Fábio Casemiro é poeta, pós-doutorando em Letras pela UNIFESP.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Neste mundo pandêmico, começo minhas manhãs geralmente às 9hs, sempre com uma xicara de café forte sem açúcar e ouvindo podcasts e vídeos sobre política (um café da manhã sempre trágico)…rs.
Daí eu vou ou para o computador para trabalhar ou para a cadeira do quintal para ler: ambos são “trabalho”, mas quando começo pela leitura é sempre mais lírico (e, dependendo da leitura, trágico também…rs).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando falamos sobre escrita, tratamos de coisas e métodos muito diferentes prá mim: tem a escrita acadêmica, a pesquisa, que é quando eu tenho um deadline prá cumprir… Aí o processo é mais rígido: acordo mais cedo (umas 7hs) vou pro computador e me obrigo a escrever ao menos quatro páginas (sempre medindo o tempo e fazendo alguns intervalos prá alongamentos e exercícios físicos rápidos). Como sei que vou refazer e refazer algumas vezes, procuro começar sem freios: o lance é soltar a mão e deixar sair – escrever é reescrever, muita coisa será limada dali depois.
Agora tem outra escrita prá mim que é a escrita literária (e geralmente escrevo poemas): aí é o caos. Total. Muitas vezes uma música, um aroma, uma métrica fica na cabeça gritando lá dentro e o que preciso fazer é um ritual de exorcismo: aí escreve, corta, adiciona, torce, corrige, corrige, questiona, duvida, sofre. Estaria pronto mas tudo de novo e mais um pouco até que o poema pareça ser o que ele não é: espontâneo…rs. Algumas raras vezes é espontâneo mesmo, mas é bem raro.
No poema o que rola comigo é jogo, luta entre a necessidade de se comunicar com eficiência e o impulso quase irrefreável do som que grita na minha orelha, as imagens que explodem na minha cara, tudo juntado com o grande videoclipe do rizoma da vida: não existe tempo nem espaço na composição: essas coisas se formam na forma do poema. Eu ligo música, leio trechos de outros livros como se fosse possível encontrar a palavra que eu sonho exatamente em algum lugar. Não acredito que eu escreva texto pronto, acredito em texto que a gente não aguenta mais e para de escrever.
Quando desovo um livro, fico me sentindo sozinho e geralmente demoro voltar a escrever e fico escrevendo em meus caderninhos rascunhos e rascunhos e rascunhos que, em uma determinada época de colheita, podem ser resgatados… ou não.
Penso nos poemas em livros. Sou louco por livros (em prosa também, claro). Não publico muito poema solto em revistas ou antologias porque não acho que o (meu) poema sozinho é capaz de dizer por si mesmo, ele precisa de outros prá conversar: cachorro de rua, anda em matilha prá atacar o ciclista (que ainda assim teima em passar na rua dos cães). O que pode um poema? Geralmente nada. Já uma obra poética pode ser um soco no estômago do tempo. Consigo? Não sei. Não sou o dono do livro: ele é grande, ele que se vire.
…Mas como deixar poema na gaveta é sacanagem, deixo muita coisa nos meus blogs Os sons de modorra (hoje é mais um arquivo lírico prá mim)e o Pamonha Mecânica & Creme de Papaya com Haxixe, que se tornou um lugar de maior experimentação: ando de namoro com a prosa (prosa e verso hoje vêm soando prá mim, no final das contas, como um limite desnecessário).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sobre as travas da escrita, acho que elas fazem parte. Vivia achando que iria parar de escrever, que a escrita iria me abandonar… Besteira. Não sei ser escritor o tempo todo e invariavelmente acho que a escrita precisa de vida sendo vivida, se não ela soa frouxa, isso tanto a escrita acadêmica quanto a literária. Agora deadline é deadline…rs …Tem que cumprir e dane-se!! Prá isso que o capeta inventou madrugada e os deuses, a cafeína…rs
Sobre a procrastinação, acho que a gente deve uma grande desculpa à ela. A gente procrastina, claro! E a procrastinação, acho que é a necessidade de absoluto que os simbolistas tanto falavam… Trabalhar não é da nossa natureza, criar é: quando a gente coloca tudo na chave do trabalho, nossa criatividade resiste em busca da desprodução da inutilidade. Essa força bonita que nos leva à inutilidade essencial da vida, ela surge na lírica forma de procrastinação. Se a gente escuta a procrastinação, ela diz prá gente que o caminho é outro e a gente pode aprender com os descaminhos das coisas. …Mas tem as deadline, né?…rs… Prás contradições da vida, voltamos à receita: os deuses do café nas madrugadas do capiroto …hahahaha.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos muitas vezes. Não sei quantas. Na verdade revisão não termina nunca. E a escrita é uma desculpa que a gente inventou para fazer a grande atividade que nos completa: a correção infinita. Daí que, como disse, não acredito em texto pronto. Acho que era o poeta Paul Valéry que dizia que “uma obra não se termina, se abandona”… Na prática é isso, não existe fim, existe prazo. Daí é que entram os amigos: abuso muito deles e boto prá revisar sempre que eles pacientemente aceitam (tenho amigos muito educados e pacientes, graças aos deuses…rs).
