Fernanda Rodrigues é professora de escrita literária, revisora e preparadora de textos, autora de “A Intermitência das Coisas: sobre o que há entre o vazio e o caos” (Penalux, 2019).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Começando pela segunda pergunta: sim, eu amo ter vários projetos ao mesmo tempo. Primeiro porque me permite exercitar a minha criatividade, segundo porque isso tem relação com as minhas atividades profissionais. Falando da minha escrita propriamente dita, tenho três frentes de produção: livro, site, newsletter. A escrita e produção do livro costumam ser mais lentas que as demais, porque elaborar uma obra, fazer a revisão e a publicação demandam atenção grande e um mergulho dentro de mim muito mais intenso — além de envolver outras pessoas (revisora, editores, capista, diagramador etc.). Costumo passar pelo menos dois anos entre o nascimento da primeira ideia e o lançamento de um livro. Se precisar de mais tempo, não me cobro também. Acho que é importante fazer tudo com calma, para evitar frustrações futuras.
Já a escrita e produção de conteúdo para o meu site, o Algumas Observações, costumam ter uma rotina adaptada. Tento ter pelo menos um post por semana, mas às vezes consigo fazer mais publicações. Os conteúdos por lá variam entre poemas e breves narrativas de ficção a textos de não ficção (como resenhas e relatos de viagem). Por fim, a newsletter é enviada uma vez por mês. Ela tem o mesmo nome do blog e é estruturada da seguinte forma: um texto literário (normalmente uma breve narrativa ou um poema), uma pequena conversa, a agenda de eventos literários/cursos que participarei no mês seguinte e um resumo do que aconteceu no blog desde o envio da última news.
Ainda pensando na rotina, costumo encaixar esses momentos de escrita em blocos na minha semana que se intercalam com a produção de conteúdo para o Projeto Escrita Criativa (de que sou uma das cofundadoras), os trabalhos textuais que realizo (leitura crítica, preparação e revisão de textos de outros escritores) e preparação das aulas do Grupo de Escrita e Crítica Literária e da Mentoria de Escrita e Mercado Editorial que tenho para autores que querem se aprofundar mais nesses processos de criação e publicação.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Acredito que meu processo seja entre o não planejado e o híbrido (parte sem planejamento, parte planejado). Eu tenho um arquivo na nuvem chamado “rascunhos” e vários cadernos. Além disso, no momento, continuo estudando os processos de criação numa oficina de escrita literária com a professora Carolina Zuppo Abed. Então, vou escrevendo livremente até ter um número de textos que considere que possa virar um livro. A partir daí vejo o que há em comum entre eles, faço uma seleção do que pode ficar juntou ou não e começo a pensar numa continuidade temática que converse com o que já tenho escrito. É normalmente nessa etapa que solicito a minha primeira leitura crítica, porque assim eu tenho mais certeza se o projeto está caminhando na direção que desejo. Depois do retorno da leitura crítica, volto a escrever, agora já mais direcionada por esse caminho que tenho mais ou menos desenhado na minha cabeça, mas não chego a fazer um plano por escrito. Quando me sinto satisfeita com a continuação do conjunto de textos, chega a hora de solicitar mais uma leitura crítica. A partir desses feedbacks, reescrevo, corto, acrescento, edito e fecho o arquivo do manuscrito final e o envio para a minha preparadora e revisora. Normalmente, na fase de preparação do original, ela sempre tem ótimas contribuições. Faço os ajustes que devem ser feitos para só então dizer que o livro ficou pronto. Ao contrário do que muita gente diz, não acredito que a feitura de uma obra é solitária, que tudo cabe apenas aos escritores ou que é só um processo intelectual. A decisão de começar ou de terminar um livro, para mim, passa pelo meu corpo, pelas minhas vivências e pela troca com o coletivo — no sentido de ter leitoras críticas, uma preparadora/revisora de textos e editores que confio. A contribuição deles são sempre bem-vindas.
Já no caso das outras produções, às vezes vejo uma certa dificuldade em começar. Não pela escrita em si, mas pelo cansaço da rotina cheia de tarefas. Eu gosto muito de escrever durante à noite, mas às vezes isso se complica depois de um dia longo de trabalho, por exemplo.
