Felipe Cruz é professor e escritor, autor de “Você nunca fez nada errado” (2019).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu costumo me constranger com esse tipo de pergunta, acho que porque me dou conta do quanto sou desorganizado e ansioso a respeito de escrever – traços da minha personalidade que se intensificaram muito durante esse longo período de isolamento que temos vivido. Quando consigo, tento organizar meu dia em blocos de escrita – por ser professor de Língua Portuguesa e mestrando na área da Teoria da Literatura, meu dia realmente gira em torno de escrever, no entanto, diferentes tipos de texto, com demandas e processos bem diversos. O que, acredito, me leva à segunda pergunta: eu sempre tenho vários projetos acontecendo ao mesmo tempo, talvez escrever tenha se tornado, realmente, uma espécie de mania… o que sinto é que, se não estou escrevendo, estou pensando sobre escrever, arquitetando alguma coisa, desorganizando outras que já pareciam prontas. Nunca vivi outra realidade, não sei do que se trata trabalhar em uma coisa por vez, e nem sei se conseguiria, ou mesmo se quero. Muito se fala em apreciar o próprio processo, respeitá-lo, tenho tentando assumir essa postura…, mas é difícil, nasci com uma espécie de culpa entranhada, sempre acho que deveria estar fazendo o que quer que seja que estou fazendo de outra maneira e que não consigo por culpa minha, por culpa da minha falta de organização. Mesmo essa entrevista, sofri quase uma semana pensando o quanto queria responder logo a essas perguntas, o quanto queria enviar depressa o arquivo com minhas respostas, para poder demonstrar que me alegra saber que há interesse em ler o que tenho a dizer sobre a escrita, mas a sensação de culpa sempre me trava, rs. Para minha sorte, eu explodo e de repente estou cumprindo a tarefa que já deveria ter cumprido há semanas, como agora, rs, e começo a me perguntar porque não fiz antes, porque me sinto bem enquanto faço, rs, vai entender… de repente este é o meu processo, paciência, rs.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Acredito que, há um ano, eu diria que não planejo nada, mas descobri que isso não é verdade. Como eu disse na resposta anterior, ou estou escrevendo ou estou pensando em coisas que eu gostaria de escrever – tudo é um disparador, o noticiário, os livros que leio para escrever a dissertação, as conversas que presencio entre meus alunos, o Big Brother, a música que chega da casa do vizinho; isso pode parecer maravilhoso, e é, mas é também extremamente cansativo, porque, para mim, a realidade é que, apesar de a escrita estar intimamente relacionada a uma postura atenta e interessada no mundo, a um olhar meticuloso, ela também me rouba um pouco do presente, ela me retira um pouco do momento, já que, quando me dou conta, não estou mais vivendo aquela situação, mas raciocinando a respeito de como transformá-la em frases, orações, períodos, parágrafos. De modo que sim, eu planejo muito o que vou escrever, não planejo tudo, acho que não me interessa planejar absolutamente tudo porque gosto muito da sensação de um texto que estou escrevendo ser tão fluido e envolvente que eu me torno, um pouco, leitor do que estou escrevendo no sentido que considero o mais estimulante: alguém arrebatado. Os textos que escrevi de que mais gosto são textos que, enquanto eu escrevia, me suspenderam, me cercaram por todos os lados e, subitamente, concentraram um mundo sobre o qual eu aprendia