Gabriel Peters é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de recorrer a estratagemas que melhorem meu humor para enfrentar as tarefas do dia ou, pelo menos, para fazer a transição de “espírito que tenta animar uma carcaça” até “pessoa razoavelmente acordada”. Rir é uma forma óbvia de adquirir ânimo, por isso costumo ouvir, pela manhã, os programas de comediantes que tratam de política, como Stephen Colbert e Trevor Noah. Também gosto de escutar algumas passagens motivacionais e inspiradoras que reuni ao longo dos anos, normalmente de autores que amo como se fossem meus amigos: Sêneca, Marco Aurélio, Montaigne, Viktor Frankl, Pierre Hadot. Além dessas referências respeitáveis, tenho literalmente centenas de passagens esparsas recolhidas de livros que meus amigos intelectuais rejeitariam como autoajuda barata. Para dar apenas dois exemplos, há passagens sábias e úteis em livros como “Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes”, de Stephen Covey, ou “Como parar de se preocupar e começar a viver”, de Dale Carnegie (o mesmo autor do famigerado “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, que juro que não li nem pretendo ler). Para escutar tais passagens, utilizo um programa que converte trechos inteiros de texto em áudio no formato mp3, o que significa que posso ouvir meus escritos prediletos enquanto lavo a louça, tomo banho ou faço exercícios. O único “porém” é que a fala é computadorizada, possuindo uma sonoridade próxima àquela do programa utilizado pelo físico britânico Stephen Hawking. O feitio robótico da voz costuma provocar estranheza nas pessoas com quem convivo intimamente, o que é realmente uma pena, já que, como as passagens que mais ouço são precisamente aquelas que mais me inspiram, a dita voz se tornou uma das presenças que mais amo em minha vida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor entre o meio da tarde e o início da noite. É nesse período que sinto a nítida sensação de “embalo” intelectual, de mergulho profundo nas ideias que lanço no papel. A despeito do inconveniente de ter de acordar cedo (ver a resposta acima), a experiência de dar aulas durante a manhã é sempre muito positiva para as sessões de escrita da tarde, já que uma série de ideias surgem durante a minha exposição e, sobretudo, a partir da discussão com estudantes. Quando não dou aula, normalmente a sessão de escrita é precedida por sessões de leitura. Para além das leituras que realizo em função das minhas pesquisas, gosto de ler grandes prosadores para ver se assimilo algo do seu estilo por osmose. Minhas inspirações prediletas costumam ser os críticos literários brasileiros, que tiveram seu estilo talhado no contato com a literatura ficcional, mas o transpuseram para a escrita de não ficção. A lista é grande, incluindo de Augusto Meyer a José Guilherme Merquior, passando por Antonio Candido.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Faço o possível para escrever todos os dias. O que começou como um compromisso autoimposto já se tornou, hoje, um hábito, a tal ponto que me sinto agoniado nos dias em que não escrevo uma mísera linha. É irônico que, depois de ter passado um longo tempo do meu doutorado sofrendo de bloqueio, eu tenha descambado para a patologia reversa: uma espécie de grafoincontinência. Seja como for, ainda que textos publicáveis sejam um objetivo desejado, a prática de escrita já se tornou para mim um ritual diário, um fim em si mesmo, um exercício que vale a pena mesmo nos dias em que nenhuma coisa de valor resulta dele.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Fundamental para mim é a ideia de “embalo” ou “momento” intelectual (em um sentido análogo ao da física, que é também a noção mais usual de “momentum” em inglês). Os esforços iniciais costumam ser frustrantes, mas é mais fácil persistir no trabalho quando se sabe por experiência pregressa que, mais cedo ou mais tarde, virá aquele esquecimento de si próprio na atividade (nesse caso, na atividade de escrita) que a psicologia chama de experiências de “fluxo” ou “atenção plena” (mindfulness). É por isso que, em vez de esperar a motivação ou a “inspiração” surgirem, é absolutamente crucial que eu me force a escrever até que o verdadeiro ânimo apareça no meio do caminho. Sob esse aspecto, uma sessão intensa e gratificante de trabalho se assemelha a uma sessão intensa e gratificante de exercício físico: os primeiros períodos são desagradáveis, mas, se persistimos na tarefa por tempo suficiente, nos vemos com um novo fôlego e, melhor ainda, arrebatados por uma espécie de euforia. Em ambos os casos – isto é, no exercício físico como na escrita -, não podemos controlar exatamente quando essa sensação de euforia ou êxtase aparecerá. Pode-se apenas persistir na entrega de sangue, suor e lágrimas com a expectativa de que ela emerja mais cedo ou mais tarde.