Fabio Riggi é jornalista, canhoto, autor de cidade adeus.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Atualmente, começo meu dia com sono. O corpo costuma acordar pouco depois das 6h, mas a mente custa mais. Geralmente só tenho disposição e ócio pela manhã em alguns domingos. Minha rotina matinal na maioria dos dias envolve sair de casa com pressa, sem café. Não sou um bom exemplo para quem quer escrever. Ainda assim, a leitura e a escrita estão presentes o tempo todo. O tempo todo. Senão, não adianta. “Amar, fazer, destruir”. A vida é o próprio tempo.
Quanto à escrita propriamente dita, meu trabalho é na maior parte dedicado a ela, assim como meus estudos, desde a graduação em Comunicação Social até o mestrado e doutorado em Letras. Isso contribui. A prática já está condicionada, basta mudar o foco. Por isso, tenho de virar a chave algumas vezes ao dia. Leio vários livros ao mesmo tempo, escrevo (ou comunico) o tempo todo também, no jornalismo, na pesquisa, na docência, no lazer. O que não vai para meus livros serve de aprendizado e exercício. Você já sonhou (ou teve um pesadelo) com ideias amorfas entaladas na garganta, impedidas de virar verbo?
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Se eu pudesse, escrevia o tempo todo em qualquer lugar. Mas, no momento, a rotina tem inibido muito minha produção poética e ficcional. São escolhas. No fim, é sempre a gente escolhendo o que fazer com o pouco tempo que tem. Em alguns momentos, é preciso sacrificar a escrita para não sacrificar a escritura.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Atualmente, minha escrita está dedicada quase exclusivamente à comunicação corporativa e à pesquisa científica. Tenho trabalhos literários inéditos em fase de revisão, outros pela metade, outros no começo, tudo em stand-bypor enquanto, não sei o que vai ser possível reaproveitar quando eu voltar a eles. Mas aconselho a prática diária também com poesia e prosa de ficção, no meu caso, e de quaisquer outros gêneros, vertentes, códigos da linguagem para quem quiser se dedicar à escrita. Como eu disse, não sou um bom exemplo agora.
Escrevi dois poemas nos últimos três meses, o que é um volume bom de poesia para mim, mas ultimamente chego a ficar semanas sem voltar a eles. De qualquer forma, seja nos estudos ou na produção literária, a prática diária não é só importante, é fundamental. Imprescindível no caso de narrativas e projetos semelhantes, que demandam construção a partir de uma macroestrutura. No momento, estou focado nos estudos. Não tenho nem me importo com metas diárias, exceto no trabalho. Se você quer ser um escritor profissional e ter nos seus romances sua principal fonte de renda, isso pode ser importante. No meu caso, tendo a celebrar mais um verso que demorei meses a resolver.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso da poesia, tive diferentes experiências com o processo de escrita, umas bem-sucedidas, outras não. ‘cidade adeus’, por exemplo, que publiquei em 2014, começou a ser escrito por volta de 2005 ou 2006, mais ou menos, quando vim para São Paulo fazer mestrado. Surgiu a partir de um poema na voz de um eu-lírico praticamente pronto, denso e contextualizado, e ainda assim, tão estranho a mim mesmo, que chamou minha atenção na hora. Foi muito fácil separar esse eu-lírico daqueles dos demais poemas esparsos que eu vinha criando na mesma época. Depois percebi que alguns desses esparsos também compunham o mesmo enredo desse eu-lírico que se destacou.
Gosto muito de uma comparação usada por Stephen King para quem se propõe a escrever uma história, que é a “escavação”. Comigo é bem assim, encontrar um pedacinho de osso no terreno e escavar o resto do fóssil. A partir do verso ditado por esse eu-lírico, encontrei os demais poemas, notei que, apesar dos versos, tratava-se de uma narrativa, descobri os demais personagens com suas diferentes vozes e deixei que fizessem o resto.
‘cidade adeus’ é uma experiência no campo semântico que se apropria do drama e da narrativa epistolar. Uma obra que tem algo de práxis no sentido de chamar o leitor a participar da criação. Mesmo com toda a “escavação” da história que serve como pano de fundo, a construção do sentido é o motivo da obra. Ela funciona a partir do não dito, da omissão de elementos da narrativa e do discurso, assim como “Dom Casmurro”.
