Francisco Leite é jurista e escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo, tomo um banho bem frio, nada como, um copo d’agua e vou ao trabalho, menos nos finais de semana em que me acordo mais tarde. Nos dias em que durmo mais cedo, acordo-me à madrugada, quando aproveito para ver os e-mails, fazer uma leitura dinâmica pelos portais de notícias, após o que, muitas vezes, começo a escrever a crônica semanal que publico toda sexta feira no portal MaisPB.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não, não tenho. Eu tenho uma inquietação, quase uma hiperatividade, por isso, sempre estou fazendo alguma coisa, às vezes mais de uma ao mesmo tempo. Isso já é costume. É bem natural e não preciso de nenhum ritual específico para a escrita. Tenho textos escritos nas mais diversas situações, localidades ou horários. Quando eu fumava – e graças aos deuses já deixei esse vício há nove anos – muitas vezes, enquanto não acendesse um cigarro, não conseguia por no papel a ideia que pensava. Era a chantagem da nicotina, a maldita. Livrei-me dela e desse vício, uma das melhores coisas que fiz em minha vida.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas não como meta, como ritual, como planejamento e sistematicidade. Escrevo todos os dias por uma necessidade do tempo, necessidade da necessidade, diria. Trabalho três expedientes, todos, pela natureza deles, exigem minha atenção à escrita, à linguagem. Sou professor, jurista, auditor e escritor. Por qualquer viés dos quadrantes dessas funções deparo-me com a precisão da escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Primeiro, trabalho com as ideias que a pesquisa evoca. Que essa ideia se derrame pela tela do notebook sem peias, sem limites. Essa ideia ou as ideias que pululam na minha mente formarão um esqueleto estético, uma configuração estilística, o quadro geral apto para recepcionar o conteúdo da pesquisa. Sei que é esquisito, mas como a configuração é dinâmica e maleável, fica bem mais fácil por tudo na modelagem. Se o objeto da pesquisa for daqueles que exigem uma modelagem muito específica, a gente inverte tudo e adapta uma coisa à outra. Maleabilidade, adaptação, variação são os segredos da minha escrita. Nos textos curtos, como as minhas crônicas, escrevo sobre tudo, todos os sábados no meu Instagram; o domingo é dia de poesia lá no Ig. Os textos longos, como as novelas, contos e os romances, até agora têm se caracterizado por uma mistura bem equilibrada de gêneros como humor, drama, realismo mágico, terror fantástico, etc.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esse é um problema. A ansiedade em projetos longos. A trava na escrita, não. Tenho uma tática infalível para me livrar desse problema tão comum aos escritores. Observo a tela em branco do computador. Ponho lá uma palavra, uma frase qualquer, não necessariamente associada à temática. Pronto, a partir daí o texto flui naturalmente. Se for o caso, depois suprimo o excedente e aproveito tudo o que dali foi derivado. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, isso incomoda sim, mas não me doem muito. Depois de certo tempo na estrada da vida, já sabemos que nunca agradaremos a todos. O importante é que a nossa escrita faça sentido para nós ou pelo menos para um leitor. Um só leitor que gostar da nossa escrita já é razão bastante e suficiente para continuarmos escrever com paixão e responsabilidade. Escrever é ato de entrega daquilo que ressignificamos em nossas experiências para outras experiências de vida. Se no meio do caminho tem uma pedra, desviamos o caminho, subimos nela, gritaremos ao vento a nossa existência, a nossa literatura. Alguém há de ouvir e gostar. Quem não, felicidade e paz.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu sou daqueles que vou escrevendo e revisando. Um, dois ou três parágrafos escritos, volto ao início, tiro uma palavra daqui, troco um parágrafo dali e por aí vai, embora todos digam que isso corta o fluxo, que não é recomendável. Para mim, não funciona assim. E tem mais, tantas vezes eu volte àquele texto, ele será revisto, reescrito, burilado. Também acho fundamental a revisão dos meus textos por outras pessoas, sobretudo pelos pares, outros escritores. Eles, que estão com os olhos em outras perspectivas, veem o que o autor não ver. Um leitor beta, uma leitura crítica, tudo isso é conveniente, afinal o leitor merece todo o nosso respeito e dedicação. Todos os meus textos longos, como coletâneas de contos, novelas ou romances são, sim, revistas por outras pessoas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou do tempo da máquina de escrever, de modo que minha relação com a tecnologia não é das melhores. No entanto, pelo menos em relação à edição de textos no Word, até que tudo tem