enquanto o descrevia. É uma sensação maravilhosa, às vezes demoro muito para concluir algo, inclusive porque fico correndo atrás dessa sensação, dessa comoção. Não gosto de entregar para os outros algo que escrevi apenas com frieza e cálculo. No entanto, não me entenda mal, a frieza e o cálculo são importantíssimos para que a coisa se faça, mas os textos dos quais me orgulho são textos que não são feitos apenas disso. Quanto a o que é mais difícil, a primeira frase ou a última, entendo que são os dois momentos em que mais levo em consideração o leitor – não que eu queira agradá-lo porque, pelo menos eu, como leitor, não tolero os livros que tentam me agradar. Penso muito no leitor nesses dois momentos porque a primeira frase sempre me parece o instante em que pedirei a quem me lê que confie ao texto seu tempo, sua atenção, sua sensibilidade – três coisas que levo muitíssimo a sério, é um grande pedido – e a última frase a sinto como o instante em que retribuirei ao leitor por seu tempo, sua atenção e sua sensibilidade, mostrando a ele que não o enganei, que eu estava realmente falando sério o tempo todo, que fiz o que pude até o fim. O fim é um momento que sinto essa obrigação, de entregar a quem me lê algo a altura da dedicação com que aquela pessoa leu o que escrevi. De maneira que não consigo escolher qual o mais difícil, desculpe, rs.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Para mim é muito raro ter uma rotina de escrita, mas há os momentos de obsessão, durante os quais não penso em mais nada, quase não sinto mais nada e fico completamente contaminado pela tarefa – é horrível, rs. Em geral, isso acontece próximo à conclusão do texto porque, além do desafio de terminar, é nesse momento que começam as revisões maníacas e tudo é posto em xeque. Então eu diria que, neste período, sigo uma rotina de desespero, rs.
O silêncio é muito importante para mim, mas um silêncio urbano, nunca me dei muito bem com escrever na praia, no rio, não sei, essa ideia de me retirar para escrever em lugares quase desabitados nunca me seduziu muito – inclusive já tentei, mas parece que as coisas que nascem desse tipo de experiência espaço-temporal são excessivamente contemplativas, lânguidas, não costumo gostar. Vivo em uma esquina onde passam muitos ônibus, muitas vans, meu prédio é próximo a algumas oficinas de funilaria, o meu dia é repleto desses sons, além do barulho das pessoas falando alto, gritando umas com as outras. Mas de alguma maneira que não consigo precisar, isso compõe o silêncio para mim. Talvez porque me faça sentir algo que tenho apreciado muito: que ao escrever não estou fazendo nada demais, nada de milagroso ou fantástico, que é apenas mais um trabalho, assim como o de quem dirige o ônibus, ou solda pedaços de aço. É, acho que é isso o que me atrapalhou nas vezes em que me “retirei” para escrever, fiquei com a sensação de estar fazendo algo sagrado, ritualístico, e não gosto muito de pensar por esse lado. Não é nem que eu não goste, mas me atrapalha, sei lá, vira um negócio muito formal, aí o texto morre sufocado, parece, de tantos protocolos. Mas minha casa precisa estar em silêncio, não consigo escrever se dentro de casa estão assistindo TV em um volume alto, ou ouvindo música, ou falando muito. Não consigo me dissociar tanto assim do lugar em que estou, inclusive invejo os que conseguem incluir esses elementos disruptivos no que escrevem (como faziam Lucia Berlin, Nelson Rodrigues, Jane Austen).
