Guilherme Gontijo Flores é poeta, tradutor e professor de latim na UFPR.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Me tornei perito e arauto do caos, ao longo dos anos. Isso, acho, tem a ver com meu estar no mundo, mas também com os empregos que calhei de ter para pagar as contas, como professor universitário e tradutor. Nalguns dias, dou aulas de manhã, noutros fico em casa e tento trabalhar em frentes variadas (preparar aulas, traduzir, escrever ensaios e artigos, pensar e fazer poesia, nessa ordem); pela tarde fico com as crianças em alguns dias, em outros minha mulher fica com eles e trabalho; a noite depende das tantas variantes do dia, pode ser que eu tenha aula (como se não bastasse, tudo muda a cada semestre). O almoço pode ser feito por mim, pela Nanda, pode ser num boteco etc.; a janta depende do resto também. A única constante é cafeína pela manhã e tentar manter alguma coerência para não desgastar demais as crianças.
É nesse ambiente que escrevo. Em várias fases da vida meu escritório ficava em parte comum da casa: em Morretes, era num mezanino aberto; hoje é na sala de casa, então posso escrever sozinho ou em pleno festival infantil, e para mim está bem como for, produzo em quase qualquer contexto. Mas como e quando, vou decidindo na hora o que dá pra fazer e, sendo muito sincero comigo, nunca sei ao certo como consigo ter disciplina no meio disso, mas o fato é que tenho: no caos eu me acho, meio cansado, meio perdido, talvez um trator aos trancos e barrancos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre me sinto melhor pela manhã, estou aguçado, centrado, disposto. Também coincide com o horário mais silencioso da casa, o que me garante tempo de estar comigo. Uma escrita, se tiver alguma seriedade, está prenhe de solidões, e para mim as manhãs são solidões bonitas. Dito isso, não há bem uma preparação, a não ser quando traduzo: nesses casos, preciso estar com as edições, traduções paralelas e pré-existentes, dicionários online e um Houaiss de papel que quase nunca abro. Sempre que lembro, dou uma olhada na estátua de São Jerônimo que tenho há uns 15 anos: evoé, meu padroeiro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como estou em várias frentes, vou tentar separar aqui, embora eu meio que faço tudo ao mesmo tempo.
Sim, eu escrevo todos os dias, mas não porque quero, nem porque preciso. Escrevo porque anoto para as aulas, preparo artigos/ensaios/livros, traduzo e anoto traduções, faço poemas. Raro o dia em que não escrevo nada. E, pra ser sincero, há uma bênção nesses dias de não-escrever-propriamente; mas receio que, mesmo quando não digito, escrevo.
Então eu traduzo quase todos os dias de semana. Há alguns anos atrás, eu decidi que não trabalharia mais com isso em fins de semana e feriados; menti para mim mesmo, claro, mas tento evitar tanto quanto posso. O fato é que tenho metas — acho que obcecadamente, apenas para me frustrar — para dias, semanas, meses, anos etc. Não cumpro as metas, que são meus delírios, mas costumo cumprir prazos. Prazo é o contraponto da vida, porque vida não termina, então ele é que dá os cortes, benditos.
A escrita de poesia tem uma temporalidade muito outra. A começar porque não tenho meta. Ou melhor dizendo, minha meta é um dia nem escrever. Não é que eu sofra na escrita — pelo contrário, adoro, tenho prazer imenso, mesmo —, mas é da ordem da compulsão: ela me demanda, me assoma, me obriga. Luto contra o ímpeto da escrita literária desde que me assumi como poeta, tanto que demorei para publicar, quando já tinha três livros prontos e dois a caminho (aí todos acham agora que produzo sem parar, mas é uma ilusão). Então vivo os momentos de felicidade (leia-se fertilidade), mas até gosto mais dos momentos em que essa fertilidade está mansa: ainda quero ser um pé de ipê.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É sempre difícil começar, mas em parte porque recuso o começo, esse é o meu quê de Macunaíma. Poemas, por exemplo, eu carrego na cabeça por dias, semanas, algumas coisas ficaram comigo por anos, até eu decidir escrever, meio que por desistência. Sinto que busco perder meus textos, esquecê-los antes da fixá-los, e de fato perco a imensa maioria do que produzo. Alguém poderia chamar de autossabotagem, mas é um gozo: adoro improvisar sozinho, inventar melodias, poemas, rimas, palavras, pela performance do momento, também junto com os meus filhos. Voltando ao ipê: as flores caídas no chão vão sumir, mas não perderam seu gesto, e podemos pisar nelas sem medo, é tudo feito pra acabar. Mas, uma vez que o poema se encarnou e me obcecou, não tenho receio de digitar, sempre direto ao computador (não tenho cadernos, quase nunca tive (minto, trago hoje um caderno apenas para guardar as palavras mais gostosas da língua, que quero usar na tradução de Rabelais)).
Alguns trabalhos maiores recebem anotações no próprio arquivo. Foi o caso do poema-livro Naharia, que escrevi ao longo de uma década. Como eu sabia que estaria sempre tentando esquecer, boicotei o procedimento desmemorial e anotei o que deveria acontecer. Assim, quando sentava para escrever (com intervalos de anos, maturando e matutando a vida em escuta que era o poema), eu seguia um projeto que um outro eu havia bolado. Escrever ao longo de uma década me fez ter a sensação de que estabeleci uma parceria com minha alteridade, topei dialogar com alguém que eu não poderia mais ser, por causa dessas notas.
