Fred Di Giacomo é escritor e jornalista multimídia, autor de Desamparo (Reformatório).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando comecei a ler os depoimentos deste projeto, a primeira coisa que me veio à cabeça foram as entrevistas da Paris Review, em que se discute muito o processo criativo e a rotina dos escritores. Ao mesmo tempo, me senti um clichê ambulante; a maior parte dos autores brasileiros enfrentam os mesmos carrascos: tentativas de derrotar os boletos mensais, cuidados com os filhos, as mudanças que o fim da adolescência (tardia ou não) provocam na rotina.
Enfim, repetindo a legião que me precede: eu costumava acordar mais tarde (empregados da mídia impressa têm horários tardios), ler as notícias no celular, tomar banho, café da manhã (hábito que adquiri depois da fase adulta e da ascensão social), pegar o transporte público e partir para o trabalho que, na maioria das vezes, consistia no jornalismo. Sou muito lento pela manhã. O nascimento do meu filho mudou essa rotina e hoje é ele quem define a hora em que acordamos lá em casa e qual o programa que seguiremos. Só escrevo de manhã se estou no meio de um romance ou tenho o prazo muito apertado de um trabalho a me estrangular.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Funciono melhor de madrugada. Pra quem morava em São Paulo o motivo é óbvio: a cidade não para, o barulho é intenso, os celulares são coleiras, as distâncias longas e as contas salgadas. Resta ao silêncio contentar-se com a aurora.
Poemas, canções e diários costumam vir com a inspiração. Romances, contos e reportagens me dão mais trabalho. Tendo a procrastinar muito para começar a escrever. Penso, pesquiso, leio, checo datas. Enrolo. Quando começo a coisa flui intensamente. A primeira versão dos textos costumo preferir escrever ouvindo música, de preferência instrumental pra não me perder na letra. A segunda vem no silêncio. Às vezes, leio trechos de um autor que considero mestre antes de escrever o primeiro parágrafo. Pode me ajudar a encontrar o tom.
E faço café. Café não traz inspiração, mas ajuda a manter o ritmo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Olha, essa pergunta depende do momento da vida. No mundo dos sonhos, eu escreveria todos os dias, com metas diárias para todos os livros em que estivesse trabalhando. Escrever é prática e dá trabalho. Não dá pra viver sonhando com a inspiração. A não ser que você seja o Rimbaud ou um desses gênios raros. Caso contrário, você precisa de disciplina, leitura e trabalho. Eu percebi logo que não era um gênio precoce, então minha esperança era insistir tanto que o esforço ia se transformar em talento. A maior dica para o pretendente a escritor é que ele leia. No Brasil existem mais escritores do que leitores, o que é inusitado. A segunda dica é “sente a bunda na cadeira e escreva”.
Acho que os raros escritores que vivem apenas de escrever trabalham com metas diárias. Pelo menos era isso que eles contavam nas entrevistas da Paris Review. No meu caso, a vida cotidiana tende a comer meu tempo, então, procuro desenvolver rotinas que paguem minhas contas me deixando com o máximo de tempo livre para trabalhar. Estou sempre escrevendo algo, mesmo que seja jornalismo. O cenário muda completamente quando estou trabalhando num livro. Veja o caso do Desamparo, por exemplo, que foi o último livro e é meu primeiro romance. Eu já estava pesquisando o fundo histórico da obra há bastante tempo, fazendo anotações e pensando nos personagens. Aí, pedi demissão do meu trabalho, como roteirista de televisão, e fiquei desempregado uns três meses. Nesse período, escrever virou minha profissão. Escrevia todos os dias, pelo menos 8 horas, enquanto meu filho estava na escola e ainda revisava de noite quando ele ia dormir.
Valeu a pena. Foram os três melhores meses da minha vida. Cheguei a escrever mais de 20 mil caracteres em um dia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente, anoto ideias que vão surgindo no celular, em caderninhos ou no computador. Vale tudo: frases, personagens, argumentos, comentários sobre outras obras – impressões. Aos poucos isso vai virando uma história. Em paralelo fui investigar a linguagem: fiz uma pesquisa sobre épicos e parei pra ler “Os Sertões”, “Os Cantos”, “A Comédia”, etc. Reli “Hamlet” e os clássicos do realismo mágico. Terminei “Um defeito de cor” e “Quarto de Despejo”. Aí veio a pesquisa. No caso de “Desamparo”, a pesquisa foi gigante: visitei museus, bibliotecas, voltei pra minha cidade natal, ouvi depoimentos de pioneiros, li dezenas de livros, entrevistei pessoas. Com essas notas em mãos, montei uma linha do tempo com os principais acontecimentos históricos da vida real. Depois, os preenchi com invenções e fantasias. Com esse mapa na minha frente, defini os capítulos iniciais. Quando comecei a escrever a primeira versão, a história foi aumentando e novos capítulos surgindo.
Foi nesse momento que Manoel Antero dos Santos – coronel, grileiro e rábula astuto – virou antagonista e passou o protagonismo do romance para Rita Telma, filha de pioneiros simples.
Depois de erguido o prédio, vem a edição e demole uns dois andares.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Rapaz, como eu disse aí em cima, eu enrolo demais pra começar a colocar as palavras no papel. Tento combater isso me obrigando a ficar na frente do computador pelo período de tempo possível, mesmo que não saia nada.