De qualquer modo, nos dois casos (tanto da escrita do livro, quanto dos outros textos), eu penso que não dá para contar com os conceitos de “dom” ou de “inspiração”. Vejo a escrita como profissão, por isso, sempre me esforço para escrever mesmo quando as ideias fogem. Escrevo mesmo que seja um texto que não será publicado, mesmo que eu tenha que começar com um “não sei bem o que escrever hoje”, porque assim mantenho a mente alerta para as possibilidades.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Começando pela segunda pergunta: tudo vai depender do meu humor no dia. Escrevo em aula e fora dela, escrevo no transporte público, na biblioteca, em cafeteria, no parque, na sala de espera de uma consulta médica, com música, com a TV ligada ou no silêncio… O que busco observar é como eu me sinto na hora da escrita — isso é o que vai determinar se vou ou não mudar de ambiente e se preciso ou não de som ao fundo. Se estou muito agitada, o silêncio me ajuda a focar. Se estou tranquila demais, sei que posso sentir tédio ou sono ao longo do processo, então coloco música. Acredito que autoconhecimento é a chave do negócio. Às vezes, se passo muito tempo em um lugar, mudar de ambiente me ajuda mais do que o som em si (sair de um lugar fechado e ir para outro em que possa ver o céu, por exemplo). Já sobre a rotina, não diria que tenho uma rotina diária exata para todas as escritas dos meus livros (muito por conta do que respondi sobre a organização do meu trabalho na primeira pergunta), mas tenho uma rotina macro que, de modo flexível, se repete. Costumo dizer que quando eu estou escrevendo um livro sigo alguns ciclos. Como disse na resposta anterior, a primeira etapa é a da escrita livre. Depois passo à reunião de um número X de textos que parecem ter um fio condutor entre si e envio essa coletânea para a leitura crítica. A partir do que recebo de retorno das leituras críticas, o ciclo começa: fico alguns dias sem escrever o projeto do livro (embora escreva outros textos), pensando no tema central da obra e como me relaciono com ela. Passado esse tempo de ruminação, volto a escrever até me esvaziar. Então, sigo mais um tempo maturando tudo o que já foi escrito, até retornar à escrita. Fico nesse vai-e-vem até perceber que já esgotei, que o livro está pronto. Assim passo à etapa seguinte: releio o livro todo, corto ou acrescento o que deve ser mudado e deixo um tempo descansando (no mínimo um mês). Feito isso, imprimo o livro todo, porque ver o texto no papel é diferente de lê-lo na tela — sempre percebo que quero fazer mudanças significativas no papel que não notei lendo apenas no computador — e mudo mais uma vez o que é preciso. Às vezes deixo descansando mais um pouco e repito esse processo de impressão, antes de enviar a uma nova leitura crítica. Às vezes, envio sem uma segunda impressão. Quando recebo novamente o retorno, faço alterações e deixo descansando, para reimprimir e mudar novamente o que é preciso. Só depois de tudo isso é que busco a preparação e a revisão de textos. Mesmo eu sendo revisora, é importante ter uma profissional de fora — depois de tantas idas e vindas, o meu olhar já está viciado e erros acabam passando. Só quando nós duas decidimos que o livro está pronto, envio para a editora.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Penso muito que importante refletir sobre as travas e a procrastinação e que, de novo, autoconhecimento é a chave que ajuda a (re)abrir as portas da criatividade. Acho que a melhor forma de sair dessa inatividade incômoda é entender o motivo real. Algumas pessoas se esquecem que essa trava pode ser apenas cansaço, por exemplo. Ou falta de conhecimento mais profundo sobre o tema que se quer escrever. Pode haver também falta de conhecimento das técnicas de escrita propriamente ditas. Ou às vezes há um desejo de escrever sobre algo que toca muito, que mexe com as feridas que o próprio escritor carrega dentro de si — e que enfrentar essas feridas é um processo doloroso. Quando me vejo evitando a escrita, sempre me pergunto “por quê?” e tento encontrar a causa real. Se encontro, tento solucioná-la. Se não consigo, passo para o que disse na resposta anterior: escrevo mesmo sem saber o que escrever e sabendo que não vou necessariamente publicar: “Queria escrever sobre tal assunto e estou sem ideia, acho que tudo o que estou fazendo ultimamente tem sido bem ruim e blá blá blá”. Dessa escrita livre sempre nasce algo interessante — às vezes, não na hora, mas quando volto e releio vejo que tem uma ideia ali, uma sentença ou uma reflexão que podem ser usadas em outro texto.