Já a escrita acadêmica é programada, mas intensa. Leio tudo que me cai na mão sobre o assunto, não tomo nenhuma nota, enquanto apenas risco os livros; depois sento ao computador e escrevo textos longos numa manhã apenas, ou mais longos em coisa de uma semana, sem abrir mais livro algum, tornando tudo coisa incorporada, fundindo autorias, ideias, faço com que tudo aconteça num texto só. Depois disso, volto aos livros e vou buscar as referências, para que elas dialoguem com um texto que saiu mais livremente; antes fazia mais isso, para dar conta das demandas de uma estilística acadêmica fascinada por notas de rodapé, citações e datas. Tenho largado mão e deixado os textos finais mais próximos desse pensamento em ebulição, com um certo tom de conversa. Não sei se o estilo faz o homem, mas entendo que o modo como penso é o próprio pensamento; quero que esse modo de pensar seja a escrita. Agora vou contar: ando amando a escrita coletiva. Tive um prazer imenso em escrever Algo infiel com meu amigo, irmão e colega Rodrigo Gonçalves (a gente deve ter escrito o livro todo em uns 40 dias, acho): na escrita-a-mais-que-um eu posso levar ao limite essa poética da fundição que me fascina. Isso também aconteceu na tradução, num trabalho coletivo com o Paraíso reconquistado de John Milton e numa parceria tradutória que fiz com Daniel Martineschen para verter um livro teórico de Friedrich Kittler, que ainda não foi publicado. Quero viver mais desses processos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Trava de escrita eu não sei o que é. Nunca tive. Quer dizer, isso se trava for um desejo de escrever acompanhado de uma incapacidade de escrever. O que tenho, por vezes, é falta do que escrever, falta de vontade de escrever; mas aí não me parece trava, e sim bênção. Meu projeto de vida é parar de escrever, admiro imenso figuras como Rimbaud ou Raduan Nassar, que simplesmente largaram a escrita, porque viram que vida é o esquema, ou Stela do Patrocínio, que nunca escreveu um poema, mas fazia a linguagem-vida. Escrever é um modo de estar na vida, mas não pretendo que seja uma necessidade. Escrevo para me fazer algo, me tornar algo que não sei ainda bem. O dia em que não escrever estarei noutra, por isso gosto muito das fases em que não tenho nada autoral.
A tradução tem algo parecido. Queria um dia não ter mais a compulsão de traduzir. Traduzo porque amo, mas queria amar os textos de modo mais desapegado.
Agora ansiedade, só da morte. Não medo, entenda. É que a morte é o prazo que não vou cumprir, e talvez por isso eu consiga ter disciplina no meu caos. A clareza do fim me leva a produzir como se não houvesse mais prazo. Então sei que ainda não aprendi o que pra mim é o mais fundamental: a morrer — no sentido de viver inteiramente pela metade, ser o inacabado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Pouco reviso, acho um saco. Esta entrevista mesmo, enquanto escrevo, sei que não vou fazer mais do que passar os olhos ao fim. Mas gosto de revisar criativamente as traduções, mudar mesmo, reescrever, aí parece que estou ainda traduzindo, e não revisando, gosto muito de ler e revisar poemas e traduções alheias em processo de troca. Por outro lado, textos acadêmicos me matam quando preciso revisar, por isso sempre peço para pessoas de confiança, que eu sei que vão de fato me criticar sem papas na língua.
Falando nisso, sempre mostrei os poemas como peças inacabadas, esperando mesmo que quem os leia faça uma crítica. A escamandro nasceu de encontro regulares para leitura e crítica mútua com Adriano Scandolara, Bernardo Brandão e Vinicius Barth; e foi uma das experiências mais ricas que já tive, cresci muito com ela, mas precisamente porque éramos inclementes uns com os outros. Se não for pra ser assim, nem mostro. Não quero trocar bom-bom.
Por fim, sentir que um texto está pronto? Não existe. Todo texto é abandonado, isso quer dizer pronto. Alguns eu abandono na cabeça, ou seja, perco, esqueço, largo. Outros deito no computador. Dá pra dizer que nos dois casos estão prontos quando devidamente abandonados. Mas o que se abandona pode retornar. Desconfio que vou refazer coisas já publicadas. Então desprontizo o que foi pronto e abandonado por anos, até que volta a estar no abandono. Terminando essa última frase, percebo: um texto está pronto quando esqueço que é meu. Até porque nunca foi mesmo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como eu disse, rascunho é na cabeça e no corpo. O resto é computador. Mal dou conta de escrever um endereço em envelopes, que a mão já dói por falta de uso. Gosto do computador porque ele pensa como eu, fora de ordem, recorta, enxerta, desloca etc. E ele me deixa escrever na velocidade em que penso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não faço ideia de onde vêm, mas desconfio que do diafragma, que ali tudo se aninha.
E não, não quero ser criativo; ando com certa ojeriza dessa palavra. Quero estar feliz, de felicitas em latim, ou seja, fértil: estrume num pé de ipê.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
O que mudou é que, como professor doutor, não preciso mais prestar contas ao modelo acadêmico algo rígido que impera nas dissertações e teses. Hoje posso escrever com o melhor da minha fertilidade, posso usar o modo como penso pra ser o que penso, no poema e no ensaio. E vou voltar à escrita da minha tese, pra torcê-la e retorcê-la até que ela chegue mais perto disso, aí vou publicar. Quero dizer que, embora tenha defendido a tese, não a considero mais como texto pronto, foi desabandonada, ainda que eu não toque nela há anos.
No caso da poesia, acho que eu me diria: aceita que o teu texto é do outro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero terminar Rabelais, traduzir Homero, a Eneida, o Tristam Shandy. Espero alguém que me dê os prazos.
Todo livro que não li ainda não existe, então quero ler o que não sei.