Fabíola Cunha é escritora, professora e historiadora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em casa acordamos um pouco antes do Sol, para meditar, rezar e fazer todos os procedimentos necessários para termos um bom dia.
Depois anoto os sonhos, símbolos, imagens, palavras que chegaram durante o sono. Nesse horário também costumo revisar textos e listar o que preciso fazer. Tudo isso antes das 7h, horário em que dou minha primeira aula.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que escrevo melhor a partir do final da tarde. Quando a escrita flui, preciso lembrar de beber água e sair do computador para comer, porque a depender do ritmo que tomei, fico imersa no texto e alheia ao que está ocorrendo ao redor.
No ambiente em que escrevo, tem elementos que me ajudam a lembrar de viver o que nasci para fazer. Então, tenho comigo Nina Simone num quadro, uma carta da minha avó num porta-retrato, fotos de alguns dos meus antepassados e livros de autores que admiro. Abro as atividades com uma xícara de chá.
Falamos muito da criação como se fosse uma atividade apenas mental, às vezes esquecemos do corpo que escreve, da parte física da escrita. Passo muitas horas sentada por isso faço alguns exercícios específicos antes de sentar no computador.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tentei estabelecer uma meta de escrita diária, mas nem sempre alcançava os caracteres ou a quantidade de palavras. Isso gerava muita ansiedade. Somos atravessados por diversas situações que nos cegam para poesia em determinados momentos. Desisti de trabalhar com meta. Também não creio em ficar esperando a inspiração descer do céu. Tem uma frase que me parece ser de Plínio, o Velho em que ele diz: “Nem um dia sem uma linha”. Uso a ideia dessa frase para me manter sempre em atividade. Não passo um dia longe das linhas do meu texto ou dos livros que leio. A arte está em constante produção. Escrevemos também quando estamos lendo.
Quando durante o dia converso com as personagens do texto que deixei descansado em casa, estou escrevendo. Quando meu modo de enxergar as coisas fotografa cenas do meu cotidiano, estou escrevendo. Ir para o computador é parte de um processo maior.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando vou escrever costumo colocar uma playlist que tem a ver com as emoções despertadas pelo que estou escrevendo. A música cria uma atmosfera que favorece a criatividade. Alguns textos não aceitam, pedem silêncio para surgirem no papel com sonoridade própria. Eu obedeço.
Nesse momento tenho ouvido muito sr. Mateus Aleluia, a quem tenho admiração e reverência e Fela Kuti.
Quando o fazer literário requer pesquisa, seja aspectos técnicos de alguma profissão, ou detalhes da cultura de um lugar, essas informações aparecem no texto no movimento das personagens. Não costumo encher o texto com explicações desnecessárias. Confio em que me lê.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando a água para de correr é preciso fazer o caminho contrário. Encontrar que pedra, madeira, barreira estão impedindo a fluidez. Subo revisando o texto e removendo os obstáculos que barram a passagem das ideias.
Ano passado tive covid e perdi o olfato, tive que ensinar meu cérebro a recordar os cheiros. Minha angústia morava na perda das memórias guardadas pelo meu olfato. Como ativar a lembrança das tardes na rezadeira ou das histórias da bisa, se não sentia mais o cheiro de guiné, alfazema e arruda? Lembrar do meu avô se barbeando no cheiro de loção pós-barba. O mar soprando maresia para avenida na volta do trabalho. Quando sinto que estou travando, as memórias estão ali, dando força ao meu repertório. A partir delas faço meu antídoto antibloqueio.
Durante a produção do texto, não tenho em mente um leitor específico. O texto pode chegar em pessoas que nem imaginamos. Uma mulher entrou em contato comigo para dizer que amava o que eu escrevia. Fui ver o perfil dela nas redes sociais e temos pouca coisa em comum. Talvez se passasse por ela na faculdade, rua, trabalho uma não chamaria atenção da outra. Mas a literatura abre esses portais de conexão. Quem pensa em público-alvo é o setor de marketing, eu penso muito na importância do que quero comunicar, e quem estiver sintonizado com o que eu escolhi para registrar, eternizar, acaba me encontrando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Antes de revisar, deixo o texto descansando e vou fazer outra coisa. Começo nova leitura, assisto algum filme, vou à praia. Depois retorno ao texto como alguém visitando um amigo que não vê há muito tempo. Detecto o que me causa estranheza, possíveis incômodos, falta de entrosamento e ritmo. Sempre leio para meu companheiro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho muitos cadernos sem pauta. Começo meus textos neles e depois continuo no computador. Gosto de ver o desenho do texto manuscrito e só depois o formato que toma no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Moro um lugar abundante em águas. Na frente a Baía de Todos os Santos, do lado esquerdo vejo um pedaço da Baía de Aratu. Aqui sempre encontramos o mar, ao descer alguma ladeira, pela fresta da janela, dobrando a esquina, nos trilhos do trem.
No Subúrbio Ferroviário de Salvador, temos um pedaço de Mata Atlântica, um dos maiores do país preservado em área urbana, com cascatas e rios. As cachoeiras têm nomes das divindades Yorùbás: Cachoeira de Nanã, Oxum e Oxumaré. Foi morada dos tupinambás e abrigou um Quilombo.
Minha escrita tem a fluidez das águas. No papel coloco a geografia desse lugar. Da sua comunicação comigo e dos meus diálogos com o mundo. É uma escrita oceânica composta por oralidade, expressões e experiências dessa geografia inscrita em mim. Uma escrevivência, como diria Conceição Evaristo. Tem personagem que sobe no metrô comigo, outras vezes encontro uma história numa conversa de ponto de ônibus, na arquitetura de uma casa, nos quintais com esqueletos de barcos, no modo que alguém se movimenta na rua.
Minha criatividade se mantém quando exercito meu olhar pra enxergar a poesia impressa nas pequenas coisas, me cercando de todo tipo de manifestações artísticas e conversando com minha Ancestralidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria, menina, se desapegue do que atravanca o texto. Reveja os verbos e os adjetivos preguiçosos, aprendi isso com Marcelino Freire.
Minha escrita hoje desenha um corpo no texto totalmente diferente de anos atrás. Respeito a sonoridade que a escrita traz.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A escritora Toni Morrison disse que “se tem um livro que você quer ler, mas não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo”. É nesse projeto que estou trabalhando agora.