Fraya Frehse é socióloga e antropóloga, professora da Universidade de São Paulo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depende do momento temporal, período letivo ou férias, os assim chamados dias úteis ou fins de semana. Se esse tipo de sazonalidade impregna de um modo geral tanto o momento da escrita quanto aquele em que se reflete sobre ela, vale acrescentar a esses dois marcos temporais o impacto que a pandemia de Covid-19 teve sobre o dia a dia de cada uma e um de nós, em escala planetária. À luz desses três fatores, só há, hoje (31.01.2022), como responder as duas perguntas localizando-as temporalmente em meu presente (ainda) pandêmico.
Durante a pandemia, os meus dias úteis– que é quando eu mais costumo escrever – se iniciam com yoga, pilates ou caminhadas pelas ruas do bairro, para não mencionar banho e café da manhã. Na sequência, a frente do computador se torna um lugar primordial de estar – a não ser que seja a isso impedida por algum dos (muitos) imprevistos que têm ritmado o dia a dia no Brasil, em tempos tão turbulentos.
Diante da máquina, o dia se abre com leitura e respostas à numerosa correspondência eletrônica cotidiana, inebriadas por delicioso chá preto e encantadores acordes de música instrumental (música cantada me desconcentra). Sinto que escrever e-mails acaba por me liberar sensorial e mentalmente para o posterior mergulho na escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A hora do dia em que a escrita melhor flui é o final da tarde: a experiência me ensinou que a maior fruição se dá por volta das 17 horas. Assim, em minhas fases de escrita sistemática – quando há prazos a cumprir –, rearranjo deliberadamente todos os meus compromissos diários para oferecer tal horário integralmente ao ofício da escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever todos os dias, embora infelizmente nem sempre a rotina do trabalho universitário o permita. Isso para não mencionar o dia a dia de qualquer moradora ou morador de uma cidade como São Paulo nos dias de hoje, ritmado por um cotidiano essencialmente não cotidiano do qual nem mesmo cientistas privilegiadas/os como nós – com vínculo empregatício estável a uma universidade pública, gratuita e laica de excelência como a USP – somos poupadas/os.
De todo modo, há, sim, períodos de escrita concentrada, justamente quando atendo a demandas externas de publicação ou decido fechar algum texto escrito por iniciativa própria.
De meu ex-professor José de Souza Martins incorporei uma meta que ele, por sua vez, aprendeu com o seu antigo professor Fernando Henrique Cardoso: escrever 3 páginas por dia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrever é interagir de modo único simultaneamente com o Outro leitor e consigo mesma/o. A unicidade reside na possibilidade de reflexão delongada. Como gostava de dizer o meu ex-professor Roberto Cardoso de Oliveira, “é escrevendo que a gente pensa”. Ou seja, a racionalização subjacente ao pensamento científico tem como ocorrer de forma privilegiada durante a escrita. Mas há mais, já que tal racionalização é mediação simbólica de um duplo e simultâneo vetor interacional: aquele de nós, autoras/es, com as/os leitoras/es e conosco próprias/os.
Concebendo a escrita nesses termos, o meu processo de escrita é busca constante de um tipo de comunicação científica (inegavelmente objetiva) com a/o leitora/o leitor que me permita, ao mesmo tempo, comunicar-me com a minha própria subjetividade – aquilo que nem sei que penso, e que acesso justamente enquanto e porque escrevo. Refiro-me a busca em função do desafio que o processo de escrita representa tanto para quem almeja ser cientista quanto para quem já se tornou uma/um. Incorporar aquilo que Pierre Bourdieu chama de “habitus científico” é também domesticar, na escrita, cada vez mais a subjetividade própria do senso comum, que permeia a vida cotidiana de cada uma/um de nós. O resultado: em termos argumentativos, a escrita baliza-se sobretudo na apresentação objetiva de evidências empíricas. Daí o impasse: como tornar-se cientificamente objetiva/o sem deixar de ser fiel à própria sensibilidade subjetiva?