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Égua, quem me dera, rs. Acho que o que de melhor consigo fazer é assumir a procrastinação e tentar compreendê-la como um momento do processo de escrita. Isso tem relação comigo ter percebido que não paro de pensar em escrever e no que vou escrever, então a procrastinação, para mim, tem muito a ver com não estar praticando a atividade física da escritaque é sentar-me à mesa, com um caderno ou um computador na minha frente, e usar minhas mãos para grafar palavras. Essa atividade eu, muitas vezes, tenho problema em desenvolver – a trava, em geral, está nesse ponto. Agora, o mais difícil é quando preciso escrever algo que não quero, aí complica porque não consigo nem me dedicar a pensar e, muito menos, a sentar para escrever, esses são os piores, são as tarefas. Nessas horas o que eu faço é transformar a tarefa numa coisa minha, aí eu arrisco mesmo. Com a dissertação, por exemplo, que preciso entregar para ser avaliada pelos outros e receber uma nota, eu só consegui realmente me comprometer com ela quando ela se tornou algo meu, quero dizer, quando virou uma coisa que eu enxergava como expressão, não apenas como informação. Acho que isso me ajuda muito, transformar em expressão. Mas se me perguntares o que é expressão, aí eu já não sei te dizer com certeza, mas o que eu sinto quando um texto que era uma tarefa se transforma em um texto expressivo é que aquilo passou a me dizer algo e a me dizer algo que me estimula a entender coisas que eu ainda não sei. Para fechar esse momento “conselhos”, rs, eu diria para uma pessoa que está travada para escrever que leia. Leia o que puder, coisas que te lembrem porque tu amas as palavras, porque as palavras são importantes. Pode ser qualquer coisa, mas que seja algo que traga de volta a gratidão pela existência das palavras.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Acho que estou trabalhando justamente no que deu mais trabalhando, ou seja, está dando ainda. Um romance sobre o fim do mundo. É uma ideia muito antiga, que já deu origem a um conto, lá em 2015. Nesse conto eu trabalhei por 3 anos – às vezes não tem jeito, a gente precisa se transformar na pessoa que vai conseguir escrever aquilo que queremos. Isso é muito estranho: é muito comum eu ter ideias e não estar à altura delas, é uma frustração terrível. Foi assim com essa história, tive uma ideia que amo, que me instiga, me inspira, me provoca, mas ainda estou virando a pessoa que vai materializar essa ideia da melhor maneira. Essa dificuldade tem a ver com o gênero também, eu sou um aficionado pelo romance como gênero, fui criado por Clarice Lispector, Virginia Woolf, Dostoievski, Graciliano Ramos, William Faulkner, Sylvia Plath, Marguerite Duras – mestres, mulheres e homens que foram tão longe no gênero que me intimidam, rs. Mas me intimidam, talvez, num bom sentido, de ser muito rigoroso comigo mesmo, de me recusar a publicar algo que não esteja de acordo com as possibilidades que o gênero oferece. Apesar de estar me batendo com esse livro tão trabalhoso, também sinto alegria com esses “debater-me”, digamos assim. É como eu sei que se trata de algo vivo, sabe? Que pulsa, que tem respiração para além de mim mesmo. Isso é uma alegria sem igual.
Sobre aquele que eu mais me orgulho de ter feito… bem, acho que por algum tempo vai ser o “Você nunca fez nada errado”, o livro que escrevi sobre a minha experiência enquanto um homem gay soropositivo. Além de eu admirar o resultado, estar satisfeito com ele, é um livro que, pela maior parte da minha vida, eu acreditei que não conseguiria escrever. É um livro que me resgatou e foi escrevendo ele que entendi, finalmente, que sou escritor. Entendi que não adianta fingir, rs, é isso mesmo. Tem mais uma coisa sobre esse livro: o número de pessoas que vieram até mim para agradecer por ele, para me dar um abraço, para tomar um café, para me dizer que se sentem felizes em ter lido esse livro. Nesse ponto, eu sou bem besta, rs. Eu gosto muito das pessoas, muito mesmo. Então, se uma pessoa me diz “obrigado, isso que você escreveu me ajudou”, ou “me provocou, me desorganizou, me amparou, me fez querer ir mais longe”, se uma pessoa me diz algo assim, nessa hora, alguma coisa faz sentido. E tem sido tão raro, sentir que algo faz sentido.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Os temas para os meus livros… olha, não sei. Acho que eu nunca escolhi muito, porque sinto que sempre escrevo sobre coisas muito parecidas: memória, morte, desejo, repressão. A experiência homossexual é central para mim. Não apenas porque sou gay, é claro que é possível uma pessoa homossexual nunca escrever nada a esse respeito, mas para mim é um tema central porque eu vivi a maior parte da minha vida “no armário”, comecei a assumir minha homossexualidade aos 27 anos. Essa experiência me fascina da perspectiva da linguagem porque, por 27 anos, eu fui outro, eu aprendi e reproduzi outra linguagem, outro comportamento, outro desejo, outra verdade. Sempre fico impressionado com ter insistido nisso por tanto tempo, porque é uma coisa assassina, eu quase morri muitas vezes de pura exaustão. Mas aprendi muito sobre expressão, aprendi sobre como a performance é, realmente, o substrato das relações. Hoje, como escritor, esse período me parece um longo laboratório, em que me sentir amado e aceito dependia diretamente da minha capacidade de observar homens heterossexuais e reproduzir o seu comportamento. Acredito que qualquer pessoa que faça parte de uma minoria saiba do que estou falando – é como se passássemos a saber de algo que quem está de acordo com a norma não pode acessar. É como se nos fosse revelada uma mentira antiquíssima e, quando nos apossamos dela, conseguimos descrever melhor as ficções do mundo. Claro que existe muito de legítimo nas ficções, rs, mas é sempre bom lembrar que elas não são o mundo. Então penso que esse tema vai demorar a “desaparecer” da minha obra.