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Há um punhado de estratégias para lidar com esses problemas. O que é comum a essas estratégias é que elas parecem óbvias e triviais quando explicitadas, mas são um bocado difíceis de internalizar na prática da escrita. A primeira delas: trocar uma orientação de trabalho demasiadamente voltada ao resultado por uma orientação voltada ao processo. Uma orientação processual é um estratagema para evitar o pânico diante do hiato entre o que efetivamente temos (p.ex., uma página em branco diante de nós ou um punhado de ideias confusamente lançadas no papel) e nosso modelo do que deve ser o trabalho acabado (um produto não apenas extenso, mas bem organizado, de boa qualidade etc.). Do ponto de vista emocional, a sessão de trabalho fluirá muito melhor se seu objetivo não for escrever uma magnífica tese de 300 páginas, mas escrever hoje dois ou três parágrafos. Estes também não precisam ser perfeitos, apenas material com potencial de edição futura. Amanhã, o raciocínio será o mesmo…
Essa referência à edição já alude a uma segunda estratégia, também baseada em uma distinção de atitudes psicológicas, qual seja, aquela entre duas “mentes” na minha cabeça: a mente inventiva ou, para soar menos autocomplacente, experimental, de um lado; e a mente editorial, de outro. Caso minha mente editorial esteja “ligada” o tempo todo, sobretudo nos estágios iniciais da escrita, ela se frustrará cedo demais e rejeitará uma série de ideias antes mesmo que as pobrezinhas tenham espaço para respirar e, quem sabe, florescer. Kurt Vonnegut disse em algum lugar que existem dois tipos de escritores. De um lado, aqueles que, primeiramente, lançam todas as suas ideias na página, não importa quão confusamente, para apenas depois retornarem ao bloco de texto que jorraram rapidamente na tela do computador (página do caderno etc.), editando-o, reeditando-o e reeditando-o vezes mais até que ele fique bom. De outro, os artífices paquidérmicos da sentença perfeita, que escrevem e reescrevem pacientemente cada frase, só passando para a seguinte quando satisfeitos com o que fizeram. É reconfortante notar que Vonnegut nem se dá ao trabalho de mencionar o tipo de escritor que, ao se sentar diante da página em branco, produz frases perfeitamente organizadas e precisas sem sofrer qualquer hesitação ou agonia. Talvez esse tipo de criatura exista, mas, de todo modo, ela não deve servir de modelo para nós que estamos mergulhados na luta.
Quanto aos estilos vonnegutianos de escrita, conheço, de fato, pessoas que trabalham bem à maneira do segundo tipo, isto é, matutando pacientemente sobre cada frase antes de passar à seguinte. No entanto, para as pessoas que sofrem ou, como eu, já sofreram de bloqueio e pânico diante da página em branco, trata-se de um método mais perigoso. Com frequência, o bloqueio resulta precisamente do fato de que a mente editorial se impõe à consciência com demasiado rigor e demasiado cedo, rejeitando as ideias aventadas pela mente criativa antes mesmo, como já disse, que ela tenha qualquer chance de explorá-las em todo o seu potencial. É por isso que, para mim, o primeiro método descrito por Vonnegut tende a funcionar melhor. Digo para mim mesmo que, na primeira etapa do trabalho, simplesmente lançarei as ideias na página sem uma preocupação demasiada com sua qualidade, com a confiança de que terei a oportunidade de retornar a elas para retrabalhá-las. Assim, a mente experimental tem o seu momento de diversão, mas a mente editorial também terá todo o tempo do mundo para revisar e melhorar o texto obsessivamente.