Em relação à prosa de ficção, das duas que concluí até agora, uma partiu de uma metáfora, a outra, de uma série de contos produzidos sem a pretensão de virar um romance. Mas, em geral, para a prosa ficcional, seja curta ou longa, o trabalho é praticamente o mesmo. Às vezes faço um roteiro. Sempre dependo da construção prévia das personagens e de alguns pressupostos semânticos, além da montagem da estrutura do texto e da engrenagem narrativa. Por fim, pesquisa de campo.
A primeira tentativa que concluí foi uma não tentativa. Nasceu por volta de 2002 ou 2003 quando, também por intermédio de um narrador que surgiu do nada, escrevi um conto, que deu origem a outro, independente do primeiro e na voz de outro narrador, embora ambos tivessem algo em comum que até então eu não conseguia identificar o que era. Uns dois meses depois, eu tinha seis narradores e uma série de histórias que se entrelaçam até se encaixarem, por fim, em uma macronarrativa distribuída em capítulos autônomos.
Entretanto, a etapa de montagem levou a um processo de edição e reescrita que durou cerca de 15 anos. Ainda assim, aprendi que tenho mais facilidade em conduzir a narrativa e encontrar minhas histórias por meio das próprias personagens que a partir de um roteiro pré-estipulado. Também aprendi uma lição assustadora: as personagens tomam vida própria. Se você quer que a história termine, nunca poderá confiar demais nelas. É importante não perder o controle da narrativa, seja por causa do narrador ou por qualquer outro motivo.
Antes de começar o doutorado, eu estava me dedicando a dois projetos de romance. Um no qual parti, não exatamente de um roteiro, mas de um contexto inicial, simples, que permitiu conduzir um fluxo de consciência quase puro sem perder o foco. O outro, que está praticamente concluído (preciso “corrigir” algumas partes ainda), teve como ponto de partida a sua própria engrenagem, e ainda que se trate mais de uma experiência no campo da linguagem e da metalinguagem que de um romance propriamente dito, gerou a narrativa mais ágil, leve e linear que escrevi até hoje.
Enfim, acho que tendo a me mover mais da escrita para a pesquisa que o contrário, sobretudo a pesquisa de campo, que faço quase sempre de acordo com a necessidade.
Também há situações em que crio para atender uma demanda. Nesses casos, o desafio para mim é criar a partir de uma proposta alheia. É o que aconteceu, por exemplo, com o convite que recebi para participar do último ciclo da exposição/experiência “A mecânica do livro no espaço” (págs. 108-109 do catálogo), de Leonardo Mathias e Ricardo Escudeiro. Nessa fase, cada poeta convidado escolheu um objeto residual da exposição e teve a tarefa de criar a partir daquilo. Acabei escolhendo o que depois descobri se tratar de um pedaço de divisória.
Para mim, aquele objeto se apresentou como três módulos destacáveis que poderiam se encaixar em qualquer ordem. Sendo assim, busquei pensar uma forma poética que permitisse esse intercâmbio de posições, criando um poema em tercetos que pudesse ser lido de cima para baixo, de baixo para cima, em qualquer posição que as estrofes fossem dispostas, e escrevi o poema no próprio pedaço de divisória. Foi uma situação na qual a interação com o objeto determinou a estrutura do poema e serviu de contrainteà obra.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Muitas vezes, meu texto trava por conta de situações pontuais: um argumento que ainda depende de uma análise mais dedicada, uma cena que depende de mais pesquisa, um close readingde um poema que minha sensibilidade ainda não captou, um trecho do original que não consigo traduzir etc. Entretanto, são momentos em que me sinto mais desafiado no meu exercício com a linguagem. São os mais estimulantes para mim.