Quanto ao leitor, eu não tenho um ideal porque me alegra muito imaginar que pessoas completamente diferentes poderão ler o que escrevi. Isso, para mim, é maravilhoso. Recentemente um livro meu foi lido num clube de leitura composto, principalmente, por adolescentes. A experiência de ouvir o que eles tinham a dizer foi fantástica. Completamente diversa de ouvir uma pessoa de 30 e poucos anos, com vivências mais semelhantes às minhas. Gosto muito de ser surpreendido pelo leitor, de ouvir alguém dizer algo, para mim, absolutamente impensável sobre o que escrevi e, como professor, convivo com a espontaneidade das crianças e adolescentes em emitir suas opiniões diariamente. Então não conseguiria pensar num leitor ideal, não gosto dessa ideia, faz parecer que o leitor vai fazer uma prova ao ler meu livro, rs. Mas é engraçado, eu não paro de pensar no leitor enquanto escrevo, no entanto é essa entidade sem rosto, sem história, na qual eu penso porque, se não, por que eu estaria escrevendo?
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Nossa, isso é complicado… tenho me sentido cada vez mais constrangido em pedir a alguém que leia o que escrevi porque fica aquele clima de a pessoa se sentir no dever de elogiar e, ao mesmo tempo, se tiver críticas, é estranho porque nós não somos muito educados para criticar o que uma pessoa fez, acho que aprendemos a ser melindrosos desde muito cedo. Então, eu mando para alguns amigos e tento fazer perguntas relativamente específicas sobre o texto, por exemplo “O que achas da construção desse diálogo? O que pensas sobre a saída que encontrei para esse conflito?”. Minhas amigas e meus amigos sempre me incentivaram muito a escrever, meus livros sempre têm, em maior ou menor grau, alguma relação com eles, e são eles também os primeiros a ler. Há alguns anos, eu e a escritora Paloma Franca Amorim temos cultivado uma certa troca de textos. Foi a primeira vez que pude viver essa experiência com alguém que também se dedica quase inteiramente ao fazer literário, que se dedica bem mais do que eu, na realidade. Então passamos por dilemas semelhantes. Este livro que estou escrevendo agora, por exemplo, Paloma foi uma das amigas para quem pedi a opinião a respeito de um capítulo em especial porque, além de sermos amigos, ela acabou de encarar a missão de escrever um romance, “O Oito”, que saiu recentemente, e nós conversamos frequentemente sobre esse desafio-romance. É um gênero todo cheio de vontades, rs.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Não lembro, começou muito cedo. Desde criança era algo que eu fazia porque queria. Quando cheguei na adolescência, me afastei bastante disso, acho que porque pela escrita eu me deparava muito com minha sexualidade e, como eu não tinha estrutura e nem apoio para encarar meu desejo homossexual, eu comecei a ver a escritura como uma ameaça, um incômodo, algo que me fazia pensar em coisas que eu gostaria de evitar de pensar a respeito. Ali pela faculdade voltou, um pouquinho, mas era tudo muito ruim – eu escrevia fingindo ser outro, não no bom sentido, como o Pessoa fazia, rs, mas no pior sentido de todos, que é o da obrigação de