Guímel Bilac é tecnólogo civil e escritor, autor de Minha Vida Está Uma Merda (Mas não precisa ser) e de A Logística dos Pedaços.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho sim. A primeira coisa que faço é fazer café. Depois vou ler ou algum livro ou algum texto que alguém publicou na Internet. Eu não costumo madrugar, acordo geralmente umas oito, tomo café, assisto algum telejornal e depois faço minhas leituras. É uma hora que me concentro mais p’ra ler. Raramente escrevo pela manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu escrevo quase sempre nos fins de tarde. Tenho o hábito de colocar um soaking, fechar os olhos, ficar em silêncio e ficar deixando o texto decantar, ainda conectado com alguma frase solta que veio em algum momento de inspiração, até que o resto do texto se entregue a mim e peça p’ra ser escrito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todos os dias, mas nunca tenho uma meta de terminar o texto enquanto eu estou escrevendo. Na maioria das vezes eu escrevo e me afasto do texto por uns dias. Tenho a impressão de que, seja lá o que você faça da vida, a melhor análise ou aperfeiçoamento daquilo só pode ser feita depois que você se afasta um pouco e volta p’ra ver. Os filtros funcionam melhor assim, pelo menos no meu caso. Então eu sempre me cobro de escrever todos os dias, por acreditar que isso, além de te dar disciplina, te aperfeiçoa. Mas não me apresso em terminar os textos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meus textos nascem em horários aleatórios e sem aviso prévio. Às vezes perco o sono e me cai uma frase no colo bem naquele momento de insônia. Eu pego o celular e registro no bloco de notas. Eu sempre guardo as frases, porque entendo que meu processo de criação na escrita funciona quase sempre com um gatilho. Às vezes me caem textos quase inteiros do nada e eu sempre guardo ou a frase ou o trecho do texto que nasceu. Como eu disse antes, eu escrevo quase sempre no finalzinho da tarde. Fico conversando com alguma frase ou com alguma parte do texto que me provocou antes e fico ali provocando essa frase até que ela me entregue mais. Quando sinto finalmente que o que era fragmento está se conectando com as outras partes que vão surgindo, aí eu começo a escrever quase que freneticamente, até entender que o texto está pronto. Quase nunca me movo p’ra pesquisar antes do texto, geralmente faço isso durante a escrita, quando percebo que faço referência a algo que não tenho o completo domínio. Aí sim, eu pesquiso e na maioria das vezes encontro alguma coisa p’ra enriquecer o texto. Uma vez escrevi ouvindo There’s A Light That Never Goes Out do The Smiths, que acabou sendo citada no texto. O processo de aperfeiçoamento passou por uma pesquisa sobre a canção que me fez enriquecer o texto, como se a canção fosse uma subtrama. P’ra falar a verdade, nunca é difícil começar um texto p’ra mim, já que eu sempre começo só quando uma parte me surge. P’ra mim é muitíssimo difícil terminar um texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Fico muito mal quando me sinto travado. Acho que escrevo mais do que falo, então ficar sem conseguir escrever é como não conseguir me comunicar. Eu acho que as cobranças internas me afetam mais do que as externas, porque embora a escrita não seja meu ofício principal, eu já não a encaro como um hobbie, mas como protagonista mesmo na minha vida, aquela coisa que quero morrer fazendo e quero aprender a fazer melhor. Geralmente a gente coloca muito peso naquilo que tem protagonismo na vida da gente. Eu costumo não ter muito medo de fracassar e isso talvez seja um defeito meu. Eu tenho medo de perder a inspiração, dos textos pararem de se entregar e de me tornar repetitivo, o que é um risco que acho que todo mundo corre. Eu fico ansioso quando me questiono se vou achar algum lugar na escrita, uma voz relevante e quando penso se posso entregar algo qualitativo. Eu me cobro muito internamente quanto a isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos muitas vezes, por diversos motivos. Sinto que tenho um público mais jovem e, na sua maioria, leitoras. Eu aprendi, sendo um nascido na geração X, que o mundo mudou e que um escritor que passa por transições geracionais e mudanças de conceitos precisa sempre rever sua escrita o tempo todo. Talvez eu foque mais nessa revisão do que, propriamente, em revisão gramatical ou ortográfica, até por perceber que eu sempre precisava de mais atenção na construção de frases, p’ra que o texto não passe uma mensagem que seja mal compreendida por falha de construção minha. Quando escrevo para algum blog na internet, uma revista ou algo assim, eu quase nunca mostro meus textos. Faço isso mais para compilações ou textos mais extensos. Eu sou muito fechado no meu mundo, então geralmente eu preciso de mais proximidade p’ra mostrar as coisas, mas entendo que é um hábito que preciso criar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sempre escrevo no computador. Embora na minha atividade profissional eu ainda use agenda de papel mesmo, na escrita eu vou direto p’ro processador de textos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A maioria dos meus textos são crônicas e poemas. Eles nascem de uma conversa com alguém, depois da sessão de terapia ou depois de ouvir alguma música ou assistir uma série, um filme, ver a arte de alguém e ser capturado por algo nesses momentos. Eu sou muito inspirado quando conheço pessoas novas também, muitas vezes pela primeira palavra que vem a mente quando tenho um primeiro contato com alguma pessoa.
