Giovana Madalosso é escritora, autora de “Tudo pode ser roubado” (Todavia, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia tomando café com leite e lendo o jornal. Acho que estou ficando velha porque tenho sentido que isso tornou-se um dos meus maiores prazeres: acordar cedo, abrir a porta e encontrar o maço de papel na minha soleira. Além de me informar – acho obrigatório saber o que acontece e se posicionar politicamente, ainda mais nesse momento – também uso o jornal como uma fonte para o meu trabalho. Não costumamos nos dar conta, mas a matéria-prima de qualquer periódico são narrativas. Às vezes, desse imenso compilado de histórias, eu pesco alguma para usar no que escrevo. Ou vou escrever, porque muitas vezes eu recorto uma notícia sem nem saber onde vou usá-la. Recorto porque me impressionou de alguma maneira. Depois prego na minha parede de cortiça e deixo ali até que apareça uma chance de usar. Um exemplo? A história da mulher que tricotava apenas blusas verdes, do “Tudo pode ser roubado”,surgiu de um obituário. A realidade costuma ser uma excelente ficcionista.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quem dera eu pudesse ter um horário escolhido por mim. Tenho uma filha de sete anos, então meu horário de trabalho é o do enquanto. Enquanto ela está na escola, enquanto ela vê tevê, enquanto ela dorme. Nesse contexto não há muito tempo para rituais, mas claro que algumas drogas psicoativas (de mãe) ajudam: chocolate, café, Coca-Cola.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria de ser um daqueles escritores que escrevem poucas horas por dia, todos os dias. Infelizmente sou meio obsessiva, não consigo fazer um pouco de cada coisa. Passo algumas semanas ou meses escrevendo apenas literatura, depois semanas ou meses escrevendo apenas roteiro ou fazendo outros trabalhos. Quando estou entregue à literatura, minha meta é escrever três páginas por dia, mas claro que nem sempre esse objetivo é atingido. Às vezes só consigo escrever uma, ou nem isso. Uma coisa em que reparo, e que me faz insistir no meu método monodisciplinar, é que quanto maismergulhada estou numa história mais eu produzo e com melhor qualidade. Cunhei até um verbo para isso: fluxar, referindo-me ao poder de produção desse fluxo incessante.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de pesquisa é longo. Também levo bastante tempo estudando os elementos narrativos que usarei. O romance que estou escrevendo agora foi gestado durante um ano. Nesse período, quase não escrevi. Visitei uma fazenda de bicho da seda no interior do Paraná, criei algumas lagartas em casa – para deleite da minha filha. Visitei outros lugares, entrevistei pessoas. Li livros relacionados ao tema. Criei a história. Também dediquei bastante tempo testando quem seria meu narrador, primeira ou terceira pessoa. E, feito isso, construí a voz de cada narrador (são dois), dando a eles um vocabulário e uma linguagem própria. Finalmente sentei para escrever e daí, claro, a coisa fluiu bem, eu já era íntima dos personagens. Isso me lembra uma frase do Bob Dylan, um bom conselho: Know your song before you sing it.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando estou escrevendo, não me preocupo muito em corresponder a expectativas, fico totalmente absorta pelo texto. Me transporto de tal forma que às vezes esqueço de comer, de pagar contas. Mas quando travo, as preocupações vêm à tona. Começo a questionar partes do texto que eu já julgava perfeitas, a achar problemas onde não existem. Nessas horas, aprendi que é bobagem ficar na frente do computador. Saio para espairecer, geralmente pedalando, e pago as malditas contas que deixei vencer. Aliás, só procrastino tarefas desse tipo, burocráticas. Agora, por exemplo, eu deveria estar fazendo o meu imposto de renda, mas preferi fugir respondendo a essa entrevista. Gosto de escrever por isso, porque lá não é aqui.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mostro para o meu marido, que também é escritor, e para dois amigos escritores. Escolhi essas pessoas não só por escreverem, tenho outros tantos amigos que também fazem isso, mas por serem respeitosos com o estilo literário do outro. Quanto à revisão, eu nem chamaria de revisão. Está mais para um quadro de transtorno compulsivo. Eu releio trechos em casa, no elevador, no trânsito. Eu só paro de mexer quando todas as chances de melhoria estão esgotadas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu não posso imaginar como era a vida de um escritor sem tecnologia. Não só pela facilidade de corrigir e editar rapidamente um texto, o que agiliza muito o processo, mas também pela questão da pesquisa. A internet é uma fonte inesgotável de subsídios para um escritor. Esses dias, para construir uma situação dramática, precisei saber sobre cidades pitorescas que artistas escolheram para viver. Achei diversas, dando Google. Descobri outras, melhores ainda, fazendo um post e perguntando para as pessoas. Como um escritor pré-tecnológico teria chegado nas cidades em que cheguei? Como teria descoberto que uma delas, além de ter sido endereço de Nicanor Parra, é a terra da maior enchilada do mundo? Que o mascote da enchilada é uma pimenta de galochas e sombrero? Podem parecer informações irrelevantes, mas é o contrário. É esse tipo de detalhe que dá sabor e verosimilhança ao texto. Claro que alguns escritores podem trabalhar sem fazer uma única consulta, usando da também inesgotável inventividade, mas para mim a tecnologia abre uma sucessão de portas. Acho maravilhoso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ter ideias é a parte mais fácil para mim. Escrever muitas vezes é sofrido, mas criar é algo que faço sem sentir. O que também é complicado porque não consigo dar vasão para tudo o que eu penso. Tenho um monte de cadernos, um para ideias de contos, outro poesia, crônicas, romances, livros infantis. E olhar para todos esses cadernos com suas dezenas de sementes me dá uma certa ansiedade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ganhei mais segurança. Hoje sei que meu texto tem ritmo, que não vou perder facilmente o leitor. Então diria para mim mesma: solte a mão. Também falaria: não esquente com a temática. Porque hoje sei que, se algo é interessante para mim, também será para outras pessoas. Esse, aliás, é um assunto que precisa ser discutido. Ainda temos uma cartilha muito masculina, branca e de classe média em termos de temáticas bem-vindas na literatura. Meu primeiro livro, o volume de contos A teta racional, foi recusado por diversas editoras por tratar de amamentação e outros temas ligados à maternidade. Depois que lancei, as mulheres vinham me agradecer, obrigada por ter tocado nesse assunto. Quantos manuscritos já foram para o lixo por estarem fora desse pequeno esquadro?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever um livro de poesia. Quero provar para mim mesma que sou capaz de fazer o que considero a forma mais elevada de escrita. O que eu gostaria de ler? Algo que eu não seja capaz de imaginar.