Ian Uviedo é escritor e artista.

Como você começa seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A verdade é que tenho um sono absolutamente intranquilo. Desde a infância sofro com enxaquecas esporádicas que me atiravam na cama à tarde e roubavam o sono da noite. Isso fazia com que eu cantasse para mim mesmo para tentar dormir. Mais velho, por motivos que desconheço, comecei a ter constantes paralisias noturnas, quando não somente pesadelos. A paralisia noturna é um fenômeno neurológico perturbador e fascinante, porque envolve a situação do cérebro a meio caminho entre a inconsciência e a vigília. Quase todas as pessoas que conheço têm relatos. Todo mundo já passou por isso uma ou duas vezes na vida. O sentimento de estar paralisado dentro do próprio corpo. Sem falar nas inúmeras interpretações simbólicas que atravessam culturas e tempos, desde a lenda da pisadeira até a emblemática escultura de Eugéne Thivier. A questão é que comecei a ter paralisias e pesadelos assim pelo menos uma vez por semana, de modo que o sono nunca representou para mim um momento de descanso, mas sim algo que eu precisava encarar, com certo receio, do ponto de vista fisiológico. Digo isso para explicar que não, não tenho uma rotina matinal, porque minhas manhãs são muito variadas. Às vezes acordo cedo, mas geralmente cansado, e preciso de um tempo pra voltar à terra. Às vezes, e isso porque comecei a trabalhar como livreiro numa livraria que funciona das 16h às 00h, tento postergar o máximo possível o momento de acordar. Tenho a impressão que só acordo mesmo quando anoitece.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum tipo de ritual de preparação pra escrita?
Quando comecei a trabalhar no turno noturno da livraria julguei que me cansaria e poderia dormir melhor e trabalhar com os textos pela parte da tarde. Mas me enganei. O que acontece é que sou uma pessoa muito ansiosa. Não consigo trabalhar em algo que exige minha total atenção e inserção no estado criativo sabendo que ainda tem coisas para acontecer, ou que a qualquer momento alguma coisa pode acontecer (chegar uma entrega, uma visita inesperada, preocupações domésticas, profissionais etc). Não gosto da palavra ritual, porque prefiro dissociar a arte de qualquer ideia de liturgia, mas o que posso dizer é que sim preciso de uma atmosfera que seja absolutamente minha, e com o tempo fui bolando meios de encontrá-la. Isso quando estou trabalhando no texto que visa a publicação. O tempo todo estou tomando notas no meu caderno, e, principalmente, tirando fotos para usar nos textos depois. Quando baixa a madrugada, no geral eu me sirvo uma xícara de chá ou uma taça de vinho ou o que for, acendo um abajur, me isolo do mundo dentro dos fones de ouvido (me aventurando por músicas instrumentais, e isso é essencial, portanto há toda uma pesquisa musical análoga ao ofício da escrita), posiciono os livros-referências do texto em questão ao alcance da mão, meus cadernos cheios de anotações ao alcance da outra, e começo. Escrevo então de quatro a seis horas, mas não passo todas essas horas digitando. É meu período fora do tempo, em que quase consigo sentir a escrita fluindo. Levanto, olho pela janela, leio, vou tomar um copo d’água, enfim, tudo como um agente da palavra, que dita seu próprio ritmo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou uma pessoa que escreve — aquilo a que chamam um escritor — todos os dias. Mas não sento e digito todos os dias. Principalmente porque não é sempre que estou trabalhando na formulação de algo. Também há longos períodos de espera até que o texto esfrie e eu comece a me esquecer do desfecho das frases, que é meu jeito de tornar-me meu primeiro leitor. Acredito que faço anotações em meus cadernos todos os dias, nem que seja uma única frase. Às vezes estou andando na rua, ou lendo uma matéria, ou fazendo qualquer coisa aleatória e me deparo com algo que poderia muito bem ser ressignificado e casar com o texto que estou trabalhando nas madrugadas. Histórias que me contam, frases que pesco nos diálogos de desconhecidos (por isso é importante andar muito a pé), trechos de textos não-literários, tudo pode ser apropriado e transformado, e sou capaz de entrar numa agência dos correios só pra usar a caneta que fica acorrentada lá dentro. Não é preciso escrever todos os dias se todos os dias você mantém seu olhar selvagem, como compreenderam as vanguardas do século passado. Quanto ao conceito de “meta” para a escrita, o abomino tanto quanto fosse litúrgico. O que acontece é que às vezes o texto tem uma estrutura lógica. Por exemplo, estou trabalhando num texto neste momento cuja primeira parte tem vinte capítulos, cada um formado por uma lauda e meia. Eu sabia que precisava escrever dez páginas por noite para escrever essa primeira parte, mas isso não é uma meta, é a dinâmica do próprio texto, tanto que a segunda parte deste mesmo romance pede por um tempo bem mais lento, porque envolve aprofundamento da pesquisa e muito refinamento e cuidado na composição do narrador. Acho que a meta empedra, chateia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa pra escrita?