ser outro. Aí tudo o que eu escrevia era essa cópia mal ajambrada da norma, foi o pior período pra mim. No final das contas, eu resolvi me dedicar à escrita quando ganhei o edital que garantiu a publicação do meu primeiro livro de poemas. Porque foi nesse momento que pensei “Bom, se os outros estão dizendo, deve ser verdade”, rs. Pra tu veres que nem nessa hora eu consegui confiar completamente em mim, rs. Precisou de uma banca avaliadora, rs. Esse prêmio foi essencial na minha vida, se esse primeiro livro não tivesse acontecido, se minha amiga Luana não tivesse insistido para que eu me inscrevesse no edital, sabe lá o que teria acontecido comigo. Então, vou deixar aqui como resposta oficial: decidi me dedicar à escrita quando soube que meu primeiro livro seria publicado. Fica meio prepotente assim, né? Mas é a verdade, e fazer o que? Capricorniano é assim mesmo, desconfiado, não se compromete de primeira, rs.
Agora sobre o que eu gostaria de ter ouvido… eu acho que eu gostaria de ter ouvido que escrever não é um teste, que ninguém pode dizer o resultado final, a nota que o livro vai receber. Isso é muito delicado, todos nós queremos ser lidos e, geralmente, todos nós temos influências literárias muito fortes, mas eu gostaria de ter descoberto antes que, apesar de ter aprendido muito com a Woolf, a Lispector, a Plath, a Duras, eu não tinha que reproduzir nada do que elas fizeram. Que não era sobre isso, sobre corresponder ao trabalho dessas pessoas. É meio contraditório com o que eu falei antes, né? Talvez porque eu ainda não tenha resolvido por completo essa questão… porque eu ainda me coloque nessa posição de estar sendo avaliado por alguém (quem?). Bom, isso não muda o fato de que eu gostaria que eu alguém tivesse me dito isso: não é um teste, não é uma prova. É expressão.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Nossa, todas. Todas as dificuldades, rs. Tô exagerando. Eu tive acesso a muitas coisas essenciais para me desenvolver como escritor. Mas, por anos, não pude acessar a mim mesmo, a quem eu era como sujeito de linguagem. Essa foi a principal dificuldade, de novo: a homofobia. Como eu cresci sentindo desprezo por mim mesmo, eu cresci desprezando tudo o que eu produzia, pensava, falava, achando que eram coisas que não mereciam atenção, que eram bobagem, que não importavam. É como diz a Hannah Gadsby, para uma pessoa LGBTQIA+ vivendo numa sociedade que odeia pessoas LGBTQIA+, a humildade se torna uma forma de humilhação. Era isso. Eu só conhecia a humilhação. Como eu poderia desenvolver um estilo, se eu odiava tudo o que era legitimamente eu? Eu comecei a me encontrar como escritor quando fui emergindo dessas camadas sufocantes de desprezo, ódio, repressão. Foi aí que alguma coisa começou a romper, a se partir. Foi aí que alguma coisa começou. Talvez por isso eu ainda queira escrever por tanto tempo sobre a experiência homossexual, porque é uma experiência que, para acontecer, nós precisamos realmente nos inventar enquanto pessoas. Se não, vamos continuar não existindo. Vamos continuar uns fantasmas. E, égua, quer algo mais potente criativamente do que se inventar enquanto pessoa?
