Filipe Souza Leão é escritor, roteirista e diretor, autor de “O dia em que o velho voltou a sonhar”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acredito que meu dia não começa muito diferente da maioria das pessoas. Acordar, higiene, café da manhã, colocar o lixo pra coleta. Após esta incrível e inspiradora rotina, ligo o computador pra começar a escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso muda bastante de acordo com o volume de trabalho não literário a fazer. Quando me dedico apenas à literatura, geralmente começo pela manhã, principalmente se é um projeto que demanda continuidade. Se são apenas rascunhos, esboços e inícios de textos, faço isso na hora em que sinto vontade, sem grandes rituais ou preparação. Comecei também a escrever a qualquer hora, o que antes era muito difícil pra mim, e acredito que isso acontece quando a história está aqui dentro há algum tempo e vai crescendo até que não aguenta mais ficar presa, limitada à minha cabeça. Então pode acontecer a qualquer hora isso dela precisar sair, tomar um ar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Estou fazendo aqui uma separação entre trabalho e literatura. Em meu trabalho como roteirista e diretor preciso cumprir prazos e, por isso, produzo segundo a necessidade. No trabalho, sempre preciso tirar um tempo, ainda que curto, pensar, avaliar caminhos, deixar as ideias se organizarem livremente, e então passar a escrever com as mãos ao computador. Na literatura, quando tenho tempo livre tento escrever todos os dias, em uma média de três horas por dia. Há dias que nada acontece e essas horas são totalmente improdutivas. Não forço, volto no dia seguinte.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As notas começam geralmente no celular, algumas em papéis aleatórios que ficam na mesa. As pesquisas surgem à medida em que se apresentam no texto. Inicialmente eu me concentro na história de acordo com aquilo que tenho de vivência e conhecimento, caminho por temas próximos a mim, memórias e histórias que me contam. Só vou pesquisar aquilo que foge muito do meu domínio, como drogas sintéticas e cores de batom.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tenho aprendido a abraçar meus medos e ansiedades através de terapia e meditação. É importante entender os limites e também que as travas e os medos são partes de nós e precisamos lidar com isso. A figura do escritor que produz com uma rotina ferrenha me parece muito distante, tenho grande dificuldade em cumprir qualquer rotina.
Estou tentando escrever meu primeiro projeto longo e parei, mudei e mexi algumas vezes porque não gostei da estrutura que vinha criando, as histórias não correspondiam às expectativas altíssimas que estava impondo ao meu trabalho. Sempre fui muito severo comigo. Não que não precise ser exigente, mas a coisa não funcionava de uma maneira saudável. Aos poucos isso vem mudando, escrever precisa ser prazeroso de alguma maneira ou então não faz sentido.
Pra narrativas longas tenho preparado uma espécie de escaleta pra definir o esqueleto da narrativa. Já tentei ser um escritor que começa sem saber onde aquilo vai dar e ficou sempre muito ruim. Talvez um dia consiga, pois sinto inveja de quem escreve assim. Acho libertador. Por agora, vivo e produzo segundo meus limites.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
São infinitas revisões. No meu livro, O dia em que o velho voltou a sonhar, senti vergonha ao enviar arquivos nomeados como “VF pra valer”, “VF pra valer 2”, “VF definitiva”. Mexi enquanto pude, pois a narrativa desse livro precisava de exatidão, nada sobrando. Sobre compartilhar, minha esposa é sempre a primeira leitora, e ela tem a liberdade de dizer que está péssimo (muitas vezes ela usa toda a liberdade disponível). Também compartilho sempre com meus amigos do Coletivo Discórdia, um coletivo de literatura formado por ex-alunos do CLIPE da Casa das Rosas. O pessoal é bem crítico e ajuda muito no processo. São meus lugares seguros pra compartilhar textos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Rabisco coisas à mão, notas no celular, mas a escrita é sempre no computador. Me sinto triste, pois nunca terei uma exposição com inúmeros rascunhos cheios de correção à caneta como os antigos escritores tiveram. Talvez se usar o Google Docs consiga ativar o controle de revisões e imprimir pra mostrar o quanto fui obsessivo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vêm das ruas, das músicas, dos sonhos, dos filmes, das histórias dos outros, de outros livros. Acho que permanecer atento aos estímulos e fazer caminhadas são essenciais pra meu processo criativo. Tentando me aprofundar mais nessa questão, anoto cenas, situações e frases que vejo e ouço na rua. Muitas vezes tento construir as situações que levaram até aquele momento ou que derivam dali. O que aconteceu antes ou depois? Quem são essas pessoas? Em outros momentos vejo um filme ou ouço uma música que me traz algo, uma sensação, um trecho que me chama atenção e parto dali. Mas a maioria das minhas ideias são cruzamentos que, em um primeiro momento, parecem impossíveis. Junto uma ideia com outra, penso como aquelas situações poderiam conversar e dali sai alguma coisa. A pandemia e a necessidade de ficar trancafiado em casa me tirou muito desses estímulos, porque eu gosto de estar no metrô com o fone desligado ouvindo a conversa dos outros, gosto de observar como as pessoas agem, gosto de ver pessoas comuns, essa é a base da minha literatura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aprendi que, se decidi escrever e se isso é essencial na minha vida, preciso me divertir. Também aprendi que não preciso pegar tão pesado comigo, não preciso escrever tudo querendo ser o novo Guimarães Rosa. O tempo é só o hoje e na vida a gente vai aprendendo, trabalhando, melhorando. Nem tudo que fizer tem que ser bom, é preciso lembrar que Machado de Assis escreveu Dom Casmurro, mas também escreveu Esaú e Jacó.
Porém o último e mais valioso aprendizado é que, o jeito, o método dos outros, não serve pra mim. Nem mesmo lendo todo esse site eu vou encontrar uma maneira de escrever que sirva pra mim. Isso se descobre com o tempo. No máximo, vale explorar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um romance, as ideias fervilham na minha cabeça e tenho buscado maneiras de viabilizar o tempo pra conseguir escrever, mas quero fazer isso logo, é urgente.
Eu sei os livros que não gostaria de ler e existem, eles são muitos. Posso citar alguns como os livros de ficção panfletários ou feitos pra agradar apenas aos críticos, livros em que se enxerga apenas o ego do escritor, livros com personagens pobres e nordestinos caricaturados, livros escritos apenas com a razão. Sem paixão não há literatura, no máximo uma bula de remédio.