Fernanda Rodrigues é poeta, autora de “A Intermitência das Coisas: sobre o que há entre o vazio e o caos” (Penalux, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Por ser professora, a minha rotina semanal acaba sendo imposta por esse trabalho. Acordo bem cedo, entre 5h30 e 6h, escovo os dentes e, em seguida, coloco comida para a Poesia e para a Camomila (minhas gatas). Depois, me arrumo, tomo um breve café da manhã e parto para o colégio já repassando mentalmente o que está no meu planejamento para saber o que será necessário para a primeira aula —qual é o tema do meu encontro com os educandos, se precisarei de algum material especial ou se há alguma tarefa de casa que precise ser corrigida. Eventualmente, quando uma ideia surge de manhã, faço uma nota para não a esquecer durante trajeto ou quando chego à escola, de modo que possa desenvolvê-la no momento que tiver mais tempo. Quando é dia de pós-graduação (em que sou estudante), também dou uma olhada na agenda para ver se não há nada pendente para a aula que assistirei à noite. Aos finais de semana, sempre que possível, gosto de me dar o prazer de acordar sem despertador tocando e de ficar um pouco na cama sem fazer nada. Como sou uma pessoa mais noturna que matinal, raramente escrevo pelas manhãs, ainda que sempre mantenha um caderninho comigo por onde for (incluindo a cabeceira da minha cama).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de escrever à tarde, à noite e, principalmente, durante as madrugadas. A madrugada é o meu período do dia preferido porque ela é silenciosa por excelência. Normalmente, o restante da família está dormindo, o que se reflete em televisão desligada e ninguém precisando da minha atenção. Além disso, durante as madrugadas, o telefone não toca e as notificações das redes sociais diminuem. Há, portanto, menos distração, mesmo que eu esteja ouvindo música. Aliás, o meu ritual de escrita sé dá mais quando estou em casa. Posso dizer que ele é muito irregular — quase um não-ritual —, muito dependente do meu humor no momento e, principalmente, de como foi a minha semana. Se tive um dia ou uma semana mais agitada no colégio, dou preferência à escrita no silêncio ou ao som de música clássica (adoro Bach!) ou de tango; já se estiver mais descansada e tranquila, gosto de ouvir as minhas músicas preferidas. De qualquer forma, também escrevo quando estou nas ruas. É fácil, por exemplo, as pessoas me encontrarem anotando uma ideia durante um trajeto no metrô ou criando enquanto estou em uma cafeteria. Sempre que um insight surge, ele é registrado seja no caderno que me acompanha, seja no celular.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Busco trabalhar a escrita com frequência, mesmo que este trabalho não seja necessariamente escrever. Os dias mais corridos (em que leciono tanto de manhã, quanto à tarde, e ainda vou para a pós) são os que escolho para realizar as minhas leituras, que acontecem quando estou me deslocando pela cidade. As noites em que não tenho aula na pós, tiro para escrever ou revisar algum trabalho mais curto – normalmente alguma postagem para o meu blog, por exemplo. Já sábados e domingos são reservados tanto para leitura quanto para escrever e revisar textos mais longos, como os projetos para publicação em livros. Outro tempo reservado à escrita propriamente dita é o dos encontros do Clube da Escrita para Mulheres, do qual faço parte. Sempre saio das reuniões com algum texto (finalizado ou em processo de desenvolvimento).
Sobre a meta, para mim não faz sentido ter número de palavras ou páginas escritas em um único texto, porque gosto de trabalhar com prosa curta e poesia. Sendo assim, estabeleço como meu objetivo parar de escrever quando o texto estiver minimamente satisfatório (em termos de trabalho com a ideia, porque sei que os outros aspectos serão trabalhados durante os momentos de leitura crítica, preparação e revisão textual).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
De modo geral, há dois tipos de escritores: os que planejam exatamente como será o seu trabalho literário antes de escrevê-lo e os que se deixam levar palavra por palavra, sem plano algum. Percebo que o meu trabalho está mais relacionado ao do segundo grupo. O que acontece com o meu processo criativo é que primeiro eu começo a escrever, depois eu tenho um momento de refletir sobre o processo, para então planejar qual será o caminho final. Foi assim, por exemplo, com o meu livro, A Intermitência das Coisas. Escrevi os primeiros poemas sem planejamento algum e enviei o arquivo para duas leitoras. Na conversa em que elas me disseram o acharam da leitura, percebi que o fio condutor da composição estava justamente nas intermitências da vida. A partir disso, passei a escrever mais focada em continuar o processo de contrastes que compõe o livro. Foi assim que cheguei à obra finalizada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acredito que fazer parte de uma rede de escritores é um grande apoio. No meu caso, eu participo do Clube da Escrita para Mulheres, modero o Projeto Escrita Criativa e mantenho contato com grupo de escritores que fizeram a pós-graduação em escrita literária comigo. Todas essas pessoas passam pelos mesmos dilemas, por isso a troca com elas me fortalece e, sobretudo, me inspira. Às vezes, quando não sei como continuar, uma única conversa com alguns desses escritores me traz um monte de ideias novas e dá uma oxigenada ao processo. Ler poesia também funciona bem, uma vez que a lógica da poesia é distinta da prosa. A forma com que os poetas concentram e conectam diversas ideias em um texto tão condensado aguça o meu olhar — tanto de prosadora, quanto de poeta — para novas formas de elaboração textual.
