e impossíveis utopias, transformações de si e da história universal.
O leitor deve saber que, antes de tudo, ele toca um corpo, ele exuma uma idéia imorredoura e que poderá lhe dar alguma luz em meio às confusões alimentadas pela ininterrupta conversa produzida em todos os meios.
O livro é apenas um meio ou um espelho que, no fundo, reflete aquele desejo que mal sabemos que existe e que, contudo, está sempre lá como um pequeno parasita em busca do momento de se deliciar e transformar internamente nossa própria percepção da realidade, das coisas, de nós mesmos.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Existem algumas pessoas únicas com as quais eu me sinto totalmente em sintonia – em casa mesmo – ao ponto de me permitir mostrar algumas coisas. Isso não ocorre sempre. Há momentos em que não comento nada com ninguém e chego já com um livro pronto e finalizado.
Já ocorreu de mostrar todo o processo de composição de uma obra a uma amiga, a uma outra que era minha amante, etc. Coisas assim. Hão os amigos e confidentes com os quais eu não tenho nenhuma censura ou vergonha para mostrar minhas coisas – mesmo quando estão em estado de rascunho. Não tenho medo do julgamento deles. Até lhes mostro partes de meus diários, falo-lhes sobre minha vida. Acho que posso dizer que agora não tenho mais o medo do julgamento de ninguém. Esse grau de liberdade é realmente um tanto rara.
Não me entendam mal, isso não é arrogância. Não é tampouco um sentimento de segurança inabalável. Minhas obras não existem para “agradar” – ela não existe com a intenção de ser tornar um “produto” comercializável dentro do capitalismo como rezado e pregado atualmente. Ela é uma aposta, um chamado selvagem, uma errância dialética visceral entre vida e obra de arte na qual uma não se dissocia da outra, mas são como unha e carne. Ela não tem nenhuma vontade de soar chata ou de ficar contando certas vantagens de “superioridade”. Ela deseja ser tomada e encarnada como um combustível para o propósito da liberdade, da paixão e do amor lúdico – do delírio alquímico, da excitação selvagem e destemida. Ela põe questões não para serem “respondidas definitivamente”, mas para abalar as estruturas sustentadas pelo sono no qual as convenções são tomadas como natureza e história.
Essas pessoas para as quais me permito mostrar me acompanham nesse meu percurso de desregramento ontológico há um bom tempo. Algumas delas tem até obras inéditas minhas guardadas – como presente (imagino até que um dia essas obras poderão ajudar essas pessoas, sei lá). Eu gosto muito de presentear as pessoas: dos conhecidos e amados até os desconhecidos. Sou bem conhecido por, de surpresa, aparecer com um texto, um poema, um relato, uma imagem ou canção para pessoas aleatórias – seja por caixa de mensagem ou mesmo em mesa de bar. Se fosse alguém bem mais favorecido material e economicamente minhas surpresas – em termos em presentes físicos e objetos de consumo, viagens pagas, concertos ou situações que o “dinheiro” podem favorecer, etc – seriam certamente muito mais extravagantes.
A quantidade de livros e poemas que já dei por aí… não tá no gibi! A dávida é algo mágico, um verdadeiro evento da espontaneidade que se derrama como luz solar sobre os seres da terra. O lado ruim disso é que… quando você acaba acostumando e cativando certo público com dádivas diversas durante muito tempo, algumas pessoas ficam resistentes a “comprar” algo seu – uma obra – ou a ajudar financeiramente um artista. É bizarro. É como se elas pensassem – “Ah, mas você me deu de graça por tantos anos… por que agora eu tenho que pagar por isso?” Bem, a minha resposta é: se você é autônomo e independente como editor e etc, você precisa pagar todos os serviços relacionados à publicação de um trabalho e tudo isso, infelizmente, custa dinheiro, né? Só quem tá do lado de cá entende quais os percalços enfrentados.
Se eu tivesse uma herança infinita você acha mesmo que eu me importaria? Imprimiria os livros mais belos e insanos e os daria gratuitamente para o universo inteiro! Foda-se! Foda-se o lucro e tudo o mais – acho que o capitalismo até poderia se desmontar com a destruição mesmo de tudo o relacionado à mais-valia e a apropriação do valor.