Sobre as expectativas, serão um problema para mim quando as minhas próprias forem menores que as dos meus leitores. Escrevo e leio porque gosto. No caso da leitura, quando gosto do que estou lendo, começo a ficar mais ansioso quando vai chegando mais perto do final. Várias vezes me pego relendo trechos e fazendo outros truques comigo mesmo para não avançar na leitura. Reler uma cena de um livro, várias vezes, para ficar saboreando as palavras, e as sensações e memórias, sentidos e sentimentos que vêm com elas, quem nunca?
No caso da escrita, a procrastinação atrapalha mais. Principalmente em projetos de maior fôlego, que dependem de algum envolvimento diário para que não esfriem. Se isso acontece, antes de retomar, você tem que desenferrujar as ferramentas, rememorar todo o processo e tudo que foi feito até ali, entrar novamente no tom e na sensibilidade da obra, elementos significativos acabam se perdendo, um desastre. Ler um texto frio é bom apenas nas etapas de edição e revisão, quando o distanciamento proporciona outras perspectivas e melhor noção do conjunto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até quanto for necessário para atingir os objetivos de execução da obra. Há textos meus que ficaram prontos de forma praticamente simultânea ao rascunho e outros, como já citei, que passaram uma década e meia em processo de reescrita. Sempre que termino o rascunho de uma obra, entrego para algumas pessoas lerem antes de levar a público. Tenho mais facilidade de encerrar o processo de revisão com a prosa que com a poesia.
No caso de ‘cidade adeus’ por exemplo, antes de ser publicado, foi lido por gente que não tem quase nenhum contato com a arte ou a poesia, para ver como funcionaria com um público distante e por vezes até avesso. Também contou com uma leitura especializada muito sensível e minuciosa da escritora Leila Guenther (autora da ótima ‘Viagem a um deserto interior’), com impressões e sugestões significativas. Por fim, passou pelo editor Eduardo Lacerda, que também fez observações providenciais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo, melhor dizendo, registro em qualquer lugar, com qualquer tecnologia ou mídia, e passei a centralizar minha produção em pastas e arquivos na nuvem. Adoro o contato com a tecnologia, sobretudo pelos avanços que ela permite à comunicação e à linguagem. No caso da leitura, substituindo o papel por exemplo, nem preciso comentar. No mais, trabalho em uma empresa de Tecnologia da Informação e procuro absorver o máximo dessa experiência para minha oficina literária.
Em meus poemas, até hoje, tenho prezado pela simplicidade, por condensar o máximo de significado que possa ser facilmente reproduzido em qualquer plataforma, que não dependa da tecnologia digital para viver e se reproduzir, mas que possa se aproveitar dela para se aprimorar e expandir. Ambas, tecnologia e poesia, para mim, envolvem experiências com linguagens e, em geral, um trabalho complicado para gerar soluções simples, inteligentes e intuitivas.
A comparação acaba aí. Sem cair na onda do deus-máquina. E sem cair na dependência. Ao explorar a tecnologia como elemento semântico e performador do poema, saiba que você está assumindo o risco de criar obras que já nascem como peças de museu, que valem mais como objeto histórico que poético propriamente dito. Boa parte da produção do concretismo serve como exemplo desses bebês natimortos. Se você produz uma arte que depende da tecnologia, está sujeito torná-la obsoleta.
Ainda assim, nessa relação, as possibilidades para a linguagem não acabam mais, podemos trabalhar tanto com a inteligência da solução quanto com a solução propriamente dita. Podemos fazer poemas a partir do Google, como o tumblr do Google Poetics e a Angélica Freitas. Podemos fazer shitty poetryno Reddit. Podemos fazer caligramas e poemóbiles. Podemos intervir na sociedade e na História em tempo real pelo celular, assim como, cada vez mais, a sociedade e a História podem intervir em nós.
O poema utópico de Mallarmé se constelou na internet. E dele vêm os memes da Gretchen ou que elegem presidentes. E enquanto nossos egos flutuam na verborragia algorítmica das redes sociais, nossa mediocridade não dá conta da tecnologia à qual temos acesso. A linguagem pode ser um caminho para lidar com os riscos que o avanço tecnológico apresenta à nossa liberdade, já tão oprimida, de pensar e agir, mas ainda terá que se desenvolver muito para quando tivermos que lidar com drones autônomos contando nossos passos.