Acho que dom funciona assim: se você enxerga que tem a habilidade de fazer algo, a primeira coisa que você tem que fazer é a manutenção do que alimenta essa habilidade. E a manutenção da habilidade se faz com uma coisa que eu chamo de ter o ouvido focado no vento. Então com a escrita, p’ra mim, acredito que funciona assim: tenho que ficar ligado no que a vida pode me falar e a vida pode falar comigo através de uma xícara esfumaçando por causa do café quente, assim como pode falar comigo através do Dwight em The Office dizendo que beijou a Angela não com um beijo comum, mas como a força de mil cachoeiras. Eu acredito nessas coisas como gatilhos de inspiração que sempre geram algo que escolhe você para serem começadas ou terminadas. Inspiração é uma obra procurando um autor p’ra ganhar rota.
O Humberto Gessinger costuma dizer que a letra de uma música, por exemplo, começa a se escrever em uma área do cérebro que você não tem acesso e em algum momento se torna acessível a você para ser trabalhada. Eu acredito muito que funciona assim, que o processo criativo é uma coisa que começa bem silenciosamente e, quando começa a fazer barulho, o faz porque está pedindo sua parceria.
Uma amiga uma vez compartilhou um vídeo do Ted Talks com a Elizabeth Gilbert, em que ela conta que a poeta Ruth Stone disse uma vez que estava trabalhando na lavoura e que podia sentir e ouvir um poema chegar até ela por sobre a paisagem. Era meio como um vento que a perseguia, mas que se ela não pudesse parar p’ra pegar ele ia embora – nas palavras dela – buscando outro poeta a quem se entregar. Ela disse que em alguns momentos o poema foi embora, mas em outros ela conseguiu persegui-lo a ponto de segurá-lo “pelo rabo” quando ele quase conseguia escapar. Eu acho que o maior hábito que um escritor pode criar é a habilidade de caminhar pari passu com a inspiração e, quando ela for muito rápida, criar a habilidade de persegui-la. Isso é entender que o que você faz ou se sente chamado p’ra fazer está conversando com você e pedindo p’ra ser acolhido. Isso merece atenção.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu escrevia muito na adolescência. Tive um hiato longe da escrita e voltei a escrever depois de um divórcio. A escrita entrou de novo na minha vida, inicialmente, como uma ferramenta terapêutica. Fiz um exercício chamado “escrever e afastar-se” em 2018 que virou um livro que ficou parecendo autoajuda. Eu teria esse motivo p’ra não gostar dele se não fosse o fato de que ele me trouxe p’ra escrita. Hoje eu não escreveria esse livro, ou o escreveria transformando-o em romance. Acontece que esse processo desencadeou um processo de criação que, desde então, eu venho tentando aperfeiçoar. O que mudou bastante no meu processo de escrita é que eu fui encontrando a linguagem com a qual quero falar, mais literária, mais poética e mais intimista. Quando você acha a linguagem que quer falar, o ritmo e a característica, o processo de criação fica mais interessante e flui com menos travas.
Paralelo à escrita, eu trabalho com estudos de viabilidade e orçamentos de obras. Eu faço isso há vinte e dois anos. Eu tenho guardado o primeiro orçamento que fiz e ele é uma planilha horrível e cheia de erros. Guardo p’ra me lembrar de que melhorei e de que preciso ser atento. Há uma explicação psicológica para o fato de que a maioria de nós não gosta de ouvir a própria voz em áudios de WhatsApp: é você ali. E a gente tem, não dificuldade, mas uma certa resistência em se contemplar através de algo que sai da gente. Uns têm mais dificuldade, outros têm menos. Eu trabalhei isso. Quando escrevi meu primeiro livro e o li, um ano depois eu não gostei de muitas coisas. Aí me afastei por um tempo, reli e filtrei melhor vendo ainda coisas que não gostei e coisas que eu gostei. Acho que o processo de aperfeiçoamento é isso: você ficar diante do que você faz, conseguir se acolher e filtrar, passar na peneira mesmo! Se eu pudesse voltar aos meus primeiros textos (na verdade eu posso, mas não quero) eu não os jogaria fora, os escreveria de uma outra forma, ou não também (risos), porque o escrito tem uma outra coisa: depois que você colocou no mundo e alguém se leu naquilo, não é mais só seu. Michael Stipe, vocalista do R.E.M., foi colocado p’ra se ouvir cantando Losing My Religion, trinta anos depois de ter virado hit. Sua reação foi dizer: “estou muito exposto, tem muito eu aí.”. Bem, depois disso ele não pôde fazer mais nada, já que a música virou um hino p’ra muita gente, graças a ter Michael Stipe ali. Acho que o maior desafio é se fazer uma autocrítica madura, se acolher e conseguir enxergar no que cresceu e no que se pode crescer mais. Ficar bom em algo é processo, não evento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu estou terminando um livro de poemas. Na verdade, está pronto, mas eu ainda não sei por qual meio irei publicar. Quero me desafiar a escrever uma ficção, um romance. Tenho vontade de ler um livro que confronte o que minha geração aprendeu sobre masculinidade, escrito numa linguagem de romance, uma coisa que cause impacto e que seja escrito debaixo da vulnerabilidade de um homem que se sente confrontado por isso.