Percebo que manter uma rede de escritores e de leitores também vale para quando o assunto é a procrastinação. Ter pessoas que sabem do meu processo de escrita é bacana, porque elas me cobram sobre os novos projetos e não me deixam desistir no meio do caminho. Pela experiência de participar de encontros, percebo que tanto os cursos, quanto as oficinas e os clubes de escrita ajudam a procrastinar menos, porque a dinâmica me “força” a levar um texto/um trecho novo no próximo encontro. Ter um prazo de entrega e o compromisso de saber que outras pessoas lerão o meu texto, me obriga a focar no trabalho literário. Também gosto de refletir de onde vem essa vontade de procrastinar, para acabar com o problema. Entender se é só cansaço, se é medo, se é preguiça, por exemplo, é importante para lidar com a procrastinação e reagir.
Abordando a questão do medo, apesar de todo escritor querer agradar o maior número de leitores possível, sei que estou passível de não conseguir satisfazer a todos. Isso é normal. Durante o processo, gosto que outros amigos escritores leiam o que estou criando, pois eles têm um olhar apurado para dizer o que funciona ou não. Nesse momento em específico, não vejo a crítica como algo ruim — por mais dura que ela seja — e compreendo que a avaliação negativa é para o texto, não para mim enquanto pessoa. Quanto mais faço isso, mais diminuo o risco de os leitores não gostarem do resultado. Até agora, tem dado certo.
Falando da ansiedade de trabalhar em projetos longos, normalmente eu me coloco um prazo (de um ano, na maior parte das vezes) para trabalhar nos meus livros. Entretanto, respeito o meu tempo, porque sei que a minha rotina como docente me consome muito. Sendo assim, sou flexível com o meu planejamento, prezando mais pela qualidade do trabalho do que pela quantidade de produção.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Os textos que vão ao blog eu costumo revisar poucas vezes (cerca de duas). Já os que enviarei para concursos literários, para antologias ou que se tornarão livros próprios passam por um processo muito mais rigoroso. Gosto de escrever, revisar, engavetar, reler depois de um tempo, modificar o que for preciso e enviar para um grupo de escritores que confio para a realização de leitura crítica (durante e depois do processo de escrita). Os retornos que estas pessoas me dão são importantíssimos para o acabamento do trabalho, para tornar o texto claro, para a realização de cortes no que for preciso, para me certificar sobre a coerência do que é dito e para sentir a receptividade do público. Quando recebo esses retornos, retrabalho o texto antes de enviá-lo para um profissional capacitado para a preparação e revisão. Tenho comigo que um livro não se faz sozinho e acredito que ter todas essas pessoas ao meu lado só enriquece o meu fazer literário.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou uma pessoa que adora os dois. Tenho uma relação ótima com a tecnologia e muitos dos meus trabalhos nasceram de textos rascunhados no computador ou no celular. Entretanto, também amo papel — principalmente para ler — e tenho vários cadernos à mão. O que vai ditar em qual suporte usarei para escrever é a praticidade do momento em que surge a ideia. Quando estou mais tranquila, gosto de me sentar no meu quarto e pegar o caderninho; mas, se estiver em pé, no metrô lotado, vou escrever no celular. O primordial é não esquecer a ideia. Quando estou com vontade de fazer algo muito diferente, pego a máquina de escrever. De qualquer forma, depois acabo digitando os textos que pretendo publicar, para compilar no arquivo do projeto que está sendo desenvolvido no momento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tanto como prosadora, quanto como poeta, gosto de observar o que está ao meu redor. Vejo as coisas simples, do cotidiano, como matéria-prima do que escrevo. As relações entre as pessoas e das pessoas com os objetos e lugares são fontes inesgotáveis de matéria para a literatura. Também leio. Leio muito. A leitura é um hábito que auxilia não só como inspiração para novos assuntos, mas também como objeto de estudo de estruturas, de escolhas de vocabulário, de manejo com a linguagem em um modo geral. Além de estar em contato com os livros, gosto muito de visitar museus, ir ao teatro e a shows. Estar em contato com outras formas de manifestação artística contribui muito para o fazer literário. Por fim, mas não menos importante, gosto muito de viajar. Visitar outro lugar serve como um detoxpara a rotina puxada e este desanuviar desenvolve a minha criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos eu deixei de ser “uma pessoa que só gosta de escrever” para me denominar “escritora”. Esse processo de amadurecimento se deu de forma gradual conforme eu fui refletindo sobre a minha forma de fazer literatura. No começo, a escrita era um processo muito terapêutico, quase curativo, então me sentia muito presa à minha realidade e não me preocupava com o processo de revisão. Apenas escrevia e pronto, já partia para o próximo. Também não me preocupava em guardar o que criava. Se não estivesse ao meu agrado, simplesmente jogava fora. Com o passar do tempo, passei a me aventurar mais no campo ficcional e a guardar aquilo que à primeira vista não me parece bom. Como disse anteriormente, o primeiro rascunho passou a receber muitas revisões até se tornar a versão final. Sendo assim, se pudesse voltar a mim mesma diria: texto algum se joga fora; revise sempre, muitas e muitas vezes; crie uma rede de apoio formada por outros escritores (as redes sociais estão aí para isso!).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho alguns projetos em andamento e não vejo a hora de tê-los publicados. Penso que é importante termos mais diversidade tanto nos livros (com protagonistas fortes, pertencentes às minorias), quanto nas premiações e se tornando parte dos cânones (cujos autores não façam parte do padrão homem, branco, cis, hétero atual). Sendo assim, são adoraria ler livros com esse tipo de personagens — sejam eles escritos por mim ou por outros escritores.