Manter contato com outros escritores e trocar sobre ter travas e como isso tem sido também ajuda muito. No meu caso, além das aulas de escrita (como aluna e como professora), também faço parte do Clube da Escrita para Mulheres e sou cofundadora do Projeto Escrita Criativa. Falar com outras pessoas e compreender como elas lidam com as travas e com a procrastinação pode nos incentivar nos livrar delas.
Além disso, ter feito uma pós-graduação em crítica e escrita literária, continuar fazendo aulas de escrita e lecionar escrita literária me dão ferramentas úteis (a exemplo de como escrever a partir de outro texto, de um objeto, de uma cena, de um personagem com característica X, de uma técnica ou questionamentos como “todo mundo já falou sobre tal tema, de que forma eu posso fazer isso diferente?”). Por fim, fazer a engenharia reversa e ler como escritora — ou seja, tentar descobrir como o autor que estou lendo construiu o texto dele — também é um recurso que ensina muito e que pode ser um disparador de novas ideias. Muitas vezes é fazendo a “autópsia” de um texto do outro que a gente descobre algum mecanismo que pode ser usado no nosso processo de escrita. Nessa seara de aprender e destravar com outros textos, acrescentaria ainda ler cartas de escritores para escritores, que sempre trazem dicas valiosas. Muitas pessoas consideram a feitura do livro a partir do momento do ato da escrita, mas vejo que é importante compreender que a pesquisa e a leitura são partes da construção do livro (muitos confundem o “não estou escrevendo porque estou lendo” com procrastinação só porque não está escrevendo de fato, mas isso também faz parte do processo de criação).
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Meu livro novo — que está em processo de revisão — deu trabalho para ser escrito, porque tocou em temas que são emocionalmente exaustivos para mim. Eu terminava cada ciclo de trabalho nele tão cansada mentalmente a ponto de querer apenas banho e cama. Por outro lado, estou muito orgulhosa do que estou prestes a entregar ao mundo. É muito bacana ter passado por um processo tão intenso e tão transformador. Espero que quem o leia também se sinta tocado e transformado de algum modo.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Eu escolho os temas a partir do que me move (seja no polo do que amo ou do que me incomoda muito). Não conseguiria escrever um texto sem apresentar ao menos uma pitada do que pulsa em mim. A temática do vazio e do caos, que aparece no subtítulo do meu primeiro livro — A Intermitência das Coisas: sobre o que há entre o vazio e o caos — é algo que me acompanha de um modo geral (querendo eu ou não!). Sobre imaginar um leitor ideal, não faço isso. Na minha cabeça escrita e edição são etapas distintas e, para mim isso funciona bem, porque evita que eu fique me podando enquanto escrevo. Às vezes, quando bate a dúvida, penso: “se esse texto fosse de outro autor, eu leria?” ou “ele está de acordo com o meu projeto de carreira literária?”. Se a(s) resposta(s) for(em) “sim”, eu me dou por satisfeita. Se for “não”, continuo trabalhando. De qualquer forma, não costumo focar muito nisso no momento da escrita, justamente porque eu sei que nas etapas seguintes o livro passará por várias leituras críticas e pela preparação de textos e que terei várias chances de fazer os ajustes a partir do retorno dessas outras pessoas que leram o livro.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Nas aulas de escrita, mostro durante as oficinas para a minha professora e colegas de turma. No site e na newsletter, quase sempre escrevo e posto sem mostrar para outras pessoas antes. Já na produção do livro, normalmente as pessoas que leem antes são as escritoras que cofundaram o Projeto Escrita Criativa comigo, Ane Venâncio e Ayumi Teruya (elas são as primeiras a lerem). Depois de todo processo de escrever e editar, costumo enviar meu livro para a amiga e poeta Tatiana Eskenazi. Ela recebe o livro quando ele está quase pronto. Com frequência mostro alguns trechos para outros amigos, todos escritores, para sentir como seria a receptividade de outros olhares. No caso do livro mais recente, a poeta Elizza Barreto também leu o livro antes. Por fim, a preparação e a revisão ficam por conta da Aline Caixeta, que sempre faz ótimas contribuições. Todas essas pessoas sempre trazem não só o olhar de leitor, mas também técnico, o que contribui muito para o processo de escrita não só do manuscrito que estou trabalhando no momento, mas também para a minha produção como um todo. Sou muito grata a essas pessoas.