Sobre o medo de não corresponder às expectativas, a resposta é quase metafísica. Expectativas de quem? Dos leitores, dos críticos, do universo ou as suas? Acho que não adianta escrever para os críticos ou para agradar os outros, porque isso foge do seu controle. Não que uma boa crítica não seja excelente pro ego e pra divulgação do trabalho. Mas escrever pensando nisso simplesmente não funciona. Nem Paulo Coelho teria ganhado tanto dinheiro, nem Garcia Marquez teria ganhado tantos prêmios se tivessem escrito pensando nos críticos.
No entanto, acho que o escritor precisa ser ambicioso e nunca estar acomodado. Ele deve ter alvos altos e sonhar longe, mesmo que não compartilhe suas metas com ninguém para não parecer ridículo. Estude de maneira incansável, é preciso ser muito bom para fazer algo razoável. Às vezes você precisa mirar em Shakespeare pra conseguir ser um Fernando Sabino – o que já é um grande passo.
Como disse o poeta grego Konstantinos Kaváfis no poema “The First Step”
“Complaining to Theocritus one day the young poet Eumenes said: 'It's two years now since I began write and I've finished just one idyll so far, (…) Theocritus replied: (…) For having reached only that first step sets you far apart from the general mob. Just to set foot on first step you must already, in your own right, be a citizen of the republic of ideas. (...)”
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Olha, a Ana Maria Gonçalves uma vez me contou que o Millôr Fernandes tinha a aconselhado a reescrever o “Um defeito de cor”, do zero, algumas vezes quando o livro estivesse pronto. Acho que ela reescreveu 19 vezes, e é um livro gigante, um baita livro que faz parte da bibliografia do meu “Desamparo”. Eu reescrevi o Desamparo umas 3 vezes e depois o Marcelo Nocelli editou. Reescrevi mais uma vez em cima da edição dele que cortou ¼ do livro e ele revisou de novo e depois ainda teve a preparação. E foi tudo corrido, porque eu tinha um prazo pra entregar, devido ao edital que tinha ganho. Gostaria de ter reescrito de novo e revisado mais.
Acho que é importante reescrever o texto pelo menos uma ou duas vezes, a não ser que você seja tipo o Saramago que escrevia um parágrafo por dia, mas era tão cuidadoso que já tinha o parágrafo final ao terminar aquela sessão de trabalho. Bom, nem sempre se nasce Saramago, né?
Sobre mostrar pra outras pessoas: eu costumava ser que nem o Criolo, dava nó na orelha dos amigos de tanto mostrar meus escritos e canções pra eles, de falar nos projetos e ideias. Agora, sou mais reservado ou, talvez, a vida social tenha encolhido. Além do Marcelo Nocelli, bravo editor, pedi a opinião de três pessoas de confiança sobre meu romance. Acho fundamental uma leitura do outro sobre o trabalho do autor, mas só quando a obra já está adiantada e tem uma cara.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu desenvolvi uma jornada robusta como jornalista multimídia antes de me arriscar no romance. Então a tecnologia (games, infográficos, vídeos) serviu de plataforma para que eu contasse minhas primeiras histórias. Escrevo no computador, mas acho que tecnologia é “meio” mesmo, não é o que faz um mau ou bom escritor, pelo menos no caso da literatura tradicional.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Uma boa parte das minhas ideias vêm das ruas, das pessoas com quem converso, das histórias de família, da Penápolis onde nasci, da vila onde morei, dos antigos vizinhos. Gosto de ouvir as pessoas, sou curioso, pergunto detalhes, reparo nos sotaques, gírias e ritmos. Outra parte grande vem da ficção: leio muito – é o mínimo que se espera de alguém que escreve. Também me inspiro em filmes, séries, músicas, quadrinhos e games. O resto invento. A invenção é um prazer gigante.
Procuro estar sempre com um livro na mochila, ler um livro por semana e fazer anotações sobre as leituras: os trechos dos quais gosto, as técnicas que me chamaram a atenção, os personagens fortes, as reflexões do autor. Também anoto as ideias que vou tendo no celular e minhas observações da vida num diário irregular.
Enfim, ter contato com boa arte me estimula. Sentar a bunda na cadeira pra escrever, no entanto, é obrigatório.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha escrita ficou mais consciente e menos catártica. Parei de escrever ficção como terapia – de vomitar frustrações, desejos e sonhos no papel = e passei a focar em contar histórias da melhor forma possível. Isso também me afastou da autoficção e me levou para mais perto do fantástico, que me pareceu linguagem apropriada para as histórias que eu gostaria de narrar.
O que eu diria pra mim mesmo mais jovem? Pra ser paciente, em primeiro lugar, e não ter desespero em publicar algo. Em segundo, eu recomendaria que eu tivesse editado 25% dos meus contos do primeiro livro (“Canções para ninar adultos”, Editora Patuá) e que eu o revisasse melhor. Outra coisa seria ter mais consciência do “por que” eu estava escrevendo aqueles textos. Fora isso, o básico: deveria ter lido mais, escrito mais, vivido mais, revisado mais. E me dedicado aos clássicos precocemente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho alguns projetos de literatura que gostaria de fazer, mas acho que ainda não estão maduros o suficiente para serem divulgados. Fora da literatura pura, guardo um projeto de newsgame (jogo jornalístico) baseado em dados sobre desigualdade no Brasil, que não pude colocar em prática por falta de financiamento. Também penso bastante em transformar trechos da minha pesquisa pro “Desamparo” em histórias em quadrinhos. Seria massa criar uma HQ ambientada no sertão paulista com traços fantásticos.
Livro que eu gostaria de ler e ainda não existe? O Necronomicon.