Fabiano Calixto é poeta, editor da Corsário-Satã, doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Faz um tempinho, voltei a tocar guitarra. Com isso, começo os dias, quase todos os dias, fazendo um som – desenferrujando os nós dos dedos. Estudos, riffs in bloom, primavera nos dentes, espaços sonoros habitáveis. Voltar a tocar guitarra tem me feito muito bem. Tenho feito uns barulhos com uns amigos. Um dia rola algo desses rolés.
Depois de algum barulho, parto para outros trabalhos. Preparar cursos possíveis e impossíveis, organizar as ideias, alimentar o diabo da garrafa, ler, escrever, revisar, preparar, ler, escrever, ler, brincar com os gatos, ler, traduzir, ler, ler. Sempre estou envolvido em algum trabalho. Não tem jeito. Nós, trabalhadores brasileiros, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, acordamos todos os dias tendo que pagar contas num bizarro país ao mesmo tempo rico e miserável. (Ainda que você tente levar uma vida simples, frugal, os boletos brotam de todos os lugares possíveis e imagináveis, o destino de um boleto jamais falha – há aqueles que acreditam convictamente que, mesmo após o respiro final do derradeiro humano sobre a face da Terra, os boletos continuarão sua saga, surgindo do nada, por geração espontânea). A rotina, então, se torna bifronte: a criação, movimento de saúde existencial, abertura mágica para conexões que alimentam e abrem caminhos, delícia filosófica, malícia patafísica; e o trabalho, como sustento da vida prosaica.
É incessante e essencial o enfrentamento da precarização e da cretinização da vida – a existência criativa contra a vida de merda que escolheram e querem que a gente viva (submissos e servis) nesse país estúpido lapidado por uma sociedade doente num mundo quase morto e destroçado, que ninguém mais parece dar a menor bola, que ninguém parece querer, à vera, recuperar, um mundo, enfim, turbocapitalista, obsceno e brutal, cujo cadáver habitamos. Contra a mortificação da vida: um sorriso, um gesto, uma mão a alguém que precise, uma canção dos Beatles, um assovio debaixo de chuva em pleno pôr do sol, um molotovnum banco (Viva Chile!), um passeio de mão dada com quem amamos, uma ação planetária de distribuição de renda através de certeiros golpes hackersno sistema financeiro, um samba do Cartola, aquela imensa beleza cuja textura nos compele com a cor de seus continentes restituindo-nos a mortee o semprecada vez que respira.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As condições de escrita são sempre muito precárias. Não é fácil achar um espaço de tempo ideal para escrever poesia. Então, vou mordendo o que posso. Inúmeras vezes escrevo poemas na cuca pelo meio da rua que logo são levados pelo mormaço asfáltico de um dia severo de verão ou por uma distração qualquer da vida ordinária. É parecido com escrever poemas na água.
Quer dizer, no meio do redemunho, na areia da praia de peste, é necessário abrir uma brecha, nem que seja no muque, rasgar uma fenda de tempo (peixeirada no bucho de Cronos), para poder escrever. É busca sem trégua por saúde. Aí, no meio dos escombros, pego as anotações e rascunhos, paro, (re)leio e (re)escrevo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A todo instante estou anotando. Porém, a escrita do poema exige de mim outro tipo de concentração, totalmente oposta à das anotações corridas do dia a dia. Então, geralmente, escrevo poesia em períodos concentrados, uma ou duas vezes por mês, mais ou menos, paro tudo e tiro um tempo para escrever poesia, tento organizar as anotações. Justamente porque, como disse, as condições de escrita são péssimas.
Sempre há, também, períodos longos, meses e meses, onde não escrevo nada.
Quando estou terminando um livro, como é o caso agora, que finalizo Fliperama, aí o ritmo de escrita se torna mais intenso. Retomo os poemas com mais frequência, mudo, retoco, refaço, jogo fora etc. Como voltei a fazer som, também separo um tempinho para escrever canções e letras para melodias minhas ou de parceiros. Não tenho meta de escrita diária – graças aos deuses! Minha única meta diária é viver.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo, para mim, é o grande barato de tudo. É a parte que mais alegra, que mais sangra. Nessa parte do caminho, leio muito, ouço muitos discos, vejo filmes, saio com meus amigos, dou meus rolés pelas ruas das quebradas gerais deste mundo louco. Compartilho, dialogo. Escrevo, experimento. Tateando a vida, curtindo. Sobretudo leio e ouço muitos discos. A gente ouve, sei lá, uma canção do Caetano ou do Lennon ou lê um poema do João Cabral ou da Sophia de Mello Breyner Andresen e logo pensa: quero que isso aqui dure a eternidade toda (e, de alguma maneira, dura), que todos um dia tenham a chance de ouvir, de ler, de chapar com isso. É um alumbramento total. Estado de mágica. Saúde. A gente fica meio assombrado, querendo que a humanidade dure para sempre só por causa daquilo.
Enfim. Desse modo, vou trabalhando o texto durante algum tempo. Penso o que quero do poema (e do livro), como quero que a coisa toda funcione, que tipo de música, timbre, afinação, respiração e tal.
Anoto muito, como disse. Trabalho a partir dessas anotações, o processo se cimenta aí. Como disse o Décio: “um poema é difícil”. Também acho. Continuemos a busca.