Mas com os poemas, não: vou escrevendo e reescrevendo eu mesmo. Geralmente mostro prá minha esposa prá que ela leia em voz alta porque fico curioso prá saber como aquilo soa em outra voz que não a minha. Penso que a palavra escrita é prá mim uma extensão da voz, um mero registro gráfico das vozes: só leio poemas em voz alta e penso que a melhor literatura (a que mais gosto) é aquela que pula dos olhos para os ouvidos, ora como prosa melodiosa, ora como musicalidade dos versos (e vice-verso).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quanto à tecnologia, uso diferentes ferramentas, hoje. Geralmente minhas ideias eu as compilo no aplicativo One Noteno celular e, se for poema, gosto de passar para o papel para dar um tratamento mais íntimo: sou meio William Blake na escrita lírica…rs, construo meus cadernos à mão (ou com grampeador ou com costura) e trabalho os poemas, muitas vezes já em forma de livro, perguntando pro texto escrito qual será o novo “capítulo”. Meu livro que sairá em breve Canções à lápis para um homem morto foi escrito assim: coloquei prá tocar a trilha sonora que o Neil Young fez pro filme do Jim Jarmusch (Dead Man), construí um caderno novo, pequeno, com um lápis acoplado na capa e corria pela vida de caderninho na mochila, sempre pronto prá escrever ou reescrever os poemas. Minha esposa me ajudou a transcrever para o computador e enviar para a editora… Logo, logo sai pela Editora Patuá.
Mas os textos acadêmicos eu produzo no computador. Sempre no escritório, onde hoje dou minhas aulas e faço minhas gravações para o canal Rádio Palavra no You Tube. Venho testando a ferramenta “microfone” do google docs: é legal porque dá prá transferir a voz para o documento diretamente. É uma ferramenta interessante. Acho que facilita muito o fichamento de textos e a confecção de anotações e reflexões instantâneas que, depois de um bom tratamento de correção, podem se tornar textos publicáveis… Estamos em teste…rs
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias costumam vir do cotidiano, das contradições políticas, sociais e culturais do hoje. Da miséria humana… nada de novo no front, né? Mas quando vem na veia da poesia, vem intenso e me sai da boca num susto, de forma que preciso anotar a ideia e deixar decantando… Talvez eu volte prá ela, talvez nunca mais. Já na escrita que venho denominando aqui acadêmica, venho buscando pensar historicamente como a literatura brasileira pensou e ainda pensa os seres de natureza. O achincalhe ambiental que estamos sofrendo hoje é algo que grita demais na minha cabeça: é curioso que um país que historicamente se construiu sob o signo da “exuberância da natureza” tenha, ao longo de toda sua história, atacado tão intensamente o meio ambiente que o constitui. Recentemente, essa violência atingiu seu grau máximo: liberto de sua metrópole, o país acelera rumo à colonização predatória de si mesmo. Costumo dizer que o Brasil se tornou uma doença auto-imune: obviamente toda essa destruição ecoa primeiramente nas populações periféricas e nos povos indígenas…
Daí que isso me motivou a pensar sobre as representações de natureza na literatura brasileira, ou seja, venho tentando delimitar/construir aquilo que podemos chamar de “uma história do telurismo na literatura brasileira”. Grosso modo, venho tentando compreender como diferentes obras, de diferentes “estilos” literários responderam (e respondem) aos seres de natureza do/no Brasil. Mais que isso, em que momento de nossa literatura a natureza ganha protagonismo, ganha voz própria.