Há escritores que reúnem todo um material de pesquisa antes de escrever a primeira linha. Não é meu caso. Quando a ideia aparece, geralmente vinda de uma situação ou mesmo uma única imagem, eu a coloco no papel, vendo como se saem as palavras naquele novo espaço. A pesquisa surge depois, a um só tempo condicionada pela narrativa e condicionante para sua fluência. Me atraio muito por misturar com a ficção locais e personagens reais, e é preciso muita atenção e certeza para fazer isso sem escorregar, dois atributos intrínsecos ao estudo. Além disso, quando chego num momento do texto que sinto que preciso falar sobre o que não tenho muito domínio (a obssessão de algum personagem, por exemplo), aí me cerco de material sobre esse novo assunto até virar craque e poder falar com propriedade. Isso pode durar semanas. E, para mim, é a parte mais divertida. Todo conhecimento e toda a experiência é válida para um escritor, porque nunca se sabe quando você vai precisar deles. Toda aquela fauna de assuntos nos Anéis de Saturno, de W.G Sebald, é algo que me interessa bastante; usar da literatura para poder versar sobre assuntos que a atravessam. Das minhas pesquisas surgem novas situações pros textos, novos personagens, e de novas situações e novos personagens surgem novos assuntos para se pesquisar. Geralmente, e tenho contado com isso, o estudo sobre a coisa mais inusitada pode se relacionar com aquela primeira pesquisa que você fez no começo do trabalho. Quando acontece isso, você sabe que o texto está caminhando. E, muitas vezes, que o texto está pronto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e ansiedade de trabalhar com projetos longos?
Jogando no amistoso. Tento ser gentil com a criação, e procuro, quando encontro um modo de romper o bloqueio, não julgar em retrospectiva os motivos que fizeram textos ficarem para trás (são muitos). Não podemos condenar nossas experiências passadas usando as ferramentas que adquirimos vivendo justamente essas experiências. Pelo menos foi isso que entendi do que o Beckett disse com seu fail better. Quando, se em algum momento, a fruição de uma história estaca, procuro não encanar, transformando este tempo no tempo de maturação que todo texto requer para que o autor possa ler a si mesmo com consciência crítica. Enquanto isso, sigo com minhas anotações, poemas, colhendo do acaso cenas, situações e ideias que mais tarde sei que animarão aquele texto que descansa. Por exemplo, tenho um livro engavetado que ficou parado em um ponto específico durante um ano. Quando o inverno seguinte chegou, o pesquei do arquivo morto, reli, corrigi e o concluí ao longo de mais um ano. Sei que falando assim parece que não sou uma pessoa disciplinada, mas por ora acredito que a disciplina esteja mais no exercício do olhar do que na prática do ofício. Ou no ofício da prática. Sobre o medo de não corresponder às expectativas, creio que o melhor jeito é não tê-las.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Creio que nesse momento estou mais mostrando meus trabalhos para os outros do que publicando-os, subtraindo aí as publicações nas minhas redes sociais e etc. Natalia Ginzburg dizia que nunca relia os próprios textos depois que eles estavam prontos, mas que enquanto os escrevia ela os reescrevia, e muito. Não chego a esse nível hiperbólico, mas reviso muito o texto enquanto o estou formulando, sobretudo os mais longos. O processo com os contos é mais simples, mecânico: termino de escrever, passa um dia ou dois, imprimo, empunho uma caneta e vou corrigindo na folha ou eliminando tudo que me soa dissonante. Vou no arquivo e arrumo. Imprimo de novo. E de novo. E de novo. Até ficar perfeitamente imperfeito. Com os textos mais longos, por exemplo as novelas e os romances, sempre antes de retomar a escrita eu volto algumas páginas, para pegar o embalo e no tranco atacar o espaço em branco. Usando esse método, vou percebendo erros, ruídos, manias, que num toque dissolvo. Texto pronto, mesmo processo. Esperar, imprimir, riscar, corrigir. Esperar, imprimir, riscar, corrigir. A mesma coisa, mas muito mais alongada no tempo. É importante que a pessoa que escreve tenha seus interlocutores, correspondentes em quem ela confia e com quem possa trocar impressões a um só tempo honestas e generosas sobre suas criações. Tenho sim meus interlocutores. Pessoas que sei que entendem o que busco fazer e pegam o texto do ângulo certo pra comentar. Minha sorte é conhecer muita gente que admiro imensamente e saber que posso contar com elas para o constante diálogo e aprendizado. Gosto de ouvir. Interiorizar. Mudar. Mas como diz o David Lynch, se a ideia é sua, o final cut tem que ser seu.