Hernando Neto é biólogo e escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu normalmente saio para caminhar assim que acordo pela manhã, depois volto para casa pois tenho que me arrumar para trabalhar (sou biólogo). Não mantenho qualquer rotina direcionada à minha criatividade, no entanto quando caminho num parque próximo à minha casa, a luz do sol ainda está confortável e os pássaros já estão cantando, o que de certa forma me inspira a ter centralidade para levar meu dia e, quando necessário, escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Mais recentemente eu tenho escrito à noite. No entanto, quando entro num vórtice criativo não há um intervalo determinado que dedico à escrita, simplesmente acontece e eu vou redigindo as primeiras formas de uma poesia.
Sobre um ritual de preparação, não tenho nenhum passo-a-passo. No entanto, parte do meu processo criativo até o momento envolveu entrar num espaço de inquietação, de forma subconsciente, seja por ler algo, escutar uma música, procurar vídeos e imagens na internet, e desse ambiente só sair quando rascunhava algum texto e sentia, ao lê-lo, que havia conseguido chegar a alguma solução — mesmo momentânea, até inócua para a questão.
Durante a produção do meu segundo livro (ainda não publicado), em contrapartida, o processo foi bastante peculiar. Falo sobre isso na próxima pergunta.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Varia muito.
Meu primeiro livro de poesias, ANIMA, publicado em fevereiro deste ano pela Editora Letramento, foi escrito durante um período de mais de 10 anos, com o foco maior na produção dos últimos três, quatro anos. Durante a última década eu tive momentos de escrita diária, com rompantes em que produzia às vezes sete, oito poesias em um único dia, seguidos por períodos em que eu escrevia um ou dois poemas por mês (algo que estou vivendo hoje).
O segundo livro, a ser publicado ainda, foi escrito em três meses. Dezenas de poesias escritas dialeticamente, uma respondendo à outra, contrariando, irritando e satisfazendo a direção que tinha decidido tomar com a obra. O que o motivou foi a leitura de um livro em particular, junto à rotina de rejeições que alguns originais meus sofreram. Foi um processo de reencontrar minha voz poética: intenso, consumador, mas gratificante.
Não preciso nem dizer que escapo de metas diárias. Quando as tentei não fui bem sucedido, talvez elas tenham um pouco mais de sentido para romancistas, mas não sei.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é bem pontual em muitos sentidos. Depende da inspiração vir, seja por minha ansiedade, seja por um sentimento de total resolução, e quando escrevo as primeiras versões de um texto terá momentos em que consigo chegar próximo da forma final em questão de minutos, e outros em que o texto está praticamente pronto e eu o percebo inconsistente, aí preciso reescrever tudo, às vezes usando apenas o título como resquício da versão anterior (foi assim com as poesias “Feminicídio” e “Anima”, presentes em ANIMA).
Sobre compilar notas, algumas das poesias já vieram de ideias pululantes que eu não conseguia, por falta de foco, transformar em algo naquela hora, mas que foram guardadas no meu celular e ao revê-las com a cabeça arejada, era possível criar algo mais concreto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não me importo com travas de escrita. Se não sinto o desejo de escrever eu acabo me ocupando de outras coisas, e eventualmente — ou não, eu volto à labuta criativa por conta dessas outras ocupações. Um exemplo: estive lendo os poemas de Sylvia Plath nas últimas semanas, e por qualquer motivo fui atrás da biografia dela. Saber um pouco da pessoa Sylvia me consumiu de tal forma que acabei me inspirando a escrever. E veio uma única poesia, depois de semanas sem redigir um verso. Desde então não escrevo, e tudo bem, eu volto ao deserto sem receio, desde que traga minha garrafa d’água na mão.
Talvez se fosse um escritor famoso e cobiçado pela indústria, sofresse uma pressão a respeito de me manter produtivo, mas não estou nessa posição, e para ser sincero, ser a figura nova que ninguém conhece e que, talvez, nem vá conhecer me dá tranquilidade.