Outra estratégia que eu mencionaria se sobrepõe parcialmente às outras, mas vale a pena listá-la, dado que ela salvou minha vida ao longo do doutorado: recalibragem de objetivos. A distinção entre a orientação para o processo e a orientação para o resultado, que encontrei no trabalho de uma psicóloga chamada Carol Dweck, já é um exemplo disso: a cada sessão diária, meu objetivo não é “escrever um artigo”, mas “trabalhar nesse ou naquele pedaço de um possível artigo”. Hoje em dia, como afirmei acima, esse método de trabalho me acorre espontaneamente, já que o difícil para mim seria não escrever alguma coisinha todos os dias – não necessariamente algo publicável ou mesmo mostrável para qualquer outro ser humano, mas algo que sirva, ao menos, para exercitar os “músculos” da escrita. No momento mais penoso do meu doutorado, no entanto, só consegui superar meu bloqueio praticando ínfimas recalibragens de objetivos. O princípio é simples: se algo é difícil, veja se pode dar um passo menor (qualquer passo, já que o que importa é fazer algum progresso, por mínimo que seja). Assim, desisti de escrever, mas me forcei a ficar uma hora diante da página em branco no Word (nada de conexão à internet, nada de leitura etc.). Ao final da sessão, tive uma sensação ambivalente: por um lado, foi deprimente dar-me conta da extensão do meu bloqueio para praticar algo que eu já havia feito centenas de vezes no passado; por outro, vivenciei certo orgulho por ter me mantido na cadeira durante todo o tempo. No dia seguinte, quando comecei a fazer a mesma coisa, a sensação de agonia deu lugar ao tédio, e tive de escrever. Como as primeiras sentenças me desagradaram horrivelmente, no entanto, tive de recalibrar uma vez mais o objetivo: escrever outra coisa que não sentenças. Comecei a listar ideias no papel como se fossem, digamos, itens de supermercado. No embalo, senti a vontade de escrever sentenças inteiras, mas dizendo para mim mesmo que elas ainda não eram minha tese, e sim parte de um exercício para soltar minha “musculatura”. E daí a coisa andou… Obviamente, é injusto esperar que orientadoras e orientadores imensamente ocupados sejam também terapeutas, mas, no interesse da transparência, devo confessar que nem minha dissertação de mestrado nem minha tese de doutorado teriam sido concluídas se eu não tivesse contado com orientadores que não eram apenas intelectuais brilhantes, mas também, por assim dizer, meus consultores existenciais: Luís de Gusmão (UnB) e Frédéric Vandenberghe (IESP-UERJ).
Por último, e com o perdão da resposta monumentalmente longa, é sempre bom lembrar outro princípio da psicologia conhecido desde a famosa história de Ulisses e das sereias na Odisseia: a forma mais eficaz de autocontrole é colocar a si próprio em situações que não exijam demais do seu autocontrole. Há muitas distrações em casa? Vá à biblioteca ou construa o equivalente prático de um bunker no porão. Estabeleça horários específicos para checar o celular ou acessar a internet. Se é difícil resistir à tentação, não apenas silencie as notificações do Whatsapp: desligue o celular e coloque-o em outro aposento distante, preferencialmente debaixo de uma pilha de roupas (sim, ele não faria barulho de todo modo, mas o efeito psicológico é importante). Desabilite o Wi-Fi do seu notebook (e se eu tiver de pesquisar um termo em língua estrangeira ou um verbete de enciclopédia? Sem problema: anoto no papel e pesquiso depois). E assim por diante…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Ernest Hemingway, que escreveu 47 finais alternativos para seu romance Adeus às armas, tem uma frase maravilhosa: “o primeiro rascunho de qualquer coisa é uma merda”. A frase sugere algo mais radical do que a comum sugestão de “polir” um texto. A fase do polimento já pressupõe que se está trabalhando com um diamante bruto. No entanto, o verdadeiro desafio da escrita, para seguir com a metáfora rude de Hemingway, é uma tarefa mais radical de operação alquímica: transformar merda em ouro ou, pelo menos, em algo que seja melhor do que merda.