Nesse ponto, não estamos muito diferentes de uma colmeia ou de um formigueiro. Não deixamos de ser rebanho, seja de maneira explícita ou sutil, pela imposição ou por vontade própria. Nesse pântano digital, o entretenimento dominou a arte, a celebridade dominou o artista. A tecnologia transforma os meios de controle, a arte busca formas de resistir. Daí a utilidade que uma pode ter para a outra.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu me proponho a algo que toma muito tempo, deixa com a cabeça cansada de tanto pensar, raramente dá algum retorno financeiro significativo e hoje em dia pode fazer até com que eu seja ridicularizado. Faço isso justamente para dar vazão a uma natureza criativa. Se precisasse cultivar hábitos para me manter criativo, provavelmente estaria fazendo outra coisa no lugar da literatura.
Com relação às ideias, não sei bem de onde elas vêm. Acho que você quer dizer, como elas se configuram na minha cabeça. Muitas vezes elas vêm como um verso, uma sensação, uma estrutura, uma imagem, uma cena, um cheiro, uma memória, uma palavra, uma persona, um fato, uma experiência… A gente nomeia as coisas para compreendê-las. É como se, para pensar o mundo, tivesse de descrevê-lo em um monólogo/diálogo interior; como se, para pensar a vida, tivesse de narrá-la a mim mesmo. Assim, tudo é potência para a criação literária. É justamente essa a graça da coisa toda.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que a principal mudança ao longo dessas quase três décadas foi a contínua revisão das prioridades. A vida custa. Se pudesse voltar atrás, meu eu do futuro não teria muito o que dizer e, mesmo que tivesse, o do passado provavelmente não daria ouvidos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de continuar escrevendo livros que eu gostaria de ler e ainda não existem.
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Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Quando se fala em primeira ou última frase, parece que a escrita acontece sempre de forma linear e sucessiva, e comigo não necessariamente é assim. De qualquer maneira, tenho mais dificuldade em terminar que começar um texto. Com relação à primeira pergunta, já experimentei começar tanto com ou sem um plano prévio, mas nunca dei meu texto como pronto sem um trabalho de elaboração, edição, maturação, revisão.
Mas o buraco desse problema que você coloca fica mais embaixo e vem antes da poesia que da prosa. Lá no meio do século passado, João Cabral falava em duas linhas de poetas, numa configuração que deve ter vindo mais ou menos do Romantismo em diante; uma para aqueles que se impõem a poesia, outra para os quais a poesia se impõe. Inspiração – palavra que se tornou péssima, como bem lembrou Paulo Henriques Britto – e trabalho da arte. A gente podia viver, como tem acadêmico que vive até hoje, em função desses antagonismos. Mas honestamente isso é mais tema de história literária que de literatura propriamente dita. Aquela coisa de um movimento negar o anterior para se afirmar.
No mais, falando da sua pergunta especificamente, pra mim depende do caso, depende do que estou escrevendo. Falei só de poesia, a linguagem prosaica é melhor que a poética em comunicar, mas tem coisas que só esta consegue fazer. E isso nem sempre dá pra planejar. Agora, como chegar a isso, pode ser por algo que simplesmente surge e se dá pronto de presente por meio da sua experiência da vida ou pode ser pelo suor, geralmente ambos. Em alguns momentos estamos assim, em outros, assado. Todos os casos podem acabar em fracasso.
No meu, não há escrita que se imponha sem trabalho, seja prévio, concomitante e/ou posterior. O que almejo é que a técnica esteja de tal forma assimilada, que eu consiga, idealmente na maioria das vezes, “fluir naturalmente”, quando “inspiração” e “transpiração” estão de tal forma impregnadas uma na outra, que a escrita fica mais próxima de conceitos como oralidade e performance do que desse jogo de oposições. É quando a técnica abre espaço para o improviso. Você vê isso quando, depois de todo o processo, o manuscrito está lá, intacto.
