Guilherme Mazzafera é doutorando em literatura brasileira na USP, revisor de textos, professor de literatura e colunista do Letras in.verso e re.verso.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A busca por uma rotina de trabalho, escrita e repouso tem sido minha meta atual, mas, infelizmente, ainda me sinto longe de cumpri-la. Tenho dificuldades para acordar cedo e, ao mesmo tempo, de render muito após o jantar, o que acaba me encurralando em uma longa tarde sem muitas quebras. Preciso melhorar isso. Se escrever todos os dias (e, quiçá, nos mesmos horários) pode ser algo libertador, há sempre o risco de frustração e ansiedade quando um dia não funciona bem. Gosto de pensar na escrita não tanto como um ritual, mas um hábito, gesto formativo, adquirido, que almejo tornar orgânico. Trabalhemos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com base na resposta anterior, acaba sendo durante a tarde até o início da noite. Não tenho qualquer ritual, mas sinto que sempre escrevo melhor quando abastecido de leituras, mesmo que totalmente discrepantes do objeto atual de escrita. Gosto de ler livremente por uma meia hora, de me pôr em contanto com a linguagem literária (prosa, ensaio, poesia), para só depois começar os trabalhos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ainda me vejo refém de períodos concentrados por conta dos prazos de entrega dos textos (entendo texto aqui como algo maleável que se espraia de um e-mail importante à escrita da tese, por exemplo). Sobre metas diárias, adoto-as estritamente apenas nos trabalhos de revisão de textos. No caso da escrita, quando consigo, tendo a mensurar por horas de trabalho. Com exceção de aulas e pesquisas em acervos ou bibliotecas, desenvolvo minhas atividades em casa, ambiente perigoso tanto para a procrastinação quanto para o esmaecimento dos limites entre trabalho e descanso. Assim, por uma questão de saúde mental, é importante saber quando parar e fechar o escritório, mesmo que seja apenas para liberar a mesa dos livros e servir o jantar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Durante o mestrado, tive imensa dificuldade em efetivamente começar a escrever. Sentia que nunca estava pronto, que precisa ler mais um artigo aqui, um livro inteiro ali, revisar anotações etc. O efeito prático era desastroso: bibliografia e ansiedade cresciam exponencialmente. É muito comum entre pós-graduandos a crença de que primeiro é preciso levantar todo o material, fichar as leituras, eliminar as disciplinas, delinear um esquema preciso da tese/dissertação para só então escrever. Eu pensava assim. Mas a escrita não é mera tradução do saber acumulado, ela é processo permanente, desviante e iluminador. Ao menos na modalidade de escrita acadêmica, creio que a regrinha do “um pouquinho todo dia” tem sua importância, daí minha busca atual por uma rotina que combine leitura, pesquisa e escrita.
Terminado o mestrado, tornei imperativa a busca por escrever com frequência, alternando textos mais longos com outros menores. Uma tese de quatro anos de pesquisa significa quatro anos de ansiedade. É claro que uma resenha curta sobre um livro recém-lançado dificilmente será tão forte e profunda quanto uma tese, mas são instâncias diversas que gestam experiências de escrita diferentes. Estou certo de que boa parte de minhas resenhas não terão muito a dizer daqui um tempo, mas escrevê-las tem me tornado um escritor mais atento, aberto e – o que é sempre uma busca – conciso. Evocando o truísmo dos truísmos: escritor é quem escreve.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Anteriormente, refugiava-me em leituras sem fim, afinadas e dissonantes, adiando a escrita. Hoje, por outro lado, alterno entre os textos que preciso escrever e entre as partes de um mesmo texto. O importante é manter a escrita em curso. A procrastinação é eterna penetra, sobretudo se o corpo não vai bem. A gente muitas vezes esquece que escreve com o corpo.
As cobranças são inevitáveis, sobretudo as minhas próprias. Mas é saudável entender que diversas modalidades de texto conversam com pessoas diferentes. Um texto breve, que eu fatalmente julgaria raso, pode ser capaz de falar com leitores que jamais teriam a paciência necessária (com provável razão) para ler minha dissertação, por exemplo.