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Ao mesmo tempo que acho interessante, acho complicada a boa assimilação do desenvolvimento — porque a tecnologia é um conceito que ultrapassa em muito, e paradoxalmente, a revolução digital — da tecnologia pela literatura. Talvez porque o modo como nós lidamos com os nossos smartphones (palavra que aliás já soa obsoleta), e o efeito que o excesso de redes sociais e informações causa em nosso cérebro, ainda me pareça oposta à relação que tenho com meu processo criativo. A constante companhia de todas as informações da terra, ali no bolso, suprime o olhar para as coisas pequenas, efêmeras e insignificantes, detalhes que, se bem trabalhados, funcionam nas páginas do nosso texto. Ao mesmo tempo, é admirável quando um autor (eu tenho minhas dificuldades) consegue inserir as redes sociais, os aparelhos eletrônicos e as angústias contemporâneas causadas por toda essa miscelânea entre carne e máquina, porque indica a constante apropriação e adaptação da linguagem literária em relação ao mundo em que está envolvida. Li em algum canto que hoje a realidade se parece muito mais com os romances de Philip K. Dick do que com os de Dostoiévski, e ainda assim o russo é muito mais acionado quando se trata de consultar um oráculo no meio dos cânones. Há um descompasso, e me incluo nele, porque acho que há uma contradição rítmica. Mas conheço muita gente que está se saindo bem, inventando e reinventando, escrevendo poemas-gifs, posts-crônicas, contos em duzentos e oitenta caracteres, e é fascinante. Me sinto bem diante do computador para escrever, sobretudo prosa. Mas, como disse, tenho ao lado todos os meus cadernos de anotações feitas à mão nas brechas do cotidiano. Há frases que bolo quando estou na rua, escrevo elas ali no caderninho, e jogo no meio de um texto em andamento no computador, mais tarde. Em todo caso, acho que é uma boa expressão deste mundo continuamente transitório que habitamos, onde você paga a conta do restaurante com o picpay e precisa de uma caneta bic para assinar o recibo do estacionamento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De onde surgem as ideias é uma pergunta que pertence mais ao campo da neurologia do que ao da literatura. Posso dizer que vejo a escrita como uma reação à vida, e sobretudo, um modo de vida. Se me separo de alguém, se mudo de casa, se conheço alguém, se vejo algo na rua que me toca, se me machuco, a escrita está ali para ajudar a suportar, ou no mínimo elaborar as experiências que tenho. Parece que desde que escrevi o primeiro poema no primeiro caderno eu já intuía que eu não bastaria por mim mesmo para lidar com as coisas que vivo, que seria sempre necessário ter uma testemunha — a palavra. Dela nascem os personagens, as circunstâncias, os conflitos, tudo livremente baseado neste mundo que pesco no meu cotidiano em São Paulo. É prazeroso, político, natural. Aquém de motivos. A ideia é a própria palavra.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diferentemente do esperado, creio que é o Ian de quinze anos que me daria uns bons conselhos. Sinto falta da liberdade e da pretensão daquelas primeiras linhas, que embora fossem obviamente piores do que as que escrevo hoje, eram carregadas de esperança e autoconfiança. Nesse país, quanto mais você se envolve, quanto mais você entende como funciona o mercado, mais difícil é tirar os sapatos da lama. De modo que eu diria para ele não confundir professores com pessoas que só gostam de cagar regra. Para não se deixar rebaixar diante de circunstâncias que rasgariam suas primeiras páginas com as próprias mãos. Para não se sentir envergonhado dos próprios poemas e contos. Seguir acreditando, para não se tornar um homem que anda por aí com uma ferida. Claro que com as leituras e com os encontros que foram aparecendo ao longo dos anos eu aprendi muito sobre escrita e sobre o que ela pode representar numa escala séria. Me tornei livreiro, editor de uma revista, me envolvi e tento desviar das inconveniências do ofício. Quando eu trabalhava com performance, costumava viajar bastante pelo interior. Ao voltar, sempre recebia mensagens de pessoas mais jovens que eu que me pediam para ler seus poemas e comentar. E me lembro de quando era eu quem fazia isso. Das respostas que recebia. E respondo o que eu gostaria de ter ouvido naquele tempo: vá em frente. Sem esperança. Mas também sem medo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há uma frase bonita do Gabriel García Marquez em que ele diz que, aos sessenta anos de idade, ele se sentia bem porque podia escrever os livros que queria escrever quando tinha vinte. Tenho muitos textos inacabados que sei que nunca vou voltar a trabalhar, e, seguindo a lógica do gênio colombiano, penso que gostaria de dar um direcionamento ao impulso que me fez começá-los. Mas como saber que esse impulso já não foi usado? Consigo pensar nesses termos muito mais sobre a leitura do que sobre a escrita. Sei em que tipo de autores gostaria de me aprofundar nesse momento da minha vida, mas não que tipo de livro gostaria de escrever — talvez por estar escrevendo um. Sobre projetos posso ser mais concreto: tenho rondando em minha cabeça a ideia de um roteiro para um curta-metragem, fruto direto da minha produção de vídeo-poemas que iniciei em dois mil e vinte. Ainda é algo disforme, do qual só tenho vagas vontades e ideias, mas que tem me acompanhado e mostrado as fuças a cada intervalo dos dias. Vejo essa possibilidade como um desdobramento também do meu trabalho na literatura, algo que recairá sobre a própria, dando-lhe ainda mais força pra caminhar. A literatura é irmã do cinema, e inumeráveis Asas do Desejo me indicam um caminho para tentar esse encontro. Não sei o que vai acontecer. Talvez nada.