Fernanda Hamann é escritora, psicanalista e pesquisadora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou psicanalista, escritora, redatora, professora, pesquisadora, mãe de duas crianças pequenas, então o tédio e o ócio são experiências que não vivo há alguns anos. De modo geral, a babá eletrônica é meu despertador, aí começa a rotina de fraldas e mamadeiras para o caçula, o café da manhã do mais velho, o meu, uma olhada no noticiário, até sair para o consultório, onde posso exercer a liberdade de trabalhar. Concentro a maioria dos pacientes pela manhã, me sinto mais atenta e produtiva. À tarde, me dedico a lecionar ou preparar aulas, ou a desdobrar alguma pesquisa em andamento, o que me estimula bastante, porque tenho o privilégio de dar aulas sobre literatura e psicanálise, e de fazer pesquisas sobre arte e cultura – temas apaixonantes. Reservo as leituras para a noite, mesmo que relacionadas ao trabalho – agora, por exemplo, estou dando um curso na USP sobre Nelson Rodrigues e Freud, então é de noite que me entrego à delícia de ler (ou reler) as obras desses autores seminais. O problema é que a escrita literária fica em último lugar, geralmente no fim de semana, antes ou depois dos compromissos com os meninos (sou uma mãe meio cansada, mas muito amorosa, e me recuso a ser ausente ou distante). Quando acho que nunca vou terminar o romance que está engasgado em mim há cinco anos, penso na Carolina Maria de Jesus: mãe solteira de três filhos, ela catava lixo, arrumava bico, matava um leão por dia para a família não passar fome, e ainda encontrava tempo e energia para escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã me sinto como um computador que acaba de ser reiniciado, todas as conexões atualizadas, na melhor performance. O amanhecer me inspira a pensar que é possível tentar de novo, uma nova chance. Quando consigo, me levanto às 4h30 e aproveito essas horinhas de frescor para escrever, antes dos meninos acordarem. Amo o silêncio da madrugada, da solidão produtiva – só barulho das teclas, enquanto as palavras ganham corpo na tela. Amo olhar pela janela, ver o céu clareando devagar. Se escrevo uma página, ou até menos, um bom parágrafo, numa dessas produções matinais, fico contente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acho angustiante a frase da Virginia Woolf: “Uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu, se ela quiser escrever ficção.” Claro que ela tem razão, e esse seria o contexto ideal para qualquer escritora, mas uma lição que aprendi, depois de quinze anos de análise, é que o ideal não corresponde ao real – pelo contrário: ele tampona o real. No mundo ideal, eu escreveria um pouco todos os dias e teria uma meta diária. No mundo real, escrevo quando dá. Com alguma frequência, no meio da rotina de trabalho me vem uma ideia, procuro anotar e depois voltar a ela. Já aconteceu de me chegarem poemas inteiros, quase prontos, em episódios de insônia. Recebo como um presente do inconsciente, que fica mais solto quando está perto do sono, dos sonhos. Às vezes chegam frases para um conto, para uma aula, para a legenda de uma exposição. Não desperdiço essa criatividade insone: anoto no celular mesmo, tento voltar a dormir, de manhã passo para o computador. Mantenho uma pasta de arquivos onde guardo embriões fecundados por anotações desse tipo. É assim que tenho conseguido produzir alguns contos, especialmente nesse momento de pandemia, em que sinto a urgência de pôr em palavras o horror que estamos vivendo. Há poucas semanas, publiquei um desses contos pandêmicos, “Carnaval 2022”, na RevistaRia, uma publicação online de que gosto muito. Outro deles, “Resto”, foi contemplado ano passado com o edital Arte como Respiro, do Itaú Cultural. No momento, estou organizando uma antologia de contos sobre a pandemia escritos por quinze mulheres, que deve ser lançada ainda esse ano pela Patuá, e incluí um conto meu, “Asfixia”, que me mobilizou por algumas madrugadas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa acontece como uma gravidez. É um feto em desenvolvimento, que vai me ocupando por dentro, mexendo com as vísceras, querendo nascer. Mas leva tempo, não dá para apressar. Até que chega o parto e a coisa brota. Quem já viveu um parto sabe como é estranho: independente da nossa vontade, o corpo decide que chegou a hora e faz o que deve ser feito, as contrações, as dores, a chegada do bebê no mundo. E aí vem a parte mais trabalhosa: cuidar do bebê, renunciar a um monte de outras vontades, empenhar muita dedicação para que ele cresça forte.