Fernanda Nali é professora de língua e literatura brasileira, doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, autora de “Território inominado” (2018).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante anos lecionei em escola regular (esse ano estou fora da sala de aula pela primeira vez em anos), o que tomava a maioria das minhas manhãs. Logo, a rotina das primeiras horas do dia sempre foi, em geral, a sala de aula, precedido por bons goles de água, aquecimento vocal (tive lesões nas cordas vocais), algum alongamento no corpo, e café forte sem açúcar (tudo feito quase que concomitante).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A escrita e a leitura sempre fizeram parte da minha rotina de trabalho (como revisora, como professora de língua e literatura, como quem escreve projetos para editais, como pesquisadora e até como ghost writer), e nesse sentido experimentei pouco escolher os horários de trabalho: qualquer hora sobretudo diante de prazos curtos, em lugares os mais diversos (estou sempre com o notebook e cadernos), e melhor quanto mais envolvida eu estiver. A escrita ficcional surge muitas vezesnesse exercício laboral de escrita cotidiana. É nele que uma linha, um verso, um parágrafo mais longo, uma observação sobre um episódio particular, uma nota de conjuntura política aparece como uma interrupção de planejamento, margeando um projeto ou fichamento, em geral sem espaço para ritual de preparação. Quando a autoindulgência me permite largar o trabalho “oficial” para desenvolver uma ideia ficcional, o ideal é que ela me encontre sozinha, em espaço arejado que receba luz natural, que haja silêncio, chá e água com gás: serão as melhores horas do meu dia. Mas isso é raro, não consigo chamar de ritual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como o texto está na minha profissão em diversas frentes, não há como não escrever muito, todos os dias, um texto que nesse caso representa sobrevivência financeira; ficcionalmente tendo a escrever menos, mas sempre: uma linha, uma observação ou mesmo um parágrafo mais longo, que muitas vezes se desprendem desses outros textos com os quais preciso lidar por demanda. A escrita ficcional, como texto em geral não remunerado, tende a ficar em último plano e se torna prioridade, para mim, quando há uma necessidade mais íntima ou demanda externa, ainda que eu mantenha uma regularidade e sem metas de escrita definidas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sinto que o movimento é contrário: escrevo e sinto o texto (curto) primeiro: a pesquisa é uma consequência de depois e é determinada pelo próprio texto. No percurso, escrita, leitura (preciso sempre estar lendo), pesquisa e notas se misturam o tempo todo. Tenho dificuldade particularmente com notas porque sou facilmente enredada por elas, vou puxando fios e mais fios, então procuro levá-las (ou descartá-las) o quanto antes para a “página” e aparar as arestas ali mesmo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A tentativa é me manter perto do texto, da palavra, não necessariamente de textos meus – vale não escrever quando não dá pé – mas também de outros, e então sempre surgem estalos, conexões, palavras. A leitura em geral me reorganiza no tempo e no espaço e me movimenta outra vez para a escrita. Mas também sinto que o contato com o texto, quando agudo, se mostra improdutivo, ele mesmo provoca ansiedade. Procuro me dedicar a outras atividades e linguagens que não sejam o texto: tenho estudado violão mais sistematicamente, estudei um pouco de canto nos últimos três anos, esse ano voltei a nadar, durante muitos anos corria, quando me dedico com regularidade a essas atividades outras é quando também lido de maneira mais prática e criativa com a escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Ao supostamente revisar meus próprios textos, tendo a reescrevê-los indefinidamente; altero pontuações, incluo trechos, volto à pesquisa, volto ao dicionário, o que me fez concluir que sou uma péssima revisora do que escrevo. Nunca tive a experiência de sentir que estava definitivamente pronto, e nisso a resposta de quem lê antes da publicação é um bálsamo! Mostro para pessoas nas quais confio muito – uma grande amiga que também é profissional da área de letras, professora, pesquisadora e tradutora, muito próxima, leitora rara, e meu pai, que é um leitor exigente e espirituoso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo com o que tenho, em geral no computador. Frequentemente faço rascunhos e registros à mão no caderno, mas quando sinto que ali vai dar pano pra manga, não prolongo: tendo a puxar muitos fios, rasurar, alterar a ordem. Procuro logo um jeito de registrar no computador, que me ajuda muito visualmente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Elas aparecem no próprio movimento de leitura e escuta e a relação com o mundo à minha volta: o texto é sempre uma resposta. Acho que a criação vem do olhar atento, o contato com o outro (outros sujeitos, outros espaços, outros textos) que nos evoca a percepção do detalhe, das construções sociais, geográficas, das contradições, das histórias. Também me agrada a ideia da escrita por encomenda, algo que precisa ser feito, há uma demanda – a ideia está lá – e há uma série de possibilidades para explorá-la. Procuro sempre sair do espaço-cidade de rotina, ir a outros espaços; estudar outros assuntos, linguagens e línguas com alguma seriedade, preciso sempre estar estudando algo, testando novas ferramentas e habilidades, isso é potencialmente criativo! Tenho tentado também cultivar o hábito de ouvir e de memorizar (embora eu seja muito faladeira!), porque a dicção, o conteúdo, tudo pode ser muito sedutor e criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Engatinho na escrita ficcional, minha única publicação é resultado de uma primeira tentativa de ser lida. Mas sinto que hoje tenho mais rigor e autocrítica, sobretudo quando tendo à grandiloquência e à prolixidade, descarto com mais facilidade. Se eu pudesse dizer algo a mim mesma se pudesse voltar à escrita dos primeiros textos, inclusive o que foi publicado, me aconselharia a ser mais prática, sem preciosismos, e ler e escrever ficção com mais regularidade. No entanto, acho que os primeiros textos cumprem uma função que parece ser indissociável do fato de serem primeiros: tatear uma linguagem possível, descobrir sua própria voz, se ler e ser lido, não tem como escapar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Existem tantos livros não lidos que espero ler (e que existem), e provavelmente tantos outros que ignoro a existência, que não consigo responder a segunda pergunta. Quanto a projetos, são tantos! Gostaria de investir mais em escrever canções, já fiz algumas tentativas e tenho um projeto mal iniciado de poemas-canções inspirados em narrativas ficcionais. Gosto também de trabalhar com o ritmo e formas musicais, gostaria de investir mais sistematicamente nisso. Também penso em dramaturgia com texto e canções originais, imagino e já escuto sons de tambores simultâneos a movimentos e cenários.
* Entrevista publicada originalmente em 17 de março de 2019, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).