Autores que influenciaram… hoje, nesse momento específico da minha vida em que quero tanto estruturar um romance, eu apontaria a influência da Elena Ferrante, que é um colosso de escritora. O que ela fez na tetralogia napolitana é surreal, ela fez tudo. Um romance político, social, sobre educação sentimental, metalinguístico, parodístico. Está tudo lá. Se alguém me perguntasse do que é capaz um romance eu diria para ler a Ferrante, está tudo lá. A elaboração das personagens, o ritmo, os arcos dramáticos, o uso de recursos como elipses, flashbacks, enfim, ela é uma virtuose da forma, faz o que quer e sempre encontra as melhores soluções para todas as situações dramáticas propostas no texto. Além de ter inventado uma das personagens mais fascinantes que já conheci, a Lila, que fica ali, do lado da G.H., da Capitu, da Emma Bovary, do Aliócha Karamazov, da Esther Greenwood, da Mrs. Ramsay, isto é, entre as personagens nas quais uma autora ou um autor conseguiu condensar muito do que é capaz uma pessoa. Em 2017 eu li a Lucia Berlin, que teve também um impacto imenso em mim. Ela foi essa mulher que trabalhou como enfermeira, professora, faxineira, caixa de supermercado, garçonete e, no fim da vida, recebeu algum reconhecimento pelos seus contos. Tudo o que escreve vibra de tanta vida, tanta violência. Para mim, é a mestra do gênero, tomou o lugar que era do Tchekhov, rs. Para ficar, ainda, nas que li mais recentemente, eu destacaria também a Silvina Ocampo (aulas de literatura fantástica), a Jenny Zhang, que descreveu, que capturou no livro dela de contos, “Coração azedo”, um aspecto da ancestralidade do imigrante, da miséria a que está exposto o imigrante que é assombroso, lindo, lindo e a Carola Saavedra, que tem feito experimentações muito estimulantes no gênero do romance também. Na poesia vai longe a lista, mas quem considero como influência são Adília Lopes, Sylvia Plath, Wislawa Szymborska, Adrienne Rich, Anna Akhmátova. E, lá no começo, estão as minhas mães: dona Clarice e dona Virginia, rs.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Acho que a tetralogia napolitana da Ferrante, antes era o “Manual da faxineira”, da Lucia Berlin. Mas a Ferrante é essa escritora que eu quero que todo mundo leia porque ela me trouxe muita alegria. Acompanhar o desenvolvimento da amizade entre Lenu e Lila foi um assombro: a Ferrante tem uma característica que admiro muitíssimo, a coragem. Ela não escolhe os caminhos mais reconhecíveis para o leitor, nunca. Estamos sempre em território desconhecido. Por exemplo, seria fácil, ou pelo menos mais fácil, ela insinuar uma relação erótica entre Lenu e Lila, um desejo lésbico não realizado, já vimos essa narrativa algumas vezes quando acompanhamos a relação de amor profundo entre duas mulheres. Mas ela se recusa. Ela quer chegar no mais fundo possível dessa relação que é a amizade, uma relação sempre muito admirada, mas insuficientemente abordada (no meu ponto de vista) como relação central na vida de personagens, especialmente de personagens de uma tetralogia. Assim, as violências, decepções, manipulações, arroubos passionais, momentos de êxtase, estão relacionados sempre com a amizade (!), uma relação que é sempre muito idealizada, muito romantizada, o que acaba levando a um esvaziamento de sua potência expressiva. E como se não bastasse, rs, esses quatro romances ainda oferecem uma das reflexões mais instigantes e originais sobre o que é escrever, do que se trata, por que fazemos isso, e o que perdemos enquanto realizamos essa tarefa. A cada livro eu ficava mais e mais convencido de que nós, seres humanos, somos horríveis, cruéis, vis, mas que, de vez em quando, nós fazemos alguma coisa bem, nós fazemos algo que é bom justamente porque sai desses lugar sombrio, como uma palavra de doçura que emerge de um longo período de mágoa e abandono, e aí essa coisa pode ir rolando pelo mundo de mão em mão, lembrando outras pessoas que certos milagres, certas magias, não tem jeito, só uma pessoa é capaz de fazer. Nenhum deus, nenhuma entidade sagrada. Só uma pessoa.