Helena Barbagelata é artista multidisciplinar, modelo, escritora, pesquisadora e ativista.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Da mesma maneira que começo a minha tarde e a minha noite, expelindo o ar dos pulmões pelas vias respiratórias, é o rame-rame de todas as horas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No transporte, pego um caderno de esboços e, antes que perceba, chego ao meu destino – é uma forma de viagem no tempo. O ato de fazer poesia, é uma forma de deslocamento, o não-lugar de todos os lugares, algo que corresponde à experiência das coisas como meio de transporte para outros lugares: a palavra como porta. Você abre uma palavra da mesma forma que abre uma porta, entra, e está em outro lugar. Quando você lê, você se deixa levar. A escrita é mais uma forma de viagem e interação, outra forma de narrativa e diálogo, um livro dentro de um livro, uma porta dentro de uma porta.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Coloco várias experiências juntas no processo. Interessa-me a concepção da mente como uma metonímia da sociedade, que faz uma experiência a partir da experiência e depois a organiza entre outras experiências semelhantes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A poesia expressa nossa interdependência com o mundo, que é simultaneamente uma união e uma ruptura, com inúmeros escorregões e respingos – a fala clara e sombria que se torna quem somos, com nossas muitas peculiaridades e cadências, fantasias e defeitos. Os poemas podem ser sentidos como as duas partes dessa dialética devastadora. Em sua totalidade, coerente e fluida, ou em pedaços separados e narrativas isoladas, um quebrantamento insolúvel. Você tem que encontrar uma maneira de viver e ver dentro desse olho composto, com e entre os múltiplos omatídeos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sirvo mais uma taça de absinto e danço com a fada verde – não há medo, nem pressa nem anseio. Estamos inebriados, aloprados, e deixamos passar todos os trens, carruagem após carruagem até se esvaziar a linha.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou poeta, não tecnocrata da escrita, a minha relação é sensitiva, não funcional.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As palavras datilografadas foram criadas para o momento em que as digitamos ou lemos, existindo sempre no momento esvaído do agora, não têm história. No digital, as letras têm uma perfeição mecânica, ocupam todos os mesmos espaços lineares e os erros podem ser eliminados de uma forma que nenhum papel físico permitiria, sem uma marca sensual do que estava lá antes: um tom de cor ou fibras levemente enrugadas. Gosto da escrita à mão porque desacelera tudo, cada letra, cada palavra é uma marca em cima de uma marca, como as rochas sedimentares que mantêm a história do pensamento e do movimento. Sentir o impacto de cada letra sobre uma superfície real e tangível, de não ter a ortopedia das linhas e poder inclinar, virar, parar e reiniciá-las em qualquer lugar, mudar a espessura da escrita com o menor pensamento, observar o propagação de tinta com a fluidez ou intensidade de um gesto e sua conexão direta com o corpo e a emoção.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Todos os seres são criativos por natureza, se a manutenção é a vida, o ponto de quebra é a morte; a semente que gestam e parem é que difere, pode ser tanto um crime como uma cria. As ideias puérperas são coleções de emoções e, como tal, imagens repentinas de perturbação. Têm gestos do histórico e do espaço, dão forma, ritmo, arquitetura a sentimentos poderosos, fazem uma ordem musical, dão-lhes uma base para se firmar e adquirir sentido. Não há texto sem contexto e não há contexto sem recontextualização. Por outro lado, a poesia é a voz da própria alma, de nossa respiração ou de nossa energia, independente de uma noção de tempo e espaço. O sistema, esse conjunto de hábitos, deriva desdenhosamente desse emaranhamento quântico, são os efeitos instantâneos que uma partícula exerce sobre a outra a grandes distâncias, e nossas dúvidas a respeito do fenômeno.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho uma só voz, que é a voz da poesia, que por si só tem o poder intangível, quase inexplicável de fazer acontecer, de comover, de confortar o inconsolável, de projetar possibilidades, aquela justiça imaginada, do riso ou do pranto, que chega ao seio do poema como visão, para enquadrar o presente nas lentes do passado e o passado nas lentes do presente e fazer com que ambos sejam futuros.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O único que vos posso desvelar é que estão velados.