Fellipe Guedes é escritor e pesquisador.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Desde que a pandemia atingiu os nossos dias, minha rotina tem sido dentro de casa mesmo. Acordo perto das oito da manhã, vejo as aulas da faculdade, converso com os meus amigos nos grupos que temos pelos aplicativos de mensagens. Uma coisa que tenho dificuldade pela manhã é me alimentar, uma coisa que tenho tentado mudar, confesso, mas não consigo, só consigo comer a partir das dez, onze horas. E assim eu vou tocando minha manhã, de uma forma bem calma, sem muita agitação, costumo ser bem tranquilo nas primeiras horas do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Olha, muitos dos meus poemas já saíram pela madrugada. Ultimamente, alguns têm saído pelo horário da tarde, mas são muito raros. Gosto de escrever pela madrugada, o silêncio me atrai, acho que a madrugada tem uma paz diferente, é nesse ambiente que consigo me ouvir melhor, sem os ruídos do dia, é onde o meu corpo acalma, descansa e eu consigo deixar a poesia fluir. Nesse período, acredito que também absorvi algumas coisas durante o dia, coisas que me ajudam a escrever melhor, a desenvolver melhor a minha escrita. Não considero esse um ritual, mas talvez seja um ritual e eu não sei.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sendo bem sincero, não costumo escrever todos os dias. Em 2020, escrevi um projeto que pretendo publicar o mais cedo possível. Nele, incluí cem poesias, foram cem dias escrevendo sem parar, uma experiência única, fiquei impressionado com tudo aquilo fluindo de mim. Mas 2021 foi um ano mais calmo, me permiti absorver um pouco mais as coisas que andei pensando, estudando e deixei a escrita se desenvolver naturalmente. Recentemente, criei a meta de escrever no mínimo uma, duas vezes na semana, mas acabo não seguindo muito essa meta, existem semanas que são mais cheias e outras que acabam sendo mais vazias mesmo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita passa muito pela minha vivência, sabe. Muitas vezes, essas notas físicas acabam nem existindo, elas só ficam pairando por aqui. Como possuo uma escrita de protesto, muitas vezes vou me enchendo de indignações, incertezas, coisas que eu quero gritar e parece que não posso contar pra ninguém. Quando o balde parece estar bem cheio, é o momento que saio do campo do preparo, das pesquisas e vou escrever. É aí que eu vejo tudo ganhando vida e, muitas vezes, me surpreendo com aquelas palavras, aqueles versos, e tudo isso acaba me ganhando.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bom, durante um tempo, eu deixei a ansiedade falar mais alto. Foi um período muito difícil, eu não admitia ter um tempo sem escrever, imaginava que eu estava desaprendendo a escrever, era desesperador. Até que, um dia, um amigo chegou e me falou: “aprenda a aproveitar os hiatos, eles podem te trazer muita coisa boa”. A partir desse dia, tudo mudou. Ultimamente, tenho lidado com isso de uma forma muito mais saudável e visto que, nestes momentos, eu posso adquirir uma bagagem muito importante para o futuro da minha escrita. Nestes momentos, desenvolvo pesquisas, faço leituras, vejo que repousar também é necessário. Tudo isso tem feito com que eu encare alguns projetos de uma melhor forma, sem deixar a ansiedade tomar conta, sem ficar pensando muito no que os outros podem pensar sobre a poesia que eu produzo, apenas tento deixar ela falar e tocar quem ela tiver que tocar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Na época em que a ansiedade me dominava, como citei anteriormente, eu tinha um sério problema em deixar os meus textos descansarem. Eu escrevia e já enviava para outros amigos escritores e, dependendo do caso, até publicava aquele texto no mesmo dia. Até que escutei uma vez, de uma amiga que também é escritora: “eu tenho deixado os meus textos de molho por um tempo, ali, eles descansam, depois eu os pego de volta”. Achei isso tão bonito, sabe, mas tão bonito que eu também comecei a praticar. De uns tempos pra cá, tenho escrito os meus textos e deixado eles de