Escrever e publicar já coloca no mundo essa dádiva do combate, da energia, da transgiguração reveladora do desejo e do pensamento, da ação e da carne, a cópula das trevas com a mais gratuita irradiação de luz.
Minha maior dádiva consiste em inspirar e experimentar com outros essas “situações de pico” de que falam Hakim Bey e outros, os platôs deleuzianos, a esquiva erótica e o encamentamento xamânico e surreal. Ajudar a despertar àqueles que na realidade estão mortos e não tem a mínima idéia de que estejam.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Lembro que foi o dia em que finalmente desisti de seguir os passos guiados pelos outros e controlados pelas forças restritivas e conservadoras da cultura, da sociedade. Em que olhei no espelho e depois olhei pro mundo e disse: “Eu sou poeta e ninguém me tira o prazer e a dávida da poesia”, “não vou me deixar consumir na angústia da dúvida e na incerteza assassina de sanha materialista”.
O universo caótico se alinhou nesse exato momento em que me disse isso. Foi algo grandioso e exuberante, quase uma experiência mística relatada por gênios como Jacob Boëhme, Swedenborg, Blake, Eliphas Levy. Coisa de louco!
Minha família, conhecidos, e até mesmo gente que me admirava da época como músico virtuoso no underground pessoense em bloco (nasci na capital da Paraíba, em abril de 1985) achou que eu “surtei”, que enlouqueci totalmente. O peso disso foi enorme pra mim – principalmente o confronto com a sombra da loucura. O estigma de acabar ficando “louco” e, por isso, reduzido a um trapo, a algo descartável e sem valor.
Todas essas pessoas – salvo poucas exceções – achavam que eu não seria sério nisso – acharam que era uma coisa de “moda”, algo passageiro. Que eu desistiria diante dos primeiros obstáculos.
Como músico eles diziam que eu teria algum futuro – mas, só se eu usasse a música como hobby e tivesse uma “carreira segura” em qualquer emprego mais estável… quem saber um concurso público? (Meus pais e irmãos me mandavam SEMPRE editais abertos de concursos… – era uma mensagem deles e um aceno à desistência, ao fracasso.)
Gostaria realmente de ter sido apoiado desde o começo. De ouvir incentivos com palavras de acolhimento ou um “não se preocupe com nada – siga seu sonho.” Não foi o que aconteceu.
Sabia que seria difícil, principalmente para alguém que vem sem um amparo de alguém já estabelecido, debaixo do guarda-chuva de alguém realmente influente, “un protégé de quelqu’un”. No entanto, nunca lamentei isso e acho que isso legitima ainda mais minhas batalhas e torna o percurso ainda mais original em suas sutilezas e sortes.
E bem, a sorte tem andado ao meu lado de uns tempos pra cá.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
O maior de todos desafios é conseguir ‘pôr no mute’ o redemoinho de vozes em nosso redor para conseguir capturar a voz do sangue e os desejos da alma, do coração. Fazer o parte de seu próprio espírito em meio a tantos ruídos e tanta gente querendo nos “influenciar” é difícil e duro. Descobrir o que é realmente nosso e somente nosso. Há tantos tesouros fáceis e sedutores por aí. Só podemos nos apropriar daquilo que realmente possui nossa ressonância e nos reflete de algum modo.
E dentro disso também saber se guiar pela voz mais correta para o trabalho em questão – ás vezes até em meio a um processo de captação e escrita de um trabalho X escuto vozes em degladiação e mesmo outras de objeção… é preciso saber como driblá-las… ou se você optar por escutar as objeções… desistir do trabalho em si. Nem mesmo ousar começá-lo…
Seja em que lugar ou tempo for procuro sempre saber quais as regras do jogo de então – o zeitgeist e o tabuleiro – e pensar em quem são os que são ‘aceitos’ e os outsiders, os hereges, os fustigadores do instituído. Se eles são realmente autênticos e brilhantes são esses que eu busco escutar. Os ‘dropouts’, excluídos do festim, aqueles que são os magos maliciosos e os ladrões de fogo, os libertinos, os libertários, os criadores da contracultura.
