Gio Gomes é doutorande em Literatura Brasileira pela UERJ.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo sempre de manhã bem cedo, né, por volta de seis e meia da manhã. Geralmente vou para o micro e tento escrever. Quando vou escrever um conto, uma história, fico pensando nela o tempo inteiro. Então se estou dirigindo penso na história, se estou andando na rua penso na história, se estou conversando com alguém no trabalho penso na história. E ai acontece é que fico o tempo inteiro pensando na história, ciclicamente, como ume louque.
Vou dormir pensando na história, entende? Estou o tempo inteiro com detalhes na minha cabeça, repassando situações e tropos na minha cabeça. Às vezes, penso “ah… interessante fazer assim, fazer assado”, e geralmente quando acordo, na primeira hora da manhã, consigo botar aquilo no papel. Digo geralmente porque muitas vezes resolvo ver algum anime! Mas no início quero colocar no papel ao menos dois parágrafos. Assim, vou escrevendo nesse momento claro da manhã, quando tudo funciona. Aí posteriormente pego um tempo livre para reunir esses excertos, pensar nos ganchos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre trabalho melhor de manhã, né. Acordo cedo porque acordo, não é uma coisa programada. É o horário que acordo desde pequene. Mas assim, ritual… não tenho. Gosto muito de fazer as coisas com determinada liberdade. Então a melhor maneira é quando produzo com prazer… Eu diria assim: não escolhi a manhã. Mas com relação a uma rotina de escrita, não posso ter, senão as coisas ficam muito feias, ficam mecânicas.
Outra coisa também interessante é que geralmente fico trabalhando duas histórias ao mesmo tempo na cabeça. Não consigo pensar no mesmo enredo o tempo inteiro, fixamente. Eu canso. Então preciso estar pensando em duas histórias.
Por isso sempre estou escrevendo e lendo no mínimo duas coisas. Pode ser um conto e um poema, um romance e um conto, mas sempre duas tramas na minha cabeça. Porque me canso de tramas facilmente. Fico pensando: “ah não… João vai subir a árvore”, e então: “porra, João vai subir a árvore. Como se sobe uma árvore? Precisa de algo para subir uma árvore? Subiu mesmo? Sobe ou não sobe a árvore? Ah, ele pode subir a árvore com uma corda… pode subir a árvore na mão, pode ser um cara exímio escalador de árvores. Ele pode ser o cara que usa garras para escalar a árvore e tal”. E depois de ficar um bom tempo pensando nisso, metade do dia, chega depois do almoço e já estou de saco cheio de ficar pensando só naquilo. Então preciso de uma segunda história para transitar entre uma trama e outra, e não ficar cansade de escrever ou de raciocinar sobre os mesmos personagens.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A minha escrita geralmente é um desabafo. Sempre escrevo para colocar no papel as coisas incômodas, entende? Alguma coisa que percebi. Por isso às vezes acordo cedo e acabo assistindo alguma série, decido rir de memes no twitter. Acontece casualmente de estar simplesmente “de boa”, plene. Mas a escrita é sempre um “colocar para fora”, é o meu movimento artístico. Ela vem com… não chamo naturalidade, mas ela vem por necessidade. Não faço esforço para escrever, nenhum esforço, mas não posso dizer “com naturalidade”, porque preciso escrever para poder ficar bem, para ser feliz, essa é a meta.
Nesse procedimento de estar o tempo inteiro pensando no que vou escrever eu pesquiso, às vezes faço algumas anotações e mando pra mim mesme por e-mail. No final de tudo preencho os períodos nos quais eu estaria ociose com esse trabalho de fechar os textos, reunir anotações: noites de insônia, saídas mais cedo do trabalho, uma sexta à noite em casa… Por aí.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Raramente passo por períodos de branco. Como falei antes, estou sempre desabafando, a escrita é um desabafo. Eu não produzo como uma explosão criativa. A escrita não é uma inspiração sobrenatural, como se um espírito me possuísse. Muito pelo contrário, ela é um desabafo. Então escrevo porque a gente está vivendo, passando por situações tensas, dificuldades e tal. Os obstáculos estão sempre ai, estão sempre acontecendo. É muito simples, é muito orgânico escrever o tempo inteiro e o desabafo me fazer bem.