molho, descansando por uns dias. Alguns dias depois, os pego de volta, reviso, mudo algo, caso precise ser mudado, e geralmente precisa, e envio para uns dois amigos, que sempre fazem uma análise muito carinhosa pra mim, e aí começo a pensar em publicar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu diria que sou um amante da tecnologia, desde a infância. Nasci numa família muito humilde, demorei muito tempo pra ganhar meu primeiro videogame, por exemplo, que não era de última geração nem nada, mas que foi recebido com muito carinho e eu aproveitei ao máximo aquele presente. Por volta dos onze, doze anos ganhei meu primeiro computador, tive meu primeiro contato com a internet, aquilo era surreal pra mim. Passei a ficar horas na frente do computador, horas fazendo amizades nas redes sociais, horas jogando online. Até hoje eu possuo essa relação muito forte com as tecnologias, utilizo muito a internet para estudar, trabalhar. Quase não uso o papel físico mais, só quando faço pesquisas bem específicas que eu tenho medo de deixar apenas na nuvem e um dia acabar perdendo. E a minha escrita também passa por esse processo, uso o meu celular pra escrever meus poemas, acaba sendo mais prático, acabo conseguindo formatar o texto de maneira mais rápida, é um processo que gosto muito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Olha, minhas ideias surgem do meu dia a dia. Eu sou um homem preto, que nasceu, cresceu e vive na favela até hoje. A minha escrita vem desse lugar, fala desse lugar, querendo valorizar tudo o que existe aqui e também gritar contra tudo que a gente sofre. Existem alguns poemas meus que surgiram de uma reportagem que estava passando no jornal e aquilo me indignou, existem outros poemas que surgiram de situações que eu e meus vizinhos enfrentamos, ou outras poesias falando sobre a minha convivência familiar, enfim. De uns tempos pra cá, tenho firmado os meus pés no chão e, desde que fiz isso, comecei a olhar mais nos olhos dos meus, ouvir mais o que todo mundo tem pra me contar, é desse lugar que vem a minha escrita, é a partir desse lugar que eu produzo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ah, muita coisa mudou já. Eu escrevo desde os quatorze anos, quando estava passando por um momento muito complicado e vi que escrever era o meu escape. Nessa fase, eu escrevia como uma pessoa que está afundando no mar e consegue subir, buscar um pouco de oxigênio. Era uma escrita de alguém que estava tentando sobreviver, tentando encontrar um motivo para continuar caminhando. Hoje, quase dez anos depois, a minha escrita é de alguém que sobreviveu e que já encontrou um motivo para continuar caminhando. Falando sobre uma parte mais técnica da coisa, acredito que hoje eu sou mais subjetivo, deixo mais o meu leitor caminhar pelo texto e se encontrar ali, interpretar por ele mesmo, antes eu era muito objetivo, muito direto. E essa mudança tem ocorrido de uma maneira muito natural, tenho me baseado em escritores e músicos que também fazem poesia dessa forma e tem sido um momento muito gostoso. Se eu pudesse voltar ao passado, eu diria para aquele Fellipe ter um pouco mais de calma, ser mais paciente, e que as coisas costumam andar de maneira bem mais tranquilas quando andamos assim, inclusive, a nossa escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Essa pergunta é muito legal, até fiquei rindo quando li. Basicamente, o projeto que eu gostaria de fazer já existe, mas ainda não foi publicado. Com o apoio de vários amigos escritores, comecei a escrever o meu primeiro livro no ano passado, mas por diversos motivos ainda não consegui publicar. Pretendo tocar esse projeto em 2022 e, se tudo der certo, estarei nas plataformas e, quem sabe, até mesmo nas prateleiras.
Pensando num livro que eu gostaria de ler, nossa, são tantos. Talvez, um livro escrito por mim, onde eu tenha coragem de falar sobre assuntos que eu ainda me prendo um pouco de escrever, mas tenho vontade. A escrita me apresenta um constante processo de libertação, quem sabe se, um dia, ela não me leva a esse lugar, a esse livro.