Fernando Maroja Silveira é poeta, autor de “Cinzas” e “O escravo do vazio”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa distante da poesia. Acordo cedo e vou trabalhar. Quando volto para casa, preciso deitar um pouco e apagar da mente as coisas mundanas. Depois de uma xícara de café, estou pronto ou quase. Uma leitura pode ser tornar necessária, desligando-me da superfície das coisas. Quando sinto que já estou nesse mundo desvelado pela leitura, estou pronto para sentar e escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu poderia dizer que à tarde e à noite são os momentos em que melhor me sinto para escrever, mas, no fundo, acredito que não há uma hora melhor que outra. Pra mim, o mais importante é a sensação de relaxamento e distanciamento de todos os compromissos mundanos.
Acredito que essa sensação, que eu poderia chamar de solidão, é crucial, não somente para mim, mas para os escritores de um modo geral. A solidão, de que todos os outros fogem, é justamente aquilo que buscamos e o que somos.
Há um poema de Dylan Thomas, de que gosto muito, chamado “In my Craft or Sullen Art”, que traduz bem essa condição do poeta, contrapondo o seu trabalho solitário com os amantes da madrugada e do mundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias e sequer tenho esse objetivo. A rotina do escritor não pode ser apenas a escrita. Ainda que o poeta não tenha vida própria e se limite a viver apenas para os livros, enclausurado em seu distanciamento, ainda assim, o poeta não pode ser apenas escritura e não pode renunciar à leitura.
Não estou a dizer que a poesia depende, necessariamente, de erudição, até porque a ler não é sinônimo, sempre, de erudição. E segundo, porque a poesia é poesia, ainda que desprovida de erudição. Temos vários exemplos, na tradição literária brasileira, de poemas ricos de beleza e pobres de erudição.
De todo modo, penso que a escrita não pode ser a única espécie de contato entre o escritor e o livro. E, de todos os demais contatos possíveis entre o escritor e o livro, a leitura é o mais fundamental.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita pode ser difícil a qualquer momento, no início ou no fim. Ou do início ao fim. Às vezes, uma ideia me prende e me faz acreditar que um grande poema está a nascer, mas na hora de sentar na cadeira e escrever, as coisas não avançam e, por um longo tempo, não vou além de um ou dois versos ou de algo que, em sua pequenez, não representa a ideia original.
No entanto, também pode acontecer justamente o inverso. Quantas vezes a dificuldade está na própria ausência de ideias? Quantas vezes me sentei para escrever, por costume e dever de ofício, apesar da total falta de ideias?
E, no entanto, justamente quando tudo aparenta conspirar contra a poesia, quando a poesia não é sequer uma ideia martelando na cabeça, ela nasce e cresce a partir do nada, do total vazio.
Isso se deve à imanência da poesia, à sua possibilidade de brotar e nascer no/do vazio. Isso é algo que já me presentou com poemas que eu não esperava, que chegaram sem avisar, chutando a porta e demonstrando toda a riqueza do processo de escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Há muitas coisas que ainda preciso aprender enquanto escritor e uma delas é justamente saber lidar com as travas da poesia. Mas, falando francamente, é possível aprender isso? É possível, a um escritor, aprender a não escrever? Entre todos os escritores que conheço pessoalmente, não há um único que saiba encarar com paciência esses momentos, em que a escrita esbarra em todas as paredes do mundo.
Eu não sou diferente e talvez seja o caso de pensar que os escritores não sabem e jamais saberão enfrentar esses períodos com serenidade e equilíbrio, afinal de contas, as travas da escrita são a própria negação e o próprio contrário do ser-escritor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não há um número predeterminado e preestabelecido de revisões. Uma única revisão pode ser o bastante, todas as revisões podem ser infrutíferas, ou ainda é possível se pensar numa revisão infinita. De todo modo, não me recordo de ter escrito um único poema que não tenha sido objeto de correções.
Lembro, por outro lado, de vários aprimoramentos que eu devo à opinião de terceiros, principalmente dos amigos e poetas Marcílio Costa e Andreev Veiga, e de minha mãe, a quem eu devo o amor pela poesia.
Essas ponderações de terceiros, sejam eles teóricos, leitores ou outros poetas, é mais válida quanto maior for o seu conhecimento sobre a “obra” do poeta em questão. Quanto mais inteiro for esse conhecimento, maior será a abrangência da leitura e a chance de ponderar o poema dentro de um contexto, ao invés de observá-lo isoladamente.
Um poema, separado de outros poemas do mesmo autor, pode ter uma aparência mais hermética do que teria se fosse lido juntamente com o restante da obra, de modo que o melhor juízo provém da leitura inteira e não da leitura aos pedaços.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Acho que os primeiros rascunhos podem ser escritos em qualquer lugar: no caderno, no celular ou numa simples folha de papel. Mas o poema, depois de superar a fase preliminar, deve ser escrito no computador. De todas as opções que testei no decorrer dos anos, o computador é a que oferece a melhor visão para a leitura e para a revisão do poema.
Talvez seja mais apropriado dizer que o poema, ao invés de ter de ser escrito no computador, deve ser admirado e estudado no computador. Cheguei a essa conclusão depois de tantos poemas escritos à mão, que, passados para essa máquina, causaram-me uma impressão totalmente diferente e a sensação, que outrora era de dever cumprido, esfarelou-se no ar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que não estou dentro de uma tradição, da poesia brasileira, capaz de sublimar o dia a dia. Não escrevo sobre a mulher que aparece na janela ou sobre o calor de uma tarde qualquer.
Acredito que a minha escrita depende, acima de tudo, de leitura. A leitura é a fonte principal. A origem dos meus livros são outros livros – de história, de filosofia ou simplesmente romances ou poemas.
Indo mais além, posso afirmar que os livros não são apenas a fonte de minhas principais ideias. São a própria origem do ato de escrever e do ímpeto de se tornar um escritor, afinal de contas, somente quem leu um livro de Camus ou Rimbaud e o amou, acima de tudo, poderia dedicar a sua vida à escrita de outros livros, buscando igualar os seus ídolos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Penso que a minha poesia se tornou menos confessional e menos erótica e se aproximou de temas mais históricos e sobretudo metafísicos, principalmente depois da leitura dos russos e de Homero e Virgílio.
Se eu tivesse a chance de olhar para o espelho e encarar o garoto que eu fui e que decidiu tornar-se escritor, eu apenas lhe agradeceria por ter dado um sentido para a minha vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O poema de W. H. Auden, em homenagem ao W. B. Yeats, é um dos maiores do Século XX. Quando o li pela primeira vez, decidi que tenho de escrever um poema, tão grande quanto esse, para cada escritor que se tornou decisivo em minha vida: Dylan Thomas, Borges, Dostoievski, Tolstói e Albert Camus.
Gostaria de ler a continuação de Odisséia. Gostaria de ver a poesia a desafiar o mundo ateu, trazendo os deuses de volta para o mundo.