Gabriela Porto Alegre é poeta, tradutora e estudante de Letras Francês.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Olha, eu tento ter. Mas há muito que isso de rotina não serve mais pra mim. Eu tenho, digamos, pequenos objetivos como diminuir o café, alimentar-me bem, ler um naquinho de poesia, respirar fundo, me alongar e pegar um solzin. No que diz respeito à escrita, é notívaga. Eu penso que pelas manhãs deveríamos fazer algo que nos faz genuinamente felizes nos pequenos minutos que sobram, pra aumentar a vontade de sair da cama. Gostar da vida comum é bem importante.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sinto que trabalho melhor na hora do dia em que houver silêncio. Pela manhã e à noite costumo estar mais tranquila pro trabalho. Eu sou estudante, trabalho em traduções e projetos de pesquisa, então quase não tenho mais constrição por horário. Não tenho rituais pra escrita, tentei aquela proposição do “Caminho do artista” ( Julia Cameron) de escrever três páginas matutinas. Mas eu tenho uma dificuldade imensa em dizer algo quando não tenho nada a dizer. A poesia também tá na entrelinha, no silêncio, nas faltas. Há momentos propensos pra escrita sim, que começam antes do ato de articular palavra, num banho, no ato de cozinhar, no toque, no mar, na boca da gente em volta. Em todo lugar que se embrione o contraste entre o comum e o simples. Eu gosto de ver isso como uma sagaz e constante curadoria de fendas. Por outro lado, tem a poesia que é costura, que demora, culmina, raspa. Essa nem a Deusa sabe quando chega.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A gente precisa de regras para viver em sociedade, mas regras em geral são brochantes. Eu busco ao máximo descartar toda e qualquer imposição produtivista sobre a escrita. Claro, imagino que para se escrever um romance seja preciso o mínimo de planejamento e certa disciplina. Por enquanto não tenho metas, mas quem sabe. E não é todo dia que eu escrevo poesia. Escrevo todo dia para fins diversos, e isso acaba cansando um pouco a palavra, mas no trabalho, a tentativa é de acomodar a palavra pra um determinado fim, já na poesia, eu sinto que é mais desacomodar os fins pra achar palavra. E não é todo dia que eu aguento ser desacomodada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No âmbito da pesquisa científica, eu passei por poucas e boas pra começar a escrever, por exemplo no ensaio que prefacia a minha primeira tradução “Veneza Salva”, de Simone Weil. No final das contas eu concluí que preciso, em primeiro lugar, de um respiro entre a pesquisa e a escrita. Um descanso. Depois, esfacelar toda e qualquer expectativa que eu tenha com meu texto e simplesmente começar a construí-lo. Acaba que na medida que a gente põe pra fora, aquilo vira uma entidade que também é capaz de falar, ter língua e opinião. Isso serve bem pra escrita acadêmica e prosa. São boas receptoras de revisões, adições, alterações. Já a “pesquisa” pra poesia eu acho que não existe. Diria mesmo que o ato de escrever poemas é essa investigação. Me convenci um pouco que ninguém se prepara pra escrever um poema. Ou se prepara? Acho que o poema é senão derrubar a blindagem, um jogo de memória, amarelinha: a gente escolhe com o pisar, com olho. O poema é uma perseguição.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Meditação. Yoga. Terapia. Amigos. Chocolate. Automassagem. Natureza. Tem coisas que a gente sabe pela pele que fazem bem. A procrastinação, expectativas, frustrações, estresse e ansiedade sempre vão estar aí e não tem receita pra se emancipar disso. Sejamos realistas, nas condições que a gente vive é quase irrealista defender que há uma forma de se livrar completamente da ansiedade. Acho que aos poucos a gente vai achando conforto e sentido em diferentes lugares. Um deles, justamente, a escrita. Trabalhar em projetos longos e que envolvem outras pessoas é um grande aprendizado pra revisar o nosso modo de se relacionar com o outro, além do que a escrita é uma atividade comumente solitária. Então inserir gente