Fernanda Zeloschi é escritora e psicóloga.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Se eu dissesse que acordo sem celular, me pondo na janela para observar a vista após uma hora de meditação, infelizmente estaria mentindo. Não há caos que impeça este infeliz hábito: desperto nas redes sociais. Seguindo na linha dos vícios, só começo o dia depois do café. Mesmo que a pandemia tenha me despido de rotinas, costumo dar as piruetas necessárias com os compromissos para ter a manhã para fazer o que é meu. Se escrevo, me alongo, respondo e-mails e mensagens, lavo as pilhas de louça, rego as plantas: tudo graças às manhãs em silêncio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Me vejo com as palavras sempre pelas manhãs. Tardes e noites atravesso graças aos podcasts e músicas e segunda (terceira, quarta…) caneca de café. Ainda assim, as ideias costumam me visitar sem hora marcada e ao longo do dia (ou somem por semanas, por vezes, vai saber…), de forma que tenho sempre um caderno por perto. Quando me coloco a escrever, folheio as páginas anteriores em busca dessas frases soltas e cintilantes e então começo, ali mesmo, à mão. Somente na reescrita, passo para a tela.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quinzenalmente, escrevo algo que nasce. O que acontece nesse intervalo não controlo. Em geral, como estudo meu ciclo menstrual, percebo que em menstruação experimento uma seca de palavras. Nesses momentos, as ideias ainda me visitam, mas são tímidas e, muitas das vezes, cabem melhor no diário. Nunca pensei numa meta de escrita diária – não a tenho, já adianto. Talvez eu tenha apenas uma teimosia de estar sempre à procura de histórias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Odeio começar. Sequer consigo ser educada para falar dos inícios. O d e i o. Mesmo que eu já tenha começado na própria ideia solta do caderno, anotada na correria, quando me debruço na escrita, fico pendurada logo no começo. Na reescrita, faço igual: não sou prática para iniciar e sei que esta é uma singela colaboração da minha insegurança enquanto escritora. A primeira frase, se não for atraente e reluzente (na medida perfeita), não dá corpo ao texto para leitoras(es) apressadas(os) – e sendo uma delas, me compadeço quando estou diante do papel. Depois de começar (ouça aqui um suspiro aliviado, por favor), deslizo pelas linhas sem impedimentos. Finalizado, deixo o escrito dormir até a manhã seguinte, quando me sento para lapidar: reescrevo e então está pronto. Entre pesquisas e criações finais, deixo a vida se atravessar – nessa liberdade, alguma coisa se perde, mas muito se compõe.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sendo uma psicóloga recém-formada e, como já adiantei, vestida e armada de insegurança, não titubeio: psicoterapia. Mas para além dela, e muitas das vezes mais presente do que ela, converso com a minha criança de seis anos. Foi nessa idade que aprendi a ler e a escrever – nascia o mundo para mim. Repeti por anos um sonoro quero ser escritora e quanto mais crescia, mais baixinho eu falava, sussurrava, sussurrava, sussurrava… Quando comecei a mostrar para as professoras de português algumas das minhas criações, sempre em folhas de caderno arrancadas e deixadas na mesa delas ao final da aula, tinha uma coragem genuína. Conhecia poucas palavras (e “procrastinação” ainda não). Nos momentos apavorantes, diante dos sonhos, das expectativas, dos medos e da ansiedade, deixo essa menina falar comigo. Às vezes, minha única solução é fingir que ainda sou ela.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre: reviso o que escrevo pelo menos uma vez, frase por frase, grifando meus vícios de escrita, trocando uma coisa aqui e outra lá. Quando posso: duas, três vezes, no máximo, depois disso me vejo beirando enjoar da criação. Não costumo mostrar o que escrevo antes de publicado, gosto de exercitar uma autoconfiança (aquela da criança, sempre da criança…). Entretanto, às vezes peço para que uma amiga possa dar uma olhadela. Se é um conto, se abordo assuntos sérios, principalmente, para que não sejam só as minhas mãos dosando a escrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto de escrever primeiro à mão. Aprecio bastante as rasuras, os rabiscos, a letra se transformando conforme o ritmo do texto. Também teimo em escrever no papel para guardá-lo e encontrá-lo em alguns anos, certamente na esperança de um reencontro regado de cruzes, como eu era boba, gente. Sendo conectada além do que deveria à tecnologia, também não reclamo em digitar. Me empolga um pouco ter tantos recursos para dançar as palavras.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias florescem para mim das miudezas. Faço questão de anotá-las, de modo que meu caderninho está repleto de cenas soltas (“quando cheguei, senti o cheiro de salsinha picada na cozinha e soube” ou “os pés daquelas cadeiras não sabiam dançar” ou “uma lagartixa aluga minha varanda no verão” ou “tenho o mesmo nome de vovó, sabia?”). Muitas delas ficam soltas sem fim, nem tudo desenrola em escrita longa, pouca coisa é publicável. Na pandemia, quando diminuímos drasticamente as andanças, parei de ouvir as pessoas e criar para elas uma realidade paralela. Fiquei em silêncio um bom tempo. Daí comecei a escrever a partir de fotografias, palavras soltas, arquiteturas, pássaros. Quando me falta vida na escrita, ensaio outras vidas possíveis.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
É difícil dizer se algo não mudou… Sequer escrever permaneceu em constante, já que durante parte da adolescência deixei esta paixão em suspenso. Posso dizer que, nos últimos dois anos, passei a enxergar a escrita com mais seriedade, sem tanta purpurina. Esse contato com a realidade fez com que ler, perguntar, experimentar, pesquisar, estudar e transpirar se tornassem verbos comuns quando falo de escrita. Se leio meus primeiros textos, além da clássica (clássica, né? Ou nem todo mundo sente um pouquinho disso?) pontada de vergonha alheia, entendo que foram eles que abriram caminhos para mim. Não sei se diria algo à menina autora. Sinto que tudo o que ela sabe era suficiente para a época. Se bem que se ela tivesse o cuidado de dar uma rápida lida pós-escrita, só uma lidinha, seria legal.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro, é certo, mas sou tão habitada pela saudade da troca de cartas (mesmo que eletrônicas) que gostaria de desenvolver algo nesse sentido. Quanto aos livros, tenho certeza de que qualquer coisa que eu disser já estará feita. Existem muitos livros por aí…