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu decidi me dedicar à escrita no fim da adolescência, quando abri o meu site em 2006. De lá para cá, eu acabei mergulhando no mundo da Literatura como matéria de estudo (entrei e me formei na graduação em Letras, depois cursei duas pós-graduações: Formação de Escritores e Especialistas em Produção de Textos Literários e Docência em Literatura e Humanidades). Algo que eu gostaria de ter ouvido é que há espaço para todo tipo de tema/escrita, desde que o escritor se proponha a não fazer de qualquer jeito. Nenhum livro nasce da cabeça do autor e já é publicado na sequência. Há muito trabalho nesse intervalo entre primeira escrita e objeto pronto. Também gostaria de ter ouvido para não ter medo de mostrar a minha literatura: se um homem não teme de ir lá e publicar, por que eu, por ser mulher, tenho que temer?
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acho que o estilo é algo que amadurece e muda (e amadurece mais ainda) ao longo do tempo. É algo que está em constante desenvolvimento e que será sempre assim, porque é um processo de construção eterna (escritores estão em constante mudança como pessoas e isso acaba refletindo no estilo). Entretanto, algo que eu demorei um pouco para compreender é o que eu queria e quero com a minha literatura a longo prazo (independentemente se escrevo prosa ou poesia, na internet ou em livro, ou do tema abordado). Penso que compreender o objetivo da própria carreira literária é um passo importante para tomar decisões em vários aspectos (da escrita em si a fechamento de contratos). Essa foi uma busca intensa, que me levou a conversas importantes com outros escritores e a ter um olhar mais cirúrgico com a minha própria obra.
Sobre influências, a Clarice Lispector e o Carlos Drummond de Andrade são dois nomes que sempre povoam as minhas listas de leitura, meus estudos como crítica literária e que aquecem o meu coração quando preciso de um alento. Algumas pessoas já me disseram que o que escrevo lembra eles dois. O que é sempre uma honra para mim. Dos contemporâneos, a lista de escritores preferidos é longa, porque tenho a sorte de ter muitos amigos que escrevem maravilhosamente. Seu retrato sem você, da Tatiana Eskenazi, e Ossos Açucarados, do Rafael Farina, são dois livros que me tocam profundamente. De qualquer modo, eu evito ficar pensando muito em outras escritas no momento da minha — a não ser, claro, se estiver em aula e haja algum exercício relacionado. Como eu escrevo muito partindo das minhas vivências e do que sinto, eventualmente, minhas leituras podem aparecer indiretamente nos meus textos, mas isso acontece mais inconsciente do que de propósito.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Muitas pessoas que sabem que eu amo a literatura da Clarice Lispector vêm me confessar que têm medo de ler Clarice e não entender. Acho que um bom modo de começar a entrar nesse universo dela é lendo as crônicas. São textos curtos, divertidos e que quebram aquela imagem da mulher enigmática que foi construída ao longo do último século. Sendo assim, minha recomendação é o Todas as Crônicas, escrito por ela e editado pela Rocco. Para quem gosta de escrever, o Devoção, da Patti Smith, é bem interessante. Eu tenho gostado bastante também do A lição do amigo, um livro compilado pelo Drummond, com todas as cartas que o Mário de Andrade lhe escreveu. Penso que essa obra é útil a todos que se propõe tanto a ser um bom amigo, quanto um bom escritor. Os dois últimos são editados pela Companhia das Letras.