Hilan Bensusan é professor de Filosofia na Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Cada dia é um dia. E cada dia segue de uma noite diferente. Quando acordo cedo e tenho tempo, é a hora de escrever textos de supetão; concebidos naquele momento e resultado de ter um tempo imprevisto, um tempo fora do tempo. Se estou trabalhando em um projeto longo, como um livro, apenas lentamente chego onde eu estava. As manhãs são o tempo de retomar, as ideias novas vem rápidas, mas as que foram interrompidas têm um caminho mais tortuoso. Porém muitas vezes saio correndo para ensinar ou fico lentamente ao lado das pessoas à minha volta, incluindo a pequena Devrim de 2 anos e meio. Escrever é também antecipar em rápidos pensamentos a escrita. E é também adiá-la.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Nenhum ritual. Amo escrever. Mas a escrita é um exercício de interrupções – ela é feita de interrupções e cada interrupção deixa nela um traço, uma marca. A escrita é feita de respostas ao acidente e assim ela está sempre exposta a todo tipo de elemento. Como uma escultura ela é excitante, devoradora e, ao mesmo tempo, apaziguadora já que é feita de ansiedades desviadas, de ansiedades dobradas, de ansiedades ultrapassadas, de ansiedades intensificadas e de ansiedades disfarçadas. Como dizia Jabès, a escrita é um fogo persistente, que pode queimar ou pode aquecer o que está bem longe da mira de quem escreveu. E, contudo, a escrita é sempre uma resposta, uma interlocução, às vezes com quem eu não tenho ideia que me interpela, às vezes com quem eu nunca gostaria que me interpelasse, mas quase sempre com alguém que não existe com toda nitidez. Parece que é um assunto de invisíveis, já que as palavras apontam mas não mostram. Tem sempre o leitor invisível que me paralisa, o leitor invisível que entusiasma e me tira da rota, o leitor invisível que me cansa – e tenho que negociar com cada um deles.
A escrita deixa as manhãs imprevisíveis. Mas ela também impõe rotinas, às vezes a tarde inteira de espera por uma velocidade, por uma embocadura. Amar escrever não é sempre gostar de estar à beira das letras. Elas às vezes pedem distância, e, também às vezes, é difícil entender esse apelo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende das circunstâncias. Quando estou em um projeto de livro tenho metas semanais para deixar com que os dias tenham suas margens de manobra; sei que eles adiam. Minhas metas, geralmente compridas, no entanto, são raramente cumpridas. Escrever é também uma burla com o tempo, o tempo parece curto de longe e se alonga mas às vezes se encurta em um só minuto e sufoca.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita é a melhor parte, e às vezes é difícil adiá-la para pesquisar mais, para ler mais ou para encontrar o refúgio certo. É que sempre se escreve na hora errada – nunca estou pronto para escrever. É por isso que dá tremedeira, dá vertigem. Eu gosto.
Gosto de fazer notas detalhadas e pensar que elas vão ser incorporadas ao texto tais como estão, mas elas raras vezes o são. Também penso que copiar e colar posts de blog no arquivo onde estou escrevendo o livro ajudará; raras vezes ajuda. Incorporar outros textos ou trechos de texto na escrita é difícil e muitas vezes parece forçar um contrapelo na escrita. Porém escrever filosofia é lidar também com formulações, e algumas formulações já feitas me ajudam se estão à mão quando estou escrevendo. E a desorganização das notas (como fazer com que elas reapareçam na hora certa?) tem um papel central na minha escrita – às vezes o texto termina refém do momento em que uma nota (com uma formulação relevante) reaparece.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Às vezes ajuda comer frutas no pé. Quando escrevi “Excessos e exceções” estava em uma quinta perto de El Hoyo, Patagônia andina profunda. Ali tinha um monte de pés de “arándanos” (mirtilos) que eu comia na beira do Epuyen quando a trava vinha. E a trava era feita da mesma ansiedade e expectativa que fazia com que eu escrevesse. Também quando escrevi “Being up for grabs” estava no meio de frutinhas, frutinhas vermelhas de café – em Zoancuantla, perto de Coatepec, em Veracruz no México. Eu não suporto o gosto do café. Mas aquelas frutinhas destravavam alguma coisa. É claro, só às vezes.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca reviso. Tento mostrar para outras pessoas para suprir esta deficiência. Sempre espero que elas vão comentar mais coisas do que comentam. Gosto também de imaginar os olhos dos outros lendo o texto – me ajuda. É um combate de leitores mais visíveis contra os leitores bem invisíveis que ficam à espreita quando escrevo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Algumas notas à mão, mas essas são as mais fáceis de se perder. O blog me ajuda a manter minhas notas acessíveis. De resto, é tudo no computador, em pastas com os nomes dos projetos. Como há sempre projetos arquivados ou esquecidos ou deixados para depois, tento organizar tudo em termos de períodos da minha vida. Escrever é também sempre uma rusga com a memória. Às vezes as ideias, formulações, intuições, citações e questões são esquecidas quando menos esperamos. A tecnologia ajuda a estarmos menos às voltas com a memória biológica – mas ela sempre tem suas armas na peleja em que a escrita ganha forma (ou perde forma).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não ter hábitos – ou ter poucos. Gosto de estar em diferentes lugares. Mas se há uma prima distante da escrita que tem um rosto muito diferente mas que a provoca e a inspira, ela é a conversa. Além disso, há os livros eles mesmos, as escritas – as fogueiras persistentes que sempre queimam e aquecem de outros jeitos. Escrita conduz à escrita, é uma dimensão da dispersão do fogo, eu acho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Gosto de pensar que o que mudou foi ter mais coragem. Mas a coragem, se aumenta com o tempo, não sobe nenhum Monte Fuji – ela sobe e desce, e às vezes quando a covardia é total aparece uma ribanceira acima e chego em um pico de ousadia. Se pudesse dar conselhos ao meu passado eu diria o que eu sempre soube: a escrita é do leitor, claro, mas o leitor é teu.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos. Gosto de imaginar livros. Tenho alguns projetos apenas começados – o que quer dizer quase sempre nem começados. Acho que ainda exploramos pouco a ideia de livro – um livro que inventa um gênero para si mesmo, que não pode ser um romance ou um tratado, nem prosa nem poema. Tentei me aproximar disso um tanto (em “Heráclito – Exercícios de anarqueologia” e em “Pacífico sul” ou no “Breviário de pornografia esquizotrans”, mas também no meu novo “Linhas de animismo futuro”) mas ainda não o suficiente. Gostaria de ler muitos livros que não existem ainda – talvez por estar envolvido com questões, as questões filosóficas, que demandam sempre recomeços. (Penso que a história da filosofia mal começou.) Há muito a ser escrito porque há muita experiência que não foi reverberada – e sempre será assim, tipo uma espiral. A experiência é reverberada na escrita, mas a escrita é também o que faz a experiência acontecer.