Essa compreensão de fundo tem me ajudado a atravessar sem dramas o momento da folha (ou melhor, tela) em branco. Minhas folhas ou telas em branco são receptivas tanto a meus arroubos cientificamente mais objetivos quanto a minhas inspirações sensorialmente mais subjetivas. É que me debruço sobre a tela em branco na certeza de dois recursos técnicos: o primeiro temporalmente anterior e o outro posterior a essa mesma tela em branco.
Nunca me ponho a escrever sem ter, antes, esboçado, em folhas ou cadernos de rascunho, estruturas argumentativas iniciais no formato de organogramas esquemáticos. Assim, as palavras-chave que me interessa registrar no futuro texto encontram amparo visual inevitavelmente lúdico em flechas, linhas retas e curvas que conecto com ou insiro em balões circulares ou poligonais variados, rabiscados com cores diversas de lápis ou de canetas. Aprendi com meus professores alemães de escola que nenhuma redação prescinde de um esquema argumentativo prévio – sendo a geometria dos meus esquemas de minha inteira responsabilidade . De fato, esse tipo de recurso gráfico vai amplamente ao encontro de uma característica específica de minha memória: ela é essencialmente visual e, assim, particularmente sensível aos locais da folha em branco forjados visualmente através da espacialização de signos geométricos e coloridos.
Por outro lado, logo cedo aprendi a tranquilizar-me com a possibilidade técnica, oferecida pelos editores digitais de texto, de gravações potencialmente infinitas de arquivos. Daí que cada uma de minhas telas em branco vem inevitavelmente de mãos dadas com um segundo arquivo em branco intitulado “RESTOS” – complementado, por sua vez, pelo título do arquivo futuro, quando a tela se livrar de sua alvura. Pela própria natureza receptivo a toda e qualquer palavra esparsa ou fragmento textual, o arquivo “RESTOS” é repositório generoso de toda e qualquer ponta solta reflexiva do texto original passível de, mais adiante, encontrar ou não seu lugar ao sol – ou melhor, na tela do texto efetivamente em desenvolvimento ou em outro alternativo, futuro. A certeza de tal possibilidade – por definição futura – tranquiliza o agora da escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando a escrita não “vai”, aprendi a dar-lhe o tempo de que necessita – e que é, na verdade, o tempo que as ideias e a sensibilidade precisam para se rearticularem na mente e reencontrarem a sua expressão semântica na linguagem escrita. Quando disponho de pouco tempo para fechar um texto, tal intervalo se traduz em formas de distração concentrada, por assim dizer: atividades físicas como caminhadas por espaços públicos, yoga, natação; ou algum trabalho manual focado, tal como organizar listas bibliográficas ou cozinhar, lavar louça etc. Trata-se de atividades que, para mim, têm o efeito de destravar a escrita de modo relativamente ágil. Tais atividades se distinguem daquelas que denomino formas de distração dispersa, atividades mentalmente desconcentradas tais como escrever (em) outro texto, ler livros, assistir a filmes etc.
Esse segundo tipo de forma de distração é privilegiado quando a trava da escrita tem como contar com a condescendência de um prazo mais delongado de entrega do texto. De fato, não há nada melhor, quando sobra tempo, do que mudar plenamente de ares – de preferência, como se diz em alemão, “trocando o papel de parede”. Sair para ”ver gente” – ou, em tempos pandêmicos, ao menos o burburinho das ruas –, quando não encontrar amigos, ir a algum cinema, exposição, espetáculo de teatro ou música, e retomar a escrita no dia seguinte (ou quando a vontade “bater”).