Seja como for, após algumas revisões, o ideal é solicitar os comentários críticos de um punhado de pessoas confiáveis, o que não é sempre fácil nessa era de overdose de informações disponíveis e de colegas atarefadíssimos. Quando tenho a sorte de contar com opiniões diversas a respeito das penúltimas versões dos meus textos, surge uma nova gama de desafios. O primeiro deles é o de monitorar meus reflexos defensivos diante de críticas. Foram muitas as vezes, por exemplo, em que achei sugestões de modificação completamente dispensáveis logo que as ouvi, apenas para reconhecer sua enorme pertinência depois de matutar sobre o assunto ao longo de alguns dias. Quando o feedback vem em certa abundância, outra dificuldade significativa é a de lidar construtivamente com a variedade de respostas: as passagens que agradam a uns desagradam a outros, e as que agradam a outros desagradam a uns; seções temáticas que A e B sugerem dispensar são justamente aquelas que C e D sugerem desenvolver mais detalhadamente; e assim por diante. É por isso que os comentários e sugestões alheias não me eximem de tomar decisões difíceis, no fim das contas, a respeito do que será ou não incorporado à versão final do trabalho. O processo é difícil, porém necessário, não apenas como exercício do julgamento intelectual diante de informações conflitantes, mas também para tornar o “ego autoral” mais resiliente diante de qualquer gangorra emocional, isto é, menos suscetível seja a inflar com elogios, seja a murchar com críticas.
Por último, caso um feedback de outros não seja possível e seja preciso fazer uma revisão final solitariamente, creio que é fundamental dar a si próprio um intervalo significativo de tempo, deixando o texto “respirar”, como se diz, para poder retornar a ele com um olhar mais fresco e distanciado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo diretamente no computador. Até o aspecto motor e sensorial da escrita se tornou prazeroso para mim: o movimento dos dedos (digito com dois, como bom catador de milho), o barulho das teclas etc.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho interessante manter certo equilíbrio entre restrição e largueza de foco. Por um lado, é impossível produzir um trabalho de bom nível sem uma dose significativa de especialização. Isto dito, é interessante manter parte do seu trabalho mais livre para devaneios e leituras bastante distanciadas, pelo menos à primeira vista, das suas temáticas de pesquisa. Em um livro genial chamado O ato da criação, Arthur Koestler ilustrou como ideias originais advêm frequentemente da descoberta de que informações de um domínio disciplinar são relevantes para um domínio que, até então, era tido como distante e desconectado.
O trabalho especializado é essencial para que possamos adicionar algo original, por pequeno que seja, a um campo intelectual. Ao mesmo tempo, esses passeios a esmo por outras áreas aumentam a probabilidade de que nos saiamos com ideias originais quando nossa mente esbarra em conexões inusitadas entre diferentes domínios. Por exemplo, foi perseguindo interesses independentes que acabei descobrindo, espantado, que a literatura psiquiátrica sobre as experiências esquizofrênicas era imensamente relevante para as teorias sociológicas da ação e vice-versa. Esse cruzamento de temáticas foi o tema do meu doutorado, que agora será publicado como meu segundo livro (“A ordem social como problema psíquico: do existencialismo sociológico à epistemologia insana” [Annablume]). Suspeito, na verdade, que encontrei um programa de pesquisa no qual trabalharei pelo resto da minha vida.
Outro conselho fundamental, devidamente registrado nas biografias e depoimentos de dezenas de criadores experientes, é o de manter um caderno de anotações ou qualquer outra tecnologia que lhe permita registrar boas ideias quando elas pipocam em sua cabeça. É difícil resistir tanto à preguiça de transmiti-las da sua mente para o papel (gravador, computador etc.) quanto à sensação de que tal ou qual insight é importante ou interessante demais para que o esqueçamos. Basta um pouquinho de experiência com o registro frequente dos nossos pensamentos para que descubramos que isto não é verdade. Deparar com reflexões que registramos, mas que não lembramos minimamente de haver tido, é uma experiência gratificante. Ao mesmo tempo, trata-se de um indício de que vários achados valiosos que não nos demos ao trabalho de registrar, logo no momento em que eles vieram, provavelmente se perderam para sempre.
Seja como for, é importante ressaltar que o processo inteiro é experimental: é possível checar nosso caderno de anotações e encontrar ali, com entusiasmo, insights interessantes dos quais havíamos esquecido completamente. Mas o inverso também é verdadeiro (e deprimentemente mais comum): ideias que nos empolgaram como ouro intelectual quando as tivemos parecem, a uma segunda leitura, belas porcarias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Essa resposta é bem fácil. Minha longa existência de pós-graduando me levou a mergulhar de tal modo nas minhas pesquisas que meu estilo de escrita se tornou, ao longo de uns bons dez anos, cada vez menos didático. A isso se somou minha admiração por autores como Pierre Bourdieu e Max Weber, que certamente legaram a nós a lição de que retratar realidades complexas de modo fidedigno passa necessariamente por uma complexificação da linguagem que mobilizamos para tratar delas. Com o tempo, e sobretudo com a experiência de dar aulas, senti uma necessidade muito maior de dar um tratamento didático aos meus textos: não escrever sentenças longas demais (como é minha propensão espontânea, provavelmente advinda de um medo dessas pequenas mortes que são os pontos finais); exprimir um número reduzido de ideias por sentença (contra minha vontade de dizer tudo ao mesmo tempo, que me levava a escrever segundo o equivalente estilístico do malabarismo chinês); introduzir exemplos a todo tempo, em vez de passar de um conceito abstrato a outro; etc.