saído a contento. Antes de possuir uma máquina de escrever, escrevi muito à mão, mas desde que essa velha (máquina de escrever) e a novel (computadores) tecnologias apareceram, que eu me adaptei. Hoje, escrevo diretamente no notebook. O grande problema é outro. Cada dia que passa a tecnologia avança, muda paradigmas, novo instrumental, aparelhos, aplicativos moderníssimos e a gente, sobretudo os da minha geração, devemos ter muito cuidado para mantermos o equilíbrio: cuidar para não ficar defasado, disfuncional e tampouco ansioso, enfim, se tudo está se desmaterializando, a gente deve continuar com nossa carne e osso. E a mente no lugar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Dos sonhos e da vida. Dos sonhos, quando deixo-me ser levado pelos labirintos da mente livre ao dormir. Ao deitar, libero a mente, deixo-a sem peias, que venham as ideias, que elas transitem transbordando os meus projetos de criatividade e fantasia. Da vida, as suas andanças, as suas praças, as suas dores, as relações entre as pessoas, as suas caras, os seus trejeitos e a sua luta. As ideias vêm da alma, das flores e dos espinhos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu sou um escritor que passou a vida escrevendo poesias, sem publicar uma sequer. Nem prosa. Meu primeiro livro é de 2013, um livro de Direito Tributário, de 912 páginas (Direito tributário: teoria e prática, Revista dos Tribunais) vertido, por natureza instrumental, em linguagem técnica, hoje na terceira edição. Mas a partir de 2017 comecei escrever pequenos trechos sobre minha infância no interior da Paraíba, a dificuldade para estudar, memórias ternas, outras muito dolorosas, mas contadas de forma bastante lúdica. Essas histórias fizeram enorme sucesso e culminaram no livro “Os longos olhos da espera” (Amazon). A partir daí, a coisa assumiu uma dimensão impressionante. No ano de 2020, em plena pandemia publicamos uma coletânea de contos (Crimes de agosto) e dois romances: “A vovó é louca” e “O pequeno Davi”, todos na Amazon e físicos também nas editoras Oito e meio e Hibis, respectivamente. Seguiram-se muitos contos publicados em antologias diversas de lá para cá. Então, para quem só escrevia poesias não publicadas, foi um avanço extraordinário, surpreendente, sobretudo por algo que não sabia possuir: uma veia humorística, uma mistura de gêneros em uma harmonia inteligente (drama, suspense, horror, realismo mágico e terror fantástico). Quando vejo as avaliações da crítica e dos meus eleitores lá na Amazon, vejo que comecei no tempo certo. E o que eu diria a mim se pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos? Honestamente, não sei. Desde os meus dezoito anos que rabisco uns escritos, que minha alma pulsa pela literatura, mas havia a vida para cuidar, necessidades materiais tão incrustadas na vida de um garoto filho de pais analfabetos, nascido numa cidadezinha do tamanho de nada no alto sertão da Paraíba…Então esse garoto aos doze anos escreveu em um caderno: Hei de vencer. Foi o seu primeiro escrito sério. Depois, bem depois, com as agruras do tempo, com as alegrias do caminhar, descobri que só quem vence é a morte. A nós, os seres que tem dentro de si a misteriosa seiva da vida, cabe-nos viver o processo, acalentar nossos sonhos ao caminhar, alongar por muitos anos o estirar dessa seiva nos escaninhos e processos do tempo. Não, eu não mudaria nada. O choro e os erros também têm a sua graça, nos fortalece e nos ensina.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou no meio de um projeto, o livro que eu gostaria de ler mas ainda não existe. Um romance cujo título é “O sibite baleado”. Ambientado em uma cidadezinha do interior da ´Paraíba. Duas narrativas em uma só obra amalgamadas em dois enredos que se cruzam, a história das vítimas da seca, humanos e passarinhos. Mas ninguém poderia escrever mais sobre a seca e suas estórias e tão bem quanto os que já nos antecederam, como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e tantos outros. Por isso que a gente mantem o tema mas colocou o menor dos passarinhos, o sibite baleado, tudo em nome do amor por outra sibite, para criar o seu levante, saquear o Distrito de Belém do arrojado e peitar o terrível Guirá, um pássaro terrível e sanguinolento, tudo isso no meio de uma das maiores secas do sertão nordestino, a grande seca de 1932. Veja o último parágrafo do prólogo do livro que está pertinho de ser concluído:
“Mas, sou uma ave condenada à eternidade, de cabeça fraca e de lembranças avariadas pelo tempo. Ao certo, não sei direito se sou um menino que conta a história de um passarinho ou um passarinho que conta a história de um menino. No mais, se não for isso, a minha narrativa entra no meio da história deles dois apenas como testemunho e passatempo.”