diferente num projeto que envolva escrita é um grande prazer. Já percebemos que o ser humano não faz tão bem sozinho o que faz em coletivo. A cada um cabe a dor e a delícia de entender como agir nesse coletivo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tenho poesias que são de uma pessoa só, e não vão ser publicadas. Não há uma divisão marcada por tema ou por grau de maturação. Não edito muito a poesia antes de postar, e acho interessante inclusive a possibilidade de alteração da poesia mesmo após ela ter sido publicizada. A poesia como um todo orgânico, que pode excretar e devorar. A poesia, mesmo, como animal desconforme, ciborgue-frankensteiniana, tecitura. A poesia que deixa de ser produto do ego para o ego e vira poça, capacho, cabeceira, uma coisa em cima da qual as pessoas arrastam os olhos e deixam a digital. A poesia que se despede de alguém, é esquecida numa folha e é reescrita meses depois pra acolher alguém. Que sublima, que nunca está perfeita (- feita até o fim-), e que bom.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto bastante de usar as quinhentas abas para escrever. Não tenho mesquinharia pra escrita, busco definições, sinônimos, caço palavras bonitas, me inspiro nas poesias que tenho lido, ás vezes enquanto escrevo, já leio uns artigos, me interesso por alguma coisa, quando vejo já estou assistindo um ted talks, mas não esqueço da poesia, circulo de volta pra ela em algum momento. Isso tudo não me desconecta do papel. Escrevo todas minhas cartas de amor e minhas tarefas do dia no papel. Já escrevi muita poesia em cadernos, mas fica tudo rabiscado. O que gosto especialmente do papel é que ele permite que a gente veja o que foi jogado fora, a rasura, o julgamento, os pequenos lixos. A poesia acaba tendo mais carne, a sua produção é mais hemorrágica, gosto de quando ela não tem volta, quando a poesia está mais na textura da folha, do peso do lápis na linha, da caneta borrada por lágrima, no rasgo em fúria. E também gosto do imediatismo de um arquivo no docs.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu não procuro me manter criativa. A criação é intrinsecamente espontânea e livre de pressão. Mas eu diria que sim, tem macete pra tudo nessa vida. Estar presente, mudar o ângulo de visão, se vulnerabilizar, botar o peito pra jogo, andar de bicicleta, mergulhar, se entregar pro sol, se permitir chorar, se encontrar. Ir à feira, conversar com crianças e idosos. E também não se exigir tanto, criar por gozo, sem a intenção de impressionar ou de produzir, mas de ser. Tem sido tão difícil só ser, acho que um poema é um bom locus pra exercitar a existência. E sobre as ideias, eu acho que elas têm de resquício ancestral e ao mesmo tempo uma boa dose de crença, prefiro não falar tanto pra não azarar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no meu processo de escrita fui eu. Quando conheci o outro, a escrita mudou. Quando conheci o mundo, mudou. Quando me conheci, mudou. Aí me perdi de novo, mudou. Quando me amargurei, mudou. Quando finalmente entendi o que é literatura, mudou muito. Quando entendi que nada se cria do pó, quando aceitei que minha escrita é sitiada invariavelmente pelas minhas referências, minhas dependências e desilusões. Quando eu entendi que antes de escrever algo puro, preciso regurgitar uma onda de sombras, expurgar tudo que deixou de ser dito e tudo que foi dito e arrependido. É tanto. E sobre a ex-eu, eu não diria nada à ela, não corrigiria nem policiaria nada no que tange a escrita. Só a pediria que, na medida do impossível, prestasse mais atenção em seus avós.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de ler todos os livros inexistentes (e que vão existir) de nossa contemporânea poeta gaúcha Mar Becker, ela definitivamente é minha maior referência na atualidade. Depois de ter publicado uma tradução do francês, Veneza Salva: poesia e dramaturgia pela editora Bestiário de Porto Alegre, meu próximo projeto de publicação editorial é meu primeiro livro de poemas, que muito provavelmente, conterá muito corpo e casa.