Quando buscamos compreender as relações entre natureza e sociedade na literatura brasileira, a cultura popular e principalmente a literatura indígena (cada vez mais pujante) se tornam faces incontornáveis de toda essa questão. Essa é, basicamente, a ideia que venho trabalhando na minha pesquisa de pós-doutorado.
Acho que na minha escrita de poesia, com essa minha pesquisa que estou desenvolvendo, a dimensão do telúrico, do enraizamento, do etnológico, tudo isso também começa a ecoar mais intensamente. As coisas vem se tornando mais interessantes prá mim, em termos de composição: acho que venho encontrando um lugar de onde olhar o mundo. Poesia e escrita acadêmica se retroalimentam, geram confusões e explosões de ideias: quando consigo tirar clareza e precisão delas, vira estudo sistematizado, vira produção acadêmica; quando o caos é quem ilumina, porque não se trata de conhecer, mas de inventar o mundo, aí é outro estudo, é o estudo/produção da poesia. Guimarães Rosa diria que não tem diabo, tem é travessia… deve ser isso daí.
Não sei se sou criativo. Acho que o que eu escrevo (tanto na pesquisa acadêmica quanto na produção literária) é necessariamente uma resposta direta ao mundo que me rodeia. Se sou intenso, convulsivo, combativo e indignado é porque sou bombardeado por um mundo violento, autoritário, excludente, intolerante, hipócrita e ignorante. Como não sei um jeito de viver no mundo, eu escrevo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comecei a escrever poemas, eu fui muito acolhido por uma grande professora aqui da minha cidade (Piracicaba-SP), a professora Cimara. Ela me estimulou demais e acabou por me ajudar a escrever um livro que, infelizmente, nunca publiquei. Se intitulava O Andarilho contra as árvores de areia. Era um livro adolescente e os livros adolescentes são, no máximo, um pouco fofos…rs. Mas eu acho que o que eu quero hoje já estava ali: sou ainda muito quixotesco em tudo que faço, entro em encrencas com a mesma naturalidade com que saio… Aprendi que a gente tem que conviver com o que a gente é porque a gente é só tudo o que tem. Daí tudo fica fácil: a gente vai treinando rir de si mesmo e vai sempre cultivando baixar as expectativas. Hoje eu não estou em busca da escrita da grande obra literária. A gente tem que sair dessa armadilha romântica ególatra de que o mundo precisa de grandes nomes, grandes autores, grandes mestres, etc. Quando a gente começa se expressar com mais eficiência (ainda que o alvo da eficiência possa ser o caos) a gente começa a perceber que o mundo é feito de um monte de olhares e que nossa contribuição pequena, teimosa, cotidiana e perene, vale mais que essa síndrome de Avengers…rs. Existe uns Castro Alves, uns Augusto dos Anjos, uns Guimarães Rosa, uns Raduan Nassar… Mas se eu superar as minhas tontices no mundo e acertar mais a minha escrita, já tá de bom tamanho…rs.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu acredito em livros. Gosto muito de escrever poemas. Livro bom é sempre o próximo (mas ainda tô curtindo as núpcias com o Canções a lápis…). Mas acho que alguns poetas hoje socaram o pé no lirismo e se esqueceram do épico. O instagram é lírico na medida que é o império do self… O mundo tá miticamente instagrâmico. Todo mundo quer short stories… Penso que livro bom pesa. Livro pesado é aquele que a gente lê enquanto ele lê a gente.
Acho que a poesia precisa também narrar. Buscar uma organicidade, uma totalidade dramática que crie mundos. Penso que falta ao poeta se colocar como ficcionista. Penso que há que se propor uma poesia propriamente ficcional. Até agora, eu não consegui fazer isso completamente. Mas estou disposto a morrer tentando. (Acho que literatura é isso: é aquilo que a gente faz enquanto não morre…rs).