Contra o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade, o crucial, para mim, tem sido lembrar que “gente nasceu pra brilhar, não pra morrer de fome” (Caetano Veloso). O que se aplica inclusive à fome de “dizer” algo que somente cada uma/um de nós pode dizer ao mundo porque esse algo mora no recôndito de cada uma/um de nós – e só pode ser acessado e apropriado por nós mesmas/os.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A minha experiência tem sido de que depois da quinta releitura autocrítica o texto está pronto para entrega. Adoro trocar ideias: como diz minha amiga Jenny Perez, “Fraya adora uma mesa-redonda”. Assim, quando outras pessoas têm disponibilidade, adoro mostrar-lhes e discutir os trabalhos, antes da publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Curiosa como sou, é um prazer para mim aprender novidades tecnológicas, se são úteis à minha atividade profissional. Tecnologia, para mim, é sobretudo meio e, portanto, caminho, método; não fim em si mesmo. Como elucidei na questão 5, meus rascunhos são espacialmente tridimensionais, por assim dizer: existem como esquemas argumentativos feitos à mão em papel, e no computador figuram como textos em desenvolvimento ou restos em fragmentos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias nascem de um encontro temporal-espacial sui generis. Refiro-me à confluência tão momentânea quanto transitória entre a minha “situação biográfica” (nos termos de Alfred Schütz), a minha sensibilidade etnográfica e a minha “imaginação sociológica” (conforme Charles Wright Mills) no interior do espaço peculiar que é o meu corpo – o qual, por sua vez, como conjunto de aptidões físicas e simbólicas forjadas em minha trajetória pessoal e profissional, “é e possui seu espaço”, como sugere Henri Lefebvre, em meio ao seu “idioma” interacional próprio, nos termos de Erving Goffman.
Cultivo um conjunto de hábitos que me acompanham desde a infância e que – sei desde que me profissionalizei como cientista social – me mantêm criativa, embora eles não sejam cultivados “para” isso. Tais hábitos se deixam sintetizar como amor pelo encontro com a diferença e pelo conhecimento da diferença, na vida cotidiana. Daí o meu fascínio, desde criança, pela rua, por frequentar lugares públicos urbanos – espaços privilegiados do contato com a diferença -, quer se trate de ruas ou praças, de feiras públicas ou museus, de cinemas ou teatros, de exposições de arte ou meios públicos de transporte tais como trens e ônibus. Quando não estou fisicamente nas ruas, nutro contato simbólico com a diferença que delas emana dia a dia através de leitura – além de crônicas, poesias e romances, biografias, livros de arte, de fotografia e arquitetura, e, no âmbito das ciências sociais, textos propriamente sociológicos, antropológicos, históricos, geográficos, para não mencionar jornais e revistas, que desde a infância me fascinam – e, mais recentemente, já em meio à difusão dos streamings, da audiência a programas de entrevistas (em vídeos e podcasts) e à perscrutação dos buscadores de músicas, álbuns e artistas musicais dos quatro cantos do planeta.
Cultivo a convicção profunda de que quanto mais se lê, melhor se escreve.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
À medida em que fui me conhecendo melhor – dentre outros, graças justamente à escrita -, foi aumentando a dimensão do prazer que o ofício de escrever me traz. O que, por sua vez, vem tornando a escrita cada vez mais leve e prazerosa. Dentre outros, tal autoconhecimento tem me permitido transitar com mais desenvoltura pelos padrões estilísticos das duas línguas que impregnam a minha escrita desde a mais tenra idade, tendo eu crescido como bilíngue, alfabetizada simultaneamente em alemão e em português.
Se pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, diria a mim para acreditar piamente nas possibilidades existenciais infinitas contidas na seguinte frase: “Não tenha medo de errar!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Projeto: um livro de crônicas sobre o meu ano e meio de etnografia das ruas e praças do centro de São Paulo nos anos de bonança econômica do início do século XXI (2007-2014), em contato cotidiano com os usos corporais que homens, mulheres e crianças que ali permanecem fisicamente os dias úteis com regularidade fizeram de tais lugares públicos então.
Eis o livro que gostaria de ler e que ainda não existe.