Claro que gosto e tento usar e fazer experiências com os esqueminhas estruturais: Aristóteles, jornada do herói, jornada da heroína, salve o gato, kishotenketsu etc. Mas o que consegue descrever meu processo com precisão é essa questão emocional de extravasar através da escrita. É uma coisa viciante, por isso não tenho brancos criativos, por isso estou sempre escrevendo. E mesmo que não esteja escrevendo um conto, eu posso desabafar através de um poema ou uma música… Pode ser até um desenho, uma melodia, no sentido amplo de poesia: arte. Acontece às vezes de faltar tempo, mas gravo áudios de whatsapp com meus pensamentos, e quando surge um tempo livre ouço tudo e transcrevo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A escrita para mim não é um projeto, assim, não faz muito sentido pra mim a ideia de projeto, como se eu fosse um arquitete construindo um prédio. Tem mais a ver com provocar emoções, e só vivendo você passa a entender o que é sentir. Escrevo uma escaleta com a mesma sensação, intensidade, de alguém escrevendo um texto qualquer. Quando tenho travas ocasionais, basta revisitar algum filme ou vídeo que me emocione, e acabo parando de ver o vídeo na metade para retomar a escrita. Tenho momentos de “plenitude” nos quais a necessidade de desabafo desaparece, mas eles não são regulares porque sou muito reclamone e chorone.
Agora, gosto de dividir meus textos grandes em pedaços menores. Geralmente, os estruturo assim: se estou escrevendo um capítulo, por exemplo, onde uma ação acontece com meus personagens, então descrevo algo parecido com: “os carinhas vão subir uma ladeira para conversar com um dragão”.
Eu digo:
— legal, nesse capítulo eles vão fazer isso! — Então detalho esse capítulo, sabendo que o outro capítulo será com as consequências dessas ações, entendeu?
A minha escrita é sempre esse ritmo de altos e baixos, acontecimento seguido de desabafo, repetindo-se ciclicamente. E se o texto fica maior é porque priorizo a sequência de eventos, e muitas vezes esse ciclo dá uma desviada, tipo a vida, com suas voltas. Outras vezes os personagens não tem tempo de desabafar e a ação se prolonga. Como falei antes, escrevo a escaleta como quem escreve uma história também, então tenho prazer em sentar e ficar estruturando o enredo porque gosto de pensar em como uma situação macro se desenvolveria, quais atitudes dos personagens são comuns, quais fogem ao padrão. Então coloco essas variações no papel, puxo setas, e no final fica uma coisa muito louca, um fluxograma enorme.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Com relação à estrutura, reviso meu texto milhares de vezes. Se você deixar, continuo revisando pra sempre. Mas assim, quando me sinto minimamente satisfeito com o texto e o enredo faz sentido, está tudo pronto para revisão.