O estranhamento em relação à minha prosa de outrora, que agora me soa desnecessariamente complexa, tem seu quê de desconfortável, mas acalento a suspeita otimista de que ele represente um amadurecimento(zinho) intelectual. Tive a sorte de poder limar vários dos excessos retóricos de minha pesadíssima dissertação de mestrado quando a revisei para transformá-la no meu primeiro livro: “Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu” (São Paulo: Annablume, 2015). Ainda assim, ao relê-lo hoje, tenho certeza de que pensaria em uma série de modificações estilísticas para torná-lo mais acessível. Enfim, vivendo e – quero crer – aprendendo…
Acho que o fato de ter desenvolvido uma escrita hermética para, mais recentemente, trabalhar com um estilo que é (espero) muito mais didático também me instilou uma atitude equidistante dos extremos de uma ridícula polarização nas leituras do discurso acadêmico: a) de um lado, a equiparação da complexidade da prosa à densidade intelectual, que leva alguns a desmerecer ideias profundas apenas porque elas se apresentam em estilo despojado (meu exemplo predileto é o magnífico livro Perspectivas sociológicas, de Peter Berger, cuja sabedoria se esconde atrás da prosa despretensiosa); b) de outro lado, a denúncia raivosa de qualquer estilo que se afaste das formas habituais e exija mais do leitor como manifestação de charlatanismo ou afetação obscurantista de profundidade (infelizmente, certa crítica ao abuso do jargão degenera muito frequentemente para essa espécie de lexicofobia intelectualmente preguiçosa).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Creio que a obra mais séria e urgente que eu gostaria de ler seria uma que entrecruzasse, de um lado, lições psicológicas oriundas das interpretações do fascismo na primeira metade do século XX e, de outro, perfis dos tipos psíquicos que animam a dinâmica sociopolítica da nossa era digital; isto é, das bolhas informacionais, da proliferação de estilos paranoides de leitura do mundo, da “pós-verdade”, da exploração comercial dos ultrajes fabricados para visualização de páginas e viralização de conteúdos e assim por diante.
Passando a um âmbito infinitamente mais leve, para não dizer frívolo: como adoro assistir vídeos de criaturas fofas na internet, andei pensando que adoraria ler um livro sobre a fenomenologia da fofura. Existem, é óbvio, temas terrivelmente mais urgentes para se estudar no momento, mas admito que a questão me parece enigmática, sobretudo no seu aspecto de experiência vivida. Meu interesse se dirige menos a preocupações explicativas ao estilo da psicologia evolucionária (p.ex., “pais propensos a achar filhotes fofos tendem a cuidar melhor de seus filhos, portanto têm maior probabilidade de passarem seus genes adiante” etc.) e mais ao que torna uma criatura fofa aos olhos de quem a percebe. Por exemplo, supomos que a fofura se atrela frequentemente à beleza, mas nem tudo que é belo é fofo e, o que é ainda mais importante, nem tudo que é fofo é belo (a feiúra de certos cachorros não apenas não impede que seus espécimes sejam fofos, mas às vezes é, paradoxalmente, parte da sua fofura). Um senso de que a criatura fofa é inocente e vulnerável, acompanhado de uma disposição para o cuidado, parece ser um ingrediente da experiência. No entanto, ele se mistura de modo ambivalente a uma pitada de sadismo ao estilo das Felícias da vida, que têm vontade de apertar a criatura fofa até esmagá-la… Enfim, adoraria ler um livro com uma exploração desse tipo.
Por último, se pudesse acalentar um projeto para as próximas décadas, gostaria de escrever uma história intelectual da noção de “imaginação”. Sim, talvez o projeto não requeira algumas décadas, mas algumas encarnações. No entanto, sonhar não custa…