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Balzac já disse que gostava de beber vinho para escrever e café para revisar. Essa não é uma boa estratégia para quem tem tendências alcoólatras – principalmente quando se escreve de manhã – e traz o risco de virar uma muleta perigosa. Isso porque o vinho alivia a aflição da escrita, mas acho importante manter um esforço para suportar essa aflição sem recorrer a subterfúgios autodestrutivos. Ou mais ainda: incluir essa aflição como parte do processo. Uma obra longa exige um enlouquecimento, a meu ver, inevitável: o escritor precisa perder a razão, entrar num funcionamento paralelo, ora obsessivo, ora psicótico, uma vivência assustadora, que tive que enfrentar nos maiores e melhores projetos que concluí. É uma paixão, no sentido etimológico do termo – patológico, pathos, mistura de encantamento e sofrimento, prazer e desprazer. Acho impossível limpar a escrita dessa dimensão passional, que afeta quem escreve e, por isso mesmo, cria condições para afetar quem lê.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos muitas vezes, de formas diferentes: leitura silenciosa, leitura em voz alta, leitura na tela, leitura no papel, espero para revisar de novo no dia seguinte, e sempre aparece algo para mudar, até o momento em que não aguento mais e determino um limite. Acho preciosa a oportunidade de mostrar um escrito para alguma pessoa de confiança. Mantenho uma dívida de gratidão e carinho com aqueles que já leram e comentaram qualquer texto que escrevi antes de publicar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço anotações no Word, se tenho o computador à frente, ou no celular, num guardanapo, na margem de um livro, na palma da mão. Acho o Google e o Word dois instrumentos maravilhosos de pesquisa e edição. Minha admiração pelos escritores que conseguiam escrever antes da existência desses recursos é enorme.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Por mais que eu me sinta exausta com as atividades que acumulo, todas são inspiradoras para um processo de escrita. Elas compõem grande parte da minha pesquisa sobre a vida, sobre a condição humana. Com meus pacientes, sou afetada pelo funcionamento do sujeito, dividido pelo inconsciente, que – nas palavras de Lacan – é estruturado como uma linguagem: o inconsciente faz metáfora, faz metonímia, o inconsciente é poético. Com meus filhos, exercito essa função louca que é a maternidade, um amor muito maior do que meu próprio eu, do que meu narcisismo, mas também uma necessidade irrenunciável de suportar o mesmo todos os dias, temperada de pequenos grandes acontecimentos que dão sentido a qualquer sacrifício – acho essa experiência profundamente instigante, desde a gestação. (Não por acaso, quando tive uma pessoa dentro da minha barriga pela primeira vez, vivi um surto de produtividade: escrevi meu romance “Cativos” e uma autoficção sobre gravidez, e ainda coorganizei uma coletânea de artigos psicanalíticos, no período de nove meses – costumo brincar que tive uma gestação e quatro bebês.) Quanto às aulas, exposições e livros que escrevo para os outros como redatora, eles me estimulam a refletir constantemente sobre a arte, a cultura, a escrita, sobre o exercício estético como condição de existência humana, seja do lado da criação ou da fruição da experiência artística. Eu me alimento de tudo isso, no dia a dia, e no momento que vou escrever muitas dessas reflexões já estão lá – só precisam de uma coluna vertebral que estruture uma premissa, uma história, um caminho a trilhar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Encaro os primeiros textos, com todos os seus problemas, como um caminho necessário de formação. Um escritor, em geral, não nasce pronto, ele vai se lapidando com o trabalho, inclusive com os tropeços do trajeto. Mas uma dica que eu daria a mim mesma seria: leia mais literatura brasileira contemporânea. Como sempre amei Machado de Assis, durante muito tempo escrevi inspirada por uma estética do século XIX, que já não tem mais lugar hoje, pelo fato de que as formas artísticas avançam conforme seu tempo, e para dialogar com os leitores contemporâneos me parece importante partir de uma posição contemporânea na escrita. O que obviamente não exclui a relevância dos clássicos na formação de um escritor. Na realidade, se pudesse voltar no tempo, algo que eu diria a mim mesma seria: leia mais. Gostaria de ter lido muito mais na adolescência, quando o tempo era menos escasso. Quanto mais eu leio, mais me dou conta de que existem livros fundamentais que ainda não li e tenho pressa de ler.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No momento, gostaria de parir o romance que estou gestando. No futuro, penso em brincar com a possibilidade de um romance erótico, revelador de algumas ideias que ainda me parecem inconfessáveis. Por outro lado, a gravidade da situação que vivemos hoje no Brasil me convoca a escrever um romance que possa contribuir com o debate público sobre os nossos problemas nacionais, mas tenho medo de acabar produzindo uma obra panfletária, o que traz à tona toda a discussão sobre a arte engajada. Quanto aos livros que gostaria de ler, a maioria já habita a minha biblioteca: há muitos livros que comprei e nunca abri. Eles esticam tentáculos na minha direção, que me chamam. É uma aflição danada ter que atender a somente um chamado por vez.