Sobre a ideia de projetos longos: ainda que organizar um livro de poesias demande tempo para construir o corpo da obra — saber quais poesias usar, onde colocá-las, quais duramente remover por não fazerem tanto sentido ali, meus projetos, enquanto projetos, não demandam um tempo absurdo de trabalho porque o aspecto criativo em si vem literalmente em pedaços: uma poesia hoje, outras duas nas semanas seguintes, três poesias que você encontra no seu arquivo pessoal de nove anos atrás e decide resgatá-las… O que quero dizer é que, no meu caso, você pode levar anos escrevendo, mas quando senta para realmente pensar nos textos como uma história, contá-la leva algumas semanas, não muito além disso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Então, revisar sempre vinha depois de uma decepção literária. O melhor exemplo disso veio com ANIMA: este livro teve tranquilamente uma oito versões, e o que me motivava a mudá-lo e, de fato, melhorá-lo foram as rejeições em concursos e editais de originais. Claro que o primeiro instinto era pegar minhas filhinhas e fazer a dona Florinda (“venha, tesouro, não se misture com essa gentalha”), mas passada a raiva, eu sentava, relia os conteúdos e começava a reconstrui-los no que julgasse necessário. Naturalmente, ganhar maturidade pra aprofundar meu trabalho veio de outras leituras, de modo que você precisa manter-se humilde se espera criar algo realmente interessante.
Pegando carona na segunda pergunta, outra força que me leva a revisar as poesias é de fato a opinião de pessoas bem próximas. Tenho sorte de conviver com amigos envolvidos no meio literário, e por confiar no tino deles a respeito do mover poético, alguns textos sofreram modificações parciais ou totais em função dos conselhos recebidos. Muitas vezes gira em torno de codificar melhor os versos, dar mistério às palavras, ciente no entanto de que isso nem sempre é funcional — alguns dos meus textos são bem explícitos, e prefiro-os assim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando comecei a escrever poesias, em 2006 mais ou menos, tudo era feito à mão. Mantive-me assim até 2009, tenho até hoje um monte de folhas soltas e cadernos por conta disso, mas nos anos mais recentes faço tudo praticamente no computador/celular. Pode ser menos “artesanal”, mas é mais prático para arquivar e encontrar os conteúdos, além claro de poder comparar versões de uma mesma poesia mais facilmente, então não considero hoje mudar esse modus operandi.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Discos, livros, artes plásticas, experiências cotidianas. Na seara de temas, acho que questões familiares, religião, espiritualidade, sexualidade, militância, minhas tendências idealistas também.
Sobre hábitos, eu diria que dois:
Observar bastante, mesmo coisas sem importância aparente, mas não tentando exatamente encontrar algo: observar porque estamos num mundo bem interessante mesmo;
Cultivar a criança interior. Muitas vezes podem lhe taxar de tonto, até imaturo, mas se há algo que lhe ajuda a se manter conectado com a própria existência é reconhecer aquilo que de mais íntimo temos preservado, as emoções brutas, uma visão despudorada e a noção de que podemos ser tudo de bom e de ruim em nossa individualidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou foi ter ganhado um senso crítico maior, de não tomar tudo que escrevo como especial aos olhos do mundo, e aprender a descansar as poesias para saber quais intervenções elas merecem receber, no momento adequado. Eu era um escritor muito literal, e hoje percebo que para a maior parte dos textos eu só estava me iludindo em produzi-los dessa forma. Alguns até guardam um certo charme, talvez por reconhecimento íntimo, outros infelizmente envelheceram mal.
O que eu diria a mim mesmo? Talvez para ser um leitor mais dedicado, até hoje leio menos do que deveria.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um evangelho dos sonhos, seja lá o que for. E gostaria de ler um atlas da compaixão humana, às vezes esquecemos de que ela existe.