No fim das contas, ambas compõem uma única coisa – que é o que de fato importa – e não existem em separado. Essas distinções, na escrita propriamente dita, não existem sozinhas nem nunca existiram. O lance dos dados nunca abole o acaso.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Comigo são sempre vários projetos e leituras acontecendo ao mesmo tempo. Amo a escrita, amo o pesquisa, amo meu emprego e tento conciliar isso com minha existência na esperança de que não fique só na subsistência. Então, sim, rotina e planejamento ajudam a manter o ritmo, mas também podem deixar você louco, não à toa esta quarentena está sendo um enorme teste psicológico e emocional para todos nós.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Lembro que meus primeiros poemas eram de amor e dor de cotovelo. Mas como comecei a escrever não é a mesma história de como encontrei e me apaixonei pela Musa. Quando comecei a escrever poemas, não sabia o que era poesia, e fazia aquilo mais para dar vazão a sentimentos e sensações que eu estava começando a descobrir.
Desde que me lembro, já tinha muita curiosidade e medo em relação à morte. Eu morria de medo de morrer. Muita gente teme o estar morrendo e não se importa com o estar morto. Comigo era o contrário. O que me tirava o sono era tentar me conceber não existindo – o que é obviamente impossível, pois não há o que conceber se não se existe – e não conseguir.
Eu imaginava tudo aquilo que existia dentro de mim, meu pensamento, meus sentidos, minhas memórias, simplesmente não existindo e entrava em pânico com minha imaginação. Eu era uma criança e quebrava a cabeça com isso. Os adultos eram ainda piores em dar respostas assim. Então fui procurar nos livros e me apaixonei pela leitura – foi quando comecei a escrever meus poeminhas de amor.
O primeiro lugar onde busquei minha resposta foi a Bíblia. E quando você dá a Bíblia na mão de uma criança, se ela lê com atenção – eu estava procurando meu sentido da vida – vai se deparar com um universo arrebatador. Aqueles livros levaram minha curiosidade e minha fixação pelo sobrenatural às alturas (pra não perder o trocadilho), mas não me deram as respostas que eu queria, apesar de terem sido umas das principais influências, sobretudo da minha paixão pelo terror.
O gosto pelo terror veio dessa fixação pelo sobrenatural e me atrai muito essa possibilidade que o gênero dá de lidar com o medo e com outras amarras que temos dentro de nós. Foi pelo sobrenatural que procurei conhecer diferentes religiões também. Sem respostas ainda, parti para outras fontes, como a filosofia. Assim como era muito novo quando li a Bíblia, era também quando li Platão, Kant, Sartre, Camus etc. e é claro que não encontrei neles também o que buscava e nem entendia muita coisa do que lia na maioria dos casos. De qualquer forma, todos esses escritos e estilos foram se misturando em minha própria escrita.
Não li Nietzsche nessa época. Só quando estava perto dos 18. Eu tinha medo de que a resposta que eu encontrasse ali fosse de que nada faz sentido mesmo e me fizesse desistir de tudo em que eu acreditava – e não tava muito errado, não, nem muito distante do amor fati. Conhecendo já minha índole deslumbrada e impulsiva, achei prudente esperar mais um pouco pra desistir das minhas principais crenças. Talvez tenha sido medo mesmo. Afinal, “depois de tal conhecimento, como voltar atrás?” Eu não tinha aprendido ainda que estamos o tempo todo deixando de existir e dando lugar a alguém diferente.
Se a filosofia e a religião, ao invés de me levar a alguma verdade sobre a morte, me distanciaram ainda mais, restou buscar na poesia – que eu havia subestimado até então como uma forma séria e válida de conhecimento. Dela derivou minha escritura como um gesto demiúrgico, como forma de amar e experimentar. Então é isso, na origem das minhas relações com a escrita, você encontra a Morte, a velha fonte do nosso mito individual.
Em suma, eu comecei a escrever poemas bem antes de conhecer a poesia, e é ela que motiva minha escrita.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Esse papo de originalidade, autenticidade, também é herança da literatura moderna. Afinal, até que ponto meu umbigo é tão interessante assim pro mundo? Não serviria nem mais pra situar em alguma historieta literária.