Assim, uma saída possível para amenizar a angústia dos longos projetos é equilibrá-los com projetos breves. No meu caso, em paralelo com a tese de doutorado sobre Otto Maria Carpeaux que estou escrevendo, procuro compor resenhas e ensaios curtos, veiculando-os em blogs e revistas, sobretudo no Letras in.verso e re.verso, minha casa. Cada novo texto terminado traz um sentimento de completude, atinge novos leitores e permite que me arrisque em assuntos e autores que me interessam de perto, mas sobre os quais jamais serei o especialista exigido pela academia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É feio dizer, mas depende do prazo. Se possível, ao menos duas vezes e, de preferência, com algum auxílio externo. O autor é sempre seu pior revisor. Não tenho grandes problemas em mostrar meus trabalhos a terceiros, embora fique mais receoso no caso de textos abertamente ficcionais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha formação integral, da escola ao doutorado, tem sido com lápis e caneta em sala de aula, mas desde a faculdade todo e qualquer trabalho é escrito no computador. Não tenho paciência de traduzir meus próprios garranchos. Tenho alguns cadernos, mas não os carrego obsessivamente comigo: um celular resolve o impulso de registrar algo por imagem, áudio ou escrito. Guardo o empenho manuscrito para uma modalidade mais íntima de escrita, próxima do diário, sem grandes intenções literárias e a que recorro quando sinto que preciso me reaver. Para isso, o computador não dá conta, pois falta a ele a experiência do inscrever-se que só o contato da tinta com o papel permite.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm dos livros que li, dos que não li e dos que quero ler. Esse é meu assunto, sempre. Leio o máximo que posso e, cada vez mais, releio. Busco, sempre que possível, um horizonte ensaístico de escrita, mobilizando leituras diversas para me aproximar de um objeto nunca de todo nomeado. Gosto de articular textos a partir de citações alheias, compondo um mosaico afetivo sem qualquer ponto de chegada determinado. Se isso pode soar como descaminho, defendo-me com uma intrigante citação de Nathalie Sarraute, mobilizada por Enrique Vila-Matas em “Mac e seu contratempo”:“escrever é tentar saber o que escreveríamos se viéssemos a escrever”.
Ocasionalmente, no entanto, sinto pequenas estafas, como se houvesse um acúmulo excessivo de palavras dentro de mim, o que me faz buscar expressões artísticas outras, como filmes, séries e, mais recentemente, podcasts narrativos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que essencialmente mudou foi que dessacralizei um pouco o ato de escrever, que gradualmente se torna uma prática. De resto, continuo o mesmo: obsessivo, enrolado e um pouco prolixo. Se pudesse aconselhar meu eu do passado, diria apenas: escreva mais, sempre. E arrume bons amigos-leitores, ternos e impiedosos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de compor um livro só de citações. Um livro intimamente pessoal, de leitor, com nenhuma (ou quase nenhuma) palavra minha. Seria como uma versão ampliada dessas listas de fim de ano, mas sem os comentários. Só excertos mesmo, cuja ordem articularia sentidos específicos, cruzamentos e ressonâncias.
Sobre livros inexistentes, eu adoraria que Guimarães Rosa tivesse levado adiante “A fazedora de velas”, seu romance semiurbano, e que Robert Louis Stevenson e Henry James tivessem escrito um romance a quatro mãos. Já no campo do provável, anseio por um novo livro de “ensaios-retrato” de Rodrigo Naves, escritor bissexto verdadeiramente excepcional.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Costumo planejar um pouco, mas todos os planos se esvaem em face da materialidade da escrita. Com exceção de trabalhos de revisão, em que é possível seguir um cronograma mais ou menos rígido e constante, qualquer coisa que envolva escrita parece demandar um tempo próprio, que dificilmente coincide com os prazos estipulados por editores, orientadores, seminários. Não sei exatamente qual é mais difícil, pois costumo demorar um pouco para dar início a qualquer projeto e tento manter certo ritmo, mas vejo-me com frequência dedicando horas a mais ou a menos para cada projeto, rompendo o equilíbrio com outras atividades. Se for lícito dizer que começar um projeto depende sobretudo de mim, enquanto finalizá-lo passa por acertos com instâncias e coerções externas, por mais doloroso que seja, penso que finalizar seja um pouco menos difícil. Minha maior dificuldade, no entanto, não está em nenhuma das pontas, mas antes no equilíbrio de sua travessia.