Também gostaria de ver no mercado livros de poesia voltados ao público jovem-adulto (os chamados Young adults) que desmistificassem o imaginário coletivo de que “poesia é algo chato/difícil de entender”.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu sou o tipo de escritora que começa escrevendo e depois vê o que vai fazer com o texto. Não consigo planejar antes da escrita; mas, como escrevo poemas e prosa curta, isso não interfere tanto. Imagino que a construção do romance exija algo mais planejado: poesia, crônica e contos me dão mais liberdade nesse sentido. Por ter esse processo criativo de trabalho, encontrar a primeira frase é o mais difícil. É ela que dá o tom ao que quero dizer e como quero fazê-lo. Enquanto não encontro o início do texto, não consigo dar continuidade — e chegar ao final, por consequência. Depois que os textos estão escritos, vejo quais apresentam uma unidade entre si e monto o projeto.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu separo um tempo de leituras todos os dias. Isso alimenta a minha criatividade, o que reverbera na escrita. Leio vários livros ao mesmo tempo, por conta dos diversos projetos, estudos e preparação de aulas. Quanto a escrita propriamente dita, trabalho com várias frentes: textos para o livro que estou escrevendo, para o meu site (Algumas Observações), para a newsletter, para o site do Projeto Escrita Criativa (do qual sou moderadora e uma das fundadoras). Quando não estou escrevendo para essas frentes, faço anotações no meu diário. Vejo que preciso escrever todos os dias e tento planejar a minha semana — geralmente faço isso aos domingos — de acordo as demandas e com o melhor andamento de todas as frentes.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Fiquei refletindo aqui e acredito que há dois fatores que me motivam a continuar produzindo. O primeiro é interno: quero me entender enquanto sujeito e descobrir o meu lugar no mundo. O segundo é externo: quero trazer uma dose humanidade para este planeta doido em que vivemos. Se o meu texto conseguir trazer ao leitor uma reflexão, um sentimento de empatia que seja, já fico feliz. Sobre o momento, resolvi me dedicar seriamente à escrita quando abri o Algumas Observações, em 2006. Eu criei o blog porque escrevia alguns poemas e, ao mostrar à uma amiga de infância, ela me deu essa ideia de compartilhar os meus escritos na internet. De lá para cá, cursei Letras, fiz duas pós na área de escrita, crítica e ensino de Literatura, participei de antologias e publiquei o meu primeiro livro A Intermitência das Coisas: sobre o que há entre o vazio e o caos (Editora Penalux, 2019).
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acho que a principal dificuldade não foi em desenvolver um estilo em si, mas em acreditar que ele era bom. Ser mulher e negra em um mercado e — sobretudo — cânone literário dominados por homens brancos é algo muito desafiador. Sobre as influências, são muitas Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Paulo Leminski, Fabricio Corsaletti, Mia Couto, Liliane Prata.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Seu Retrato sem Você, da Tatiana Eskenazi (Editora Quelônio) — os poemas da Tati me emocionam profundamente porque ela colhe as miudezas do cotidiano para tratar com lirismo de um tema doloroso: a presença da pessoa ausente. “Ao acaso” e “Restos de fita K7” são os meus textos preferidos desse livro.
Perambule, do Fabricio Corsaletti (Editora 34) — Gosto de como o Corsaletti consegue transitar entre o humor e o lirismo nas crônicas e poemas que escreve. Os textos são curtos, mas me provocam a pensar em muitas coisas e, sobretudo, me deixam mais alerta para o que está ao meu redor.
Toda Poesia, do Paulo Leminski (Companhia das Letras) — Esse é o meu livro de cabeceira há algum tempo. Amo o poder de síntese e de inventividade que o Leminski tem ao longo de toda a sua obra. É muito inspirador!
Escolhi esses três, porque há algo neles que me move a querer escrever também.