Minha preocupação está em desenvolver a linguagem no sentido de sua experiência com o real, com o limite de realização pelo verbo. “E do Verbo fez-se carne.” Poesia é a realidade posta em linguagem. A linguagem poética não é como a prosaica, feita para comunicar, mas uma experiência da linguagem em determinado veículo ou instrumento.
Por isso falo mais da poesia, pois minha base vem daí e também entendo que já estou incluindo para mim outras formas de expressão e comunicação por meio da linguagem que não visam necessariamente a transitar nesse limite entre sujeito e objeto.
“Sentido” é uma palavra linda, que no inglês ia precisar de “sense” e “meaning” juntas para traduzir. O leitor ‘convencional’ espera encontrar as condições ideais de leitura e apreensão. Quando se depara com um livro, quer respostas, quer uma verdade. Eu sei muito bem, passei boa parte da minha vida procurando as respostas nos livros. E aprendi que os que te oferecem isso estão, na verdade, te iludindo, vivendo às custas da tua carência e da tua insegurança. E não interessa para eles que o leitor saia desse estado, que ele pense, sinta, viva por conta própria.
O leitor apegado à literatura convencional não tende a imaginar que ele próprio possa participar ativamente da construção do sentido. E isso é algo que acontece mais frequentemente com os adultos. As crianças são lúdicas por natureza, estão o tempo todo brincando, isto é, imaginando e experimentando aquilo que imaginam como uma forma da realidade; construindo o tempo todo suas narrativas e seu sentido.
Quanto às minhas influências literárias, boa parte dela não é literária, mas falando especificamente das que são, deu pra ver que a Bíblia foi uma delas; foi Jesus quem me apresentou ao anarquismo. Tive muito do socratismo também (e do catolicismo e do espiritismo), em prol do qual relutei tanto em ler Nietzsche. Nietzsche. Como poeta foi um grande pensador.
Na infância, as primeiras leituras espontâneas que me marcaram o estilo até hoje foram Ana Maria Machado, Ziraldo, Quintana, a Coleção Vagalume. Na adolescência, vieram os prosadores e poetas da escola, sobretudo os realistas e os modernistas de Portugal e do Brasil. Machado de Assis, Eça, que eu odiava e a quem tanto devo, Veríssimo. Pessoa, Drummond, João Cabral, Manoel. Caeiro. Depois os clássicos greco-latinos, mais a mitologia que a poesia – essa eu ainda tento aprender.
Só depois fui começar a ir atrás de contemporâneos, estrangeiros, principalmente em inglês, único idioma alheio no qual eu conseguia ler até então. Na prosa, vieram Agatha Christie e outros autores de língua inglesa da biblioteca de uma ótima professora de inglês que tive durante aquela época, o nome dela é Beatrice Allain.
Também tive a sorte de nascer e viver até os 18 anos em uma “cidade universitária”, que tinha um bom sebo e bibliotecas. E fiquei um tempo viciado em Allan Kardec, lia e relia tudo incansavelmente até ver que não era ali também que eu ia saciar minha sede. Ainda assim, as traduções dele para o português moldaram a minha retórica pré-vestibular, que tanto enchia de orgulho meus professores de redação do colegial.
Também li muito Stephen King, Asimov, Lovecraft. Quadrinhos, Turma da Mônica, Tio Patinhas, Marvel, DC, depois os da Vertigo, Sandman principalmente, Hellblazer, Neil Gaiman, Alan Moore, Frank Miller, jornais, revistas, zines, álbuns de figurinhas e o que mais caísse nas mãos. Muito pé na rua, videogame, música, TV e cinema, muitos filmes de suspense, ficção científica, terror e horror. Kafka, Kafka e Kafka.
Antigamente, eu brincava – não sem alguma razão – que minhas principais influências eram Jesus e Jim Morrison, principalmente pelo que ambos têm em comum. Enfim, que eu me lembre agora, essas estão entre as leituras mais influentes na minha primeira vivência literária, por assim dizer. Depois vieram Raduan e outros, talvez até mais próximos da minha escrita atual.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Zen e a arte da manutenção das motocicletas, O apanhador no campo de centeio e Lavoura arcaica. Sim, praticamente só falei de poesia e indiquei três livros de prosa. Leia os livros.