Como você lida com as travas da escrita, com a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Estou há mais de 25 anos escrevendo poesia, vivendo essa cena. A ansiedade foi grande no início, na juventude, lugar onde ainda estamos querendo tudo de uma vez e tentando encontrar os nossos caminhos. Depois, as coisas vão se assentando. Eu escrevo pouco. Meu último livro, o Nominata morfina, é de 2014. O anterior, Sanguínea, de 2007. Meu novo livro sai ano que vem. São espaços longos. Quer dizer, não tenho travas, tenho períodos longos de decantação (nos dois sentidos dessa palavra linda, que canta na garganta) e silêncio. E acho ótimo. Faz um puta bem, permite tempo para a leitura dos grandes mestres, o que, afinal, é muito mais importante do que escrever.
Também não exijo nada de mim além do que posso dar. Não estou preocupado em agradar este ou aquele– o crítico ou a academia, o público ou mesmo a página em branco. Minha atenção está voltada ao meu trabalho, aos meus projetos de escrita.
A vida é meu único projeto longo, a minha poesia, hardcore from the heart, acompanha o caminho. Resistência underground. Sigo com os meus.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos o tempo todo. Muitas vezes mesmo depois de publicados – reescrevi muitos poemas antigos para antologias recentes. Mexo, remexo, reremexo, mil vezes – é um remelexo sem fim no poema. A utopia de fazer habitar, no verso, uma pulsação sanguínea de vida, uma melodia linda, o português mestiço, tropical e sensual das ruas, do povo – aquele que “Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil” (Viva Manuel Bandeira!). Porque, sabemos, “o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso” (Viva Haroldo de Campos!). Então, sim, reviso insistentemente meus textos. Gosto desse jogo.
Sobre mostrar meus trabalhos antes de publicá-los: sim, sempre. Gosto do diálogo, da troca e do atrito – “Gosto de atrito, é a base do sexo”, disse Caetano faz um tempinho em algum lugar. Mostro primeiro e sempre, para a Natália Agra, minha companheira de aventura intelectual e existencial. Confio muito em sua leitura. (A Natália é uma poeta maravilhosa, aliás, e muito criativa, que vem fazendo seus trabalhos quietinha, na dela; potência pura, ela e a poesia dela). Depois, mostro para alguns amigos com quem converso sobre poesia, outros poetas bons de bola. Acho esse diálogo essencial demais e enriquece muito o trabalho, pois nos torna menos donos de certezas ilusórias.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Bem, sou da época da máquina de escrever – guardei comigo aquela timbragem de tempo. Agora, o computador (o editor de texto, mais especificamente) é uma mão na roda para quem escreve, não há a menor dúvida. Facilita muito a nossa vida. Agiliza rolés.
Escrevo bastante à mão ainda. Não tanto quanto antes, é verdade. Depois que o poema cria um corpo no papel, parto para o computador para tentar dar alguma alma, soprar uma brisinha em suas narinas, realizar os acabamentos finais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm do contato com as coisas da vida – “meu delírio é a experiência com coisas reais” (Saravá, Belchior!). Tenho cá minhas exigências, “minha sede não é qualquer copo d’água que mata” (Salve, Waly Salomão!) e tal. Vou vivendo o poema junto com a vida “que é mãe inesgotável de processos, formas e estruturas” (Evoé, Leminski!). Eu realmente gosto disso.
Então, o mote pode ser absolutamente qualquer coisa (um verso muito antigo, uma fala de história em quadrinho, uma cena de um filme, um verso muito recente, o trecho de uma bula de remédio, uma pétala de tulipa roxa, undiú, o troco de conversa no ônibus, a chuva etc.).
O conjunto de hábitos pra me manter criativo é o de sempre: olho vivo e faro fino. Leituras. Foi assim que aprendi com os mestres – que nos ensinaram o caminho das fontes de água límpida. Quer dizer, estar sempre na companhia dos grandes poetas que é onde está todo o manancial, que é onde mora a biblioteca do futuro.
Interesso-me deveras pelo espírito barroco, anárquico, macumbeiro, pela colorido de fruta aberta com as mãos e pela resistência viva, sanguínea, da América Latina. Seus simbolismos luminosos, siderados. A defesa incessante da alegria, a busca louca pela felicidade. Carne de caju existencial, licor de jenipapo. Luiz Gama, Cruz e Sousa, Lima Barreto. Ninguém vai melhorar o gosto da água. A preguiça é resistência também, caso queira, não se acanhe. Uma folha de erva não é menos que a jornada das estrelas. Ana Martins Marques, Natália Agra, Rodrigo Lobo Damasceno. Eu não tenho nada a ver com a literatura brasileira contemporânea – no geral, pra onde ela vai, sigo o caminho contrário. Meu barato é outro. O que me interessa é a vibração potente do caos, o alumbramento dos processos cognitivos com seus relâmpagos infinitos e tempestades de novos começos, novos baratos e descobertas. Undiús. Transas. Roteiros. Poéticas. Aliás, viva a poesia nitroglicerínica brasileira contemporânea! (Que tem muita poesia da prateleira de cima sendo feita aqui e agora). Viva a Resistência Underground! Arroz, feijão, ganja, anarquia, saúde e amor. Lenora de Barros, Josely Vianna Baptista, Jocy de Oliveira. Um saxofonista do absurdo, ainda quem em périplos por tristes trópicos, não se inscreve em nenhuma teoria que não seja radicalmente prática, blowin’ in the wind, na alma dos criminosos, dos amantes desesperados, dos que desejam tudo ao mesmo tempo, criando dissonâncias fascinantes, ternas e alucinadas – lu-mi-no-si-da-de –. Sobretudo, um saxofonista do absurdo não embarca em papo de aranha. Evoé, Baco! Saravá, Ogum! A poesia é foda!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tudo. Absolutamente tudo. As coisas mudam o tempo todo, não é diferente com a escrita e seus processos. O modo de compor dos anos 90 não é, nem de longe, o mesmo de hