Guilherme de Miranda Ramos é escritor de verso e prosa, autor de Mateu Errante, Mateu Brincante (2015), Minha Fúria e Outros Demônios (2016) e Estrela Raivosa (2017).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Passei muito tempo dormindo tarde e acordando tarde. Coisa biológica. Nunca funcionei bem pela manhã. Sempre estudei no turno vespertino e, talvez, isso tenha me condicionado. Mas a gente cresce, arruma emprego e as coisas mudam. Desde 1998 “começo” a acordar às 7h45. É o tempo que preciso para despertar, me arrumar e ir ao trabalho. Nem sempre tomo café da manhã – isso me rendeu uma gastrite, não recomendo – deixando para comer mais tarde.
O trabalho (normalmente) me ocupa das 9h às 18h e reservava as noites (e madrugadas) para a escrita. Falo “reservava” porque em 2018, imprevisivelmente, comecei a acordar entre 6h e 6h30, independente da hora que fui dormir. A cabeça começa a mexer as engrenagens e prefiro me levantar. Sem ter muito o que fazer, decidi parar de enrolar e escrever.
Passo uma hora e meia (às vezes mais) pesquisando e esboçando ideias no notebook. Quando o despertador do celular começa a tocar (7h45 virou uma hora simbólica e uma contagem regressiva diária), deixo-o no modo “soneca” e a cada 10 minutos ele me avisa. Parece loucura, mas é uma forma de me alertar que não tenho o tempo todo e que, se alguma ideia aparecer (e for maior, ou realmente boa), ela vai ter que virar tópicos e esperar (respondi essa entrevista, em alguns momentos, assim), porque preciso ir ao trabalho.
Quando retorno para casa, só lá para as 22h, 23h, volto ao notebook. Se eu não inventar de fazer novas pesquisas ou mexer com softwares de música (revezo entre a criação literária e a musical) é a hora de revisar, continuar ou arquivar o que foi feito pela manhã. Nunca descarto nada. Se não serve, vai para um enorme arquivo de texto online e, às vezes, alguma coisa é resgatada. De vez em quando a coisa termina tarde. E o ciclo recomeça. Os finais de semana são imprevisíveis. Ora há muito trabalho de criação, ora nem parece que sou artista.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre achei a noite, a madrugada, o melhor horário para a criação. O clima é mais ameno e o silêncio, maior. Mas, de uns tempos pra cá, tenho experimentado o início das manhãs. O sol ainda não está forte e o movimento da rua ainda não é intenso. Tenho gostado da mudança. Mas o tempo é menor. Por isso preciso estar mais focado.
Nunca pensei que tinha rituais. Agora, pensando direitinho, acho que são:
Normalmente eu sento em frente ao notebook e encaro a página em branco. Daí, visito algumas ideias que ficaram registradas num arquivo de texto on-line (que posso ter escrito pelo celular ou pelo próprio computador) ou começo algo inteiramente novo.
Às vezes crio um título (tenho um arquivo de texto cheio deles) e desenvolvo a história; às vezes é o contrário (tenho vários fragmentos de histórias implorando para serem concluídos e ganharem títulos). Tenho facilidade para criar títulos. Mas, para alguns, isso pode ser um pesadelo.
Evito escutar música. O silêncio é mais confortável para a minha criação. Criei muita coisa dessa forma. Porém, algumas vezes, escuto uma música específica, repetida milhares de milhões de vezes (e viva o mp3 – imagina isso nos tempos da fita K7 ou do LP?). Não importa se instrumental ou com letra, mas o clima que ela me proporciona. Já escrevi enredos inteiros inspirado apenas por uma faixa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já tentei me impor uma meta assim. Eu me desafiei com dois projetos: “Uma poesia por dia” (2014-2016) e “Uma prosa por semana” (2016), onde eu tinha que escrever diariamente. Cheguei a diagramar dois livros de poesia com 366 poemas cada (escrevi poemas extras, porque os anos podem ser bissextos), sem títulos, apenas com a numeração do dia e o nome do mês. Fiz capa, apresentação e ilustrações/epígrafes mensais (num deles eu usei o significado dos nomes dos meses; no outro, os signos do zodíaco). O livro de prosas foi mais difícil. Ele empacou antes da metade do ano. Nos dois casos, o início foi legal, mas depois de um tempo eu brigava com o relógio e a proximidade da meia-noite (poesia) e do domingo (prosa) me angustiava, sobretudo quando eu tinha uma jornada maior no trabalho.
Confesso que a produção literária foi intensa (houve momentos em que eu fazia dois, três poemas diários e me dava ao luxo de escolher um deles), os temas livres (mas percebi que “tematizar” pode me travar, prefiro escrever e, depois, encaixar o resultado em alguma produção mais centrada), porém, a “pressão” deixou de ser positiva em um dado momento para me fazer escrever automaticamente, repetir temas, palavras, sonoridades. Eu precisava mudar de estratégia.
Então, eu desisti. E, simplesmente pelo fato de eu ter abandonado a obrigação de escrever todos os dias, poesias, argumentos e até músicas começaram a surgir na minha cabeça, mas nas horas mais inconvenientes: no banho, no trânsito, numa reunião etc. Sacanagem, né? Por isso, quando a ideia vem, eu a anoto num bloco de notas no celular e trabalho nela depois.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ando atento às ideias ao redor. Às vezes, uma música, uma palavra dita por mim (ou por alguém próximo), uma frase num livro (ou num texto aleatório) dispara um gatilho interno. Esse gatilho precisa ser escrito e revisto depois. Senão a ideia se perde e nunca mais volta, porque elas vão e vem na minha mente incansavelmente.
O uso do celular para registrar ideias faz uma grande diferença para mim. Já perdi a conta das vezes em que eu parei o que estou fazendo e registro palavras, frases, parágrafos inteiros, sem quaisquer ligações (acabo de fazer isso, nesse momento), para trabalhar neles depois.
Houve um dia em que uma simples frase ecoou na minha cabeça. Parei o carro, anotei no celular, achando que era um início de conto e, horas depois, ao me debruçar uma manhã inteira sobre ela, surgiu uma crônica. A tal frase foi usada exatamente no final. Meses depois o texto foi premiado no “I Concurso de Crônicas Ivone dos Santos” (2016), promovido pela Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas. Imagina se eu não tivesse escrito a frase? Talvez a história contada aqui tivesse um final terrivelmente diferente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou ansioso. Quero contar logo a história. Ainda não tenho muita paciência (ou seria competência?) para me disciplinar (e me conter com pequenas pistas e ganchos, capítulo após capítulo) a ponto de escrever um romance. Mas eu chego lá. Por isso os contos e as crônicas me surgem aos montes. São tantas histórias para contar e tão pouco tempo para redigi-las, que se eu fosse me dedicar a uma narrativa mais longa por vez, sinto que muitas ideias não ganhariam vida. E os leitores não merecem tão pouco.
Quando me deparo com a tal “página em branco”, e isso normalmente ocorre quando eu me imponho um tema, por exemplo, eu começo a escrever qualquer coisa. Algo sem compromisso, que não tenha absolutamente nada a ver com o que eu preciso. Às vezes, escolho palavras aleatórias, imagens, sons. Fixo a atenção nesses estímulos e, à medida em que o texto vai se formando, uma voz interior começa a competir com o que está sendo feito. Daí eu encerro a escrita automática e me foco no que eu queria, ou faço uma pesquisa na internet sobre o tema que preciso trabalhar, enquanto vou escrevendo tópicos para alinhar as ideias. Lentamente ideia e ímpeto se ajustam e eu concluo o objetivo. Meio caótico, né? Bem-vindo ao meu mundo.
Muitas vezes, uso a desculpa do dia atribulado, do cansaço para não escrever. Mas as ideias estão na cabeça. Se o corpo não quer se sentar numa cadeira confortável para produzir, porque vai sentir mais sono, eu busco um banco de madeira ou plástico, bem desconfortável mesmo, para que o trabalho seja rápido. O limite da dor nas costas é que me impulsiona. Aí eu, teimoso, quero ficar mais. Escrever mais. Venci a procrastinação. É a hora de trocar o banco pela cadeira.
Claro que tem dias que não sai nada. Não adianta insistir. Eu só me canso e começo a achar que não escrevo bem, que só escrevo porcarias, que deveria parar. Mas quando olho ao redor, minha rotina é literária, tudo que faço recai na literatura. Olhando para trás, a literatura sempre esteve presente em mim. Eu é que demorei a notá-la. É preciso correr contra o tempo perdido.
Nessas horas, o melhor a fazer é escutar, compor uma música, assistir a um filme, dar uma volta com minha companheira. Não podemos esquecer a vida pessoal por causa da escrita. Querendo ou não, são as vivências que tornam o que criamos mais verossímil. E até a falta de inspiração daria um bom tema para ser escrito.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se eu não me controlar, reviso meus textos infinitamente. Talvez, por isso mesmo, muitos ainda não estão prontos. Mas tenho um acordo comigo mesmo: se esse ou aquele conteúdo for selecionado em algum edital/concurso, ele não será mais mudado. No máximo, revisado pela editora, porque é de praxe. Há, claro, casos em que os textos vêm na dose certa (normalmente os mais curtos) e quase não reviso. Apenas “esqueço” eles por uns dias e, depois, dou uma nova lida. Se ela for fluida, se a sonoridade das palavras não me incomodar, eles são arquivados para compor algo maior.
Antes eu postava muitos textos no meu blog e alguns comentários eram levados em consideração. Mas, de uns anos para cá, por conta da necessidade do ineditismo (exigência para editais e concursos literários) confio a poucos essa delicada responsabilidade. Atualmente, o trabalho pesa sobre os ombros de Fátima Costa, minha companheira, que também é escritora. Ela tem uma visão técnica/estética e uma sensibilidade tão grandes que eu preciso me esforçar muito para convencê-la de que esse ou aquele termo é realmente necessário no texto. Já adianto aos que tentarem essa técnica: é preciso muito amor, amizade e sinceridade entre o casal. Porque é delicado criticar verdadeiramente a produção de alguém tão próximo. Isso pode, em alguns casos, até desgastar o relacionamento. Realize por sua conta e risco (ou busque um outro profissional da área e continue feliz em casa).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já escrevi à mão, já datilografei (até hoje tenho minha Remington Ipanema, parceira de muitas histórias), mas ainda não encontrei algo melhor que o computador. Minhas mãos não conseguem mais acompanhar a velocidade de meus pensamentos (até no notebook, às vezes, é difícil). Normalmente crio no computador ou num bloco de notas no celular. Este último, incrivelmente, tem sido uma surpresa para mim. Apesar de incômodo, já desenvolvi histórias inteiras nele. Não sei se é o fato dele me permitir um foco maior, apesar da tela menor, mas quando a ideia vem e eu uso o celular, a coisa flui bem mais rápida. Já tentei isso em tablets, mas não é a mesma coisa.
O risco da praticidade tecnológica é sempre o mesmo: originais podem se perder se você não tiver atenção. Sugiro que, ao trabalhar num ambiente virtual, os arquivos sejam salvos com um novo nome logo no início, quando forem abertos e, só depois, editados. Não comece a escrever para salvar depois, porque você vai esquecer. Vai apagar o arquivo e se arrepender por toda a eternidade. Salvando logo no início, caso não goste das mudanças, basta retornar ao arquivo original e/ou criar um novo arquivo, híbrido, com as versões existentes. Mas salve. Sempre “salve como…”
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Na maioria das vezes eu flerto com uma palavra, uma frase, uma sonoridade e aí a escrita vem. Outras vezes eu penso num mote, num título e escrevo sobre ele. Particularmente gosto de sentir as palavras e elas vêm com frequência me provocar. Tenho preferência pelo sombrio. E há sombras em tudo, certo? Todo mundo tem (ou terá) um segredo inconfessável, um pecado, uma mazela. Eu escrevo sobre isso. Até sem querer. São flertes linguísticos. Só na revisão é que eu deixo a liberdade/emoção de lado e passo a usar a razão/técnica. Acredito que só podemos escrever bem sobre algo que conhecemos e/ou vivenciamos. Ao criar cenários, personagens, tramas, uso – às vezes, inconscientemente – vivências minhas ou de pessoas próximas. Não é autoficção (que é baseada em fatos), mas inspirações, uma entre inúmeras técnicas de escrita possíveis, pois a imaginação, apesar de infinita, precisa de estímulos constantes.
Eu me considero uma pessoa criativa em tempo integral. E isso pode até ser um problema, sabia? Ficar com ideias zanzando na cabeça o tempo todo incomoda porque não posso me dedicar integralmente à escrita. Esse seria meu sonho de consumo. Parte da minha literatura morre justamente por isso: não consigo guardar tudo na cabeça e, dependendo do momento, não é possível registrar as ideias na sua totalidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrevia aos 12 anos, apenas por diversão. Comecei a fazer teatro aos 15 e passei a escrever peças teatrais. Após os 18, conheci o RPG (Role Playing Game) e histórias, cenários, tramas não paravam de surgir. Muita coisa desse período está guardada em gavetas, HDs e, agora, nas nuvens. Aos 26, estava fazendo meu Trabalho de Conclusão de Curso, a escrita foi totalmente acadêmica. Aos 34, criei um blog, onde expus escritos antigos e lancei novas criações. Só em 2014 decidi me arriscar em editais literários (adultos e infantis), por isso preciso adaptar ou recriar um estilo vez por outra. Estou em constante mutação.
Se eu pudesse falar comigo na época das minhas grandes produções (porque eu escrevia o tempo todo, sem parar), diria: “Guilherme, anote as ideias, mas foque em uma história por vez. Pare de pesquisar infinitamente e escreva. Você tem ideias que serão usadas por outras pessoas em algumas décadas. Então, apresse-se. Mostre isso ao mercado editorial antes delas”. Mas será que eu me escutaria?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho ideias constantes. Aos montes. Mas pouco tempo livre. Por isso muita coisa fica inacabada. No período dessa entrevista (e eu demorei muito para entregá-la, obrigado pela compreensão) tive mais de três. É quase uma compulsão. Precisavam ser anotadas. Vamos ver quando viram realidade. De todas as ideias (antes e depois do “Como eu Escrevo”), gostaria de realizar uma exposição literária (o nome é segredo), onde o público teria acesso a vários textos em prosa mas, após sua interação, eles virariam poesias, que poderiam ser levadas para casa. Essa daí, literalmente, não me sai da cabeça.
Gostaria de ler as autobiografias de Deus e do diabo. Só não sei se eu – ou se o mundo – estaria preparado para isso.