Mas odeio revisão gramatical, não gosto. Tenho formação em literatura e não em gramática, sou formado em literatura brasileira. Entendo alguma coisa de gramática e até gosto, mas não quero fazer revisão dos meus textos depois de escrevê-los. Então, geralmente termino revisões estruturais e passo para a revisão gramatical. Depois para meus beteiros. Tenho poucos, né… venho conhecendo mais alguns. São pessoas talentosas e de confiança, com tato para criticar, paciência para explicar pra mim o que eles não entenderam, onde está confuso. Mas assim, revisão geralmente faço uma antes do beta e outra depois.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu escrevia tudo na mão, hoje em dia escrevo tudo no computador. Pra mim, dá no mesmo. Não tenho dificuldade nenhuma em pegar um lápis e escrever alguma coisa num guardanapo, caso meu celular acabe a bateria. Escrevo no celular, mando e-mail para mim mesmo e gosto do bloco de notas do Windows. Tentei usar aquele Evernote, mas não funcionou muito bem pra mim, não sei por que. Fico mandando mensagem pra mim mesmo no Whatsapp também, às vezes fico horas ali escrevendo no celular, por preguiça de sair do lugar onde estou.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que já expliquei de onde vêm minhas ideias. Elas vêm da vida. Se estou vivendo, estou passando por situações. Geralmente não me preocupo com o externo da situação, eu tenho um fastio, um cansaço da realidade. Acho a realidade previsível, enfadonha. Então me aproprio da situação, mas com minhas preocupações reais. Por exemplo: bati o carro.
O sinal estava danificado, eu estava cansade, dei uma cochilada de leve justamente na hora que passei pelo sinal estragado e bati o carro. Isso é uma situação ordinária da vida comum. No entanto, o que me pegou, e me pegou de verdade, foi a possibilidade de machucar alguém, o fato de atrapalhar alguém, a vida de alguém. Isso realmente me pegou. Então, não pensei: “poxa bati o carro”. Pensei: “poxa eu podia ter machucado alguém”. Depois de algum tempo estava pensando: “poxa eu atrapalhei a vida de pessoas”.
A pessoa estava seguindo o rumo da vida dela, o rumo normal, ela estava indo para casa, ela estava indo pro trabalho, ela estava indo para festa… E eu, por causa de uma situação completamente aleatória da vida, entrei no caminho dessa pessoa e fiz ela mudar de rumo. Mais: fui quem causou todo o prejuízo.
É meu pensamento, focando no segundo plano, entende? Penso naquilo e fico imaginando: “caramba, em quantas situações a gente interrompe a trajetória de alguém. Em quantas situações você é uma pessoa bacana, uma pessoa tentando ser legal, e de repente você é o vilão. Mas você é legal. Mas você não foi legal”.
E esse tipo de coisa exemplifica um pouco como penso e como geralmente crio.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
No início não me preocupava com muita coisa não. Era só um desabafo cru mesmo. Por isso, comecei escrevendo poemas. Tenho uns poemas muito rudimentares em que faço isso: falo meus sentimentos com relação às coisas sem dizer quais coisas são essas. Então, ali você tem uma sensação de crueza.
Com o tempo fui elaborando construtos para poder me aproximar mais disso. Vou criando o que está ao redor desse sentimento cru através de textos. Talvez por isso eu tenha transitado da poesia para o conto.
Eu diria a le Gio do passado: — VÁ EM FRENTE!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Já que penso a criação literária como um desabafo, não tenho um grande projeto para fazer. Eu já disse algo parecido com: não faz muito sentido essa coisa de chamar texto de “projeto”? Tudo no final das contas são só reflexos das coisas vividas. Gosto de pensar a minha escrita dessa maneira.
Agora, livros que precisam existir? Não sei. Assim, estou sempre aberto, meu desejo é ser surpreendide. E ao ler/assistir alguma coisa estou de braços abertos, na expectativa de ser conquistade. Ultimamente o que me pega, me conquista, são coisas falando do que está submerso através de uma linguagem diferenciada. Por isso gosto tanto de ficção especulativa.
Por exemplo, tem um filmezinho indicado por uma amiga, chamado “Thelma”, hoje disponível na Prime vídeo. É aquele tipo de coisa, você tem ali um superpoder, mas o filme não é sobre isso. A animação “Encanto” da Disney também é mais ou menos assim, o filme passa pelos superpoderes, mas ele não é sobre isso.
Estou sempre aberto para ser surpreendide. Gosto de encontrar coisas que teria prazer em fazer, mas não tenho pra frente expectativa de encontrar uma coisa específica não. Meu desejo é me maravilhar através da arte. Não é pra isso que ela serve?