Por não me sentir abraçado ou acolhido naturalmente em meu meio e me vendo incapaz de me conformar ou me tornar mais um em meio ao rebanho acabei tendo que inventar minha própria tradição. Até entender que houveram outros. Mas, daí eu já tinha forjado meu próprio estilo, então eles só vieram ao meu encontro para reforçar a minha posição de forasteiro, clandestino, boêmio e ‘fora da caixa’.
E como é bom poder vivenciar esses encontros – reais ou apenas dentro de minha caixa craniana! Ou no palco em chamas de meu coração.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Embora assim como todo mundo não tenha lido tudo produzido por aqui, até once conheço continuo achando “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus um dos livros mais honestamente hardcores escritos neste país. De fato! Num pequeno artigo que escrevi no blog da Provokeativa até disse como aquilo me impactara mais do que coisas absurdas e potentes advindas de um Antonin Artaud ou Alfred Jarry, por exemplo.
No campo da pura doideira continuo indicando os livros magníficos do Campos de Carvalho, especialmente “A lua vem da Ásia”, ou experimentalismos satíricos de Qorpo Santo e Sir Alfredo Bocamorta.
Absolutamente tudo de Hilda Hilst (grandiosa!) – o “Pornô Chic” é um espaço de reverência de sua exuberância luxuriosa.
“A ciranda das mulheres sábias”, “Mulheres que Correm com Lobos”, “Calibã e a Bruxa”, “O mito da Beleza” – modernos e essenciais.
Alguns de que não canso revisitar: Jorge Luis Borges (talvez um dos mais brilhantes e eruditos do mundo!), Jack London (aventureiro profundo e romântico visceral incomparável); William S. Burroughs (quase um tutor subversivo); “As Folhas da Relva” do grandioso Whitman, bem como Lawrence Ferlinghetti, Vladimir Maiakovski, Federico García Lorca, Bertold Brecht, Serguei Iessenin… me dão tesão sempre.
“O Diário de um Gênio” do Salvador Dalí – principalmente com as ideias da fenixicologia e o “tratado sobre peidos” que me faz rir sempre… me enche de inspiração e alegria.
Difícil querer parar… pois tem muita coisa.
Atualmente alguns livros, inclusive o de uma poeta nova que editei, “Meninas Loucas Não Vão Para O Céu”, da Tóia Azevedo. “A Mulher de Mil Olhos” de minha querida amiga Veronica Ramalho (curioso para ler o seu novíssimo “as três línguas”), “Vidro” de Roger Tieri…
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Ah, sim, aproveito para fazer aquilo que muitas vezes os poetas e escritores sentem-se envergonhados e tímidos de fazer, que é um pequeno “jabá” da minha pequena editora – porque, afinal, temos contas a pagar e eu acredito imensamente na potência transformadora desse projeto em termos de revolução pessoal: leiam todos – ou o que puderem/conseguirem – dos livros editados pela Provokeativa e pelo selo Bombs Not Books.
Infelizmente viver de literatura no Brasil é quase que uma impossibilidade, a despeito do país ser vasto e riquíssimo em termos de cultura, ainda assim a realidade do analfabetismo (funcional) e do conservadorismo careta são ainda bastante preponderantes nos principais meios de formação e instituições culturais e “artísticas”.
Além disso, o mito da valorização de uma obra/artista após sua morte parece ainda encantar a crítica e o público numa cantilena de pulverização da dignidade dos artistas, poetas e escritores – principalmente daqueles que, como eu e outros, desafiam todos os estatutos, princípios, ordens e regimentos do status quo, dos “juízes”, “pastores”, “professores”, “experts” e policiais que enquadram as subjetividades numa fôrma morta padronizada e nivelada por baixo. Como se sadisticamente a cultura fosse essa de deixar à míngua os mais bem dotados e venturosos de seus pensadores, prosadores, poetas, dançarinos, para alimentar apenas os servis cães de guarda da “boa consciência” social, diletantes que agradam o gosto de uma burguesia com espírito de porco. Para depois que da miséria, da pobreza, da indiferença e do silêncio – já mortos e incapazes de reagirem e se defenderem – eles os “resgatassem” como “profetas”, “visionários” e etc.
Bah!, um absurdo que reproduz outros absurdos que contamina e empobrece a existência como um todo.