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu não sou exatamente um bom planejador, sobretudo por colocar projetos de lado ou dedicar-me demasiado a um deles, rompendo qualquer senso de equilíbrio ou rotina. Tenho ideias com frequência sobre textos que gostaria de escrever, mas ao menos adotei agora o hábito de anotá-las em um mesmo lugar, facilitando a busca. Não sei se prefiro ter vários projetos simultaneamente pois sempre tendo a dedicar mais atenção a um deles. No entanto, é bom ter opções quando bate o cansaço, o tédio ou qualquer tipo de travejamento.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O que motiva é basicamente o desejo de falar sobre o que leio, conversar com outros leitores, dividir angústias, anseios. Não me recordo exatamente se tive um momento específico em que decidi tomar a escrita por profissão, mas me lembro da surpresa, jubilosa e um pouco assustadora, ao descobrir que era possível tornar a leitura, o falar sobre livros, via aulas, textos, traduções, uma profissão de fato. É o que venho tentando nos últimos anos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não estou certo de que já tenha atingido um estilo próprio, embora note certos traços ou cacoetes reconhecíveis na maioria das coisas que escrevo. Os autores que mais me influenciam são os que mais frequento, dotados de uma “vontade de estilo” bastante particular: Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e J.R.R. Tolkien na parte de ficção; Manuel Bandeira, Murilo Mendes e W.H. Auden na poesia; Montaigne, Stevenson e Otto Maria Carpeaux na ensaística.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Como é bem provável que várias pessoas incluam um livro absolutamente fundamental como Grande sertão: veredas, trapaceio um pouco e opto aqui por indicar outros três, releituras de cabeceira:
Os ensaios (1595) – Michel Eyquem de Montaigne. O mais pessoal livro já escrito é, também, aquele que de imediato entabula conversa com seu leitor. Ao assumir-se como a própria matéria de seus escritos, Montaigne, que de tudo nos fala – guerras, amizade, ócio, como educar os filhos, sua semelhança com os pais, Plutarco e Sêneca e, essencialmente, da experiência como veio da escrita –, concretiza em forma literária uma perspectiva autorizada, inédita e que, assim, demanda nova forma: o ensaio. Para ele, a leitura tem papel fundante, mas não dominador; a relação entre o leitor e os livros deve ser a do mais honesto diletante, que flana com quase volúpia pelo que lhe interessa, pondo de lado o que o aborrece. É graças a essa visada antidogmática que ele não hierarquiza saberes, consciente de que “Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento. Ensaiamos todos os meios que podem nos levar a ele”. E o bibliocausto não é um deles. Lição preciosa. E urgente.
Dom Quixote de La Mancha (1605/1615) – Miguel de Cervantes Saavedra. Em face de uma hecatombe livresca, não há livro mais urgente, que inclusive retrata em um de seus primeiros capítulos a queima da maior parte da biblioteca do protagonista pelos seus amigos, o Cura e o Barbeiro, e da qual poucos autores se salvam, incluindo um certo Saavedra autor da Galateia. Construído a partir de um arcabouço modernamente complexo em sua transitividade entre ficção e realidade, o romance põe a nu o desejo humano de instaurar ficções sobre o real que, a contrapelo, podem ser revertidas, produzindo consequências dolosas sobre quem as inventa. Mais do que narrar as três saídas de Alonso Quijano, tornado Quixote por inconformável idealismo em face de um mundo amesquinhado, a obra tem por herói um desloucado leitor e figura em seu cerne os meneios do próprio ato de leitura, abrangendo tanto seu viés humanizador quanto a arbitrariedade imanente ao homo fictus.
O Senhor dos Anéis (1954-55) – J.R.R. Tolkien. A pungência da obra-prima de Tolkien exige um leitor contemplativo, capaz de sopesar os eflúvios da fantasia de livre curso com uma forte carga de realismo – fantasia exata –, equilíbrio sem o qual o livro não se sustenta e que se arvora em tema essencial: “sem o elevado e o nobre, o simples e vulgar é totalmente vil; e sem o simples e ordinário, o nobre e heroico não possui significado.” Além disso, lembremo-nos da preciosa observação de W.H. Auden sobre a obra, em que a vitória da demanda do anel encontra-se alicerçada, sobretudo, na capacidade imaginativa de seus heróis, orgulhosamente ausente em Sauron, cuja hybris o impede de sequer conjeturar a viabilidade da destruição do Anel por seus antagonistas. É na liga orgânica entre o lúdico gozo da subcriação e o senso ético da imaginação que, para este leitor, reside o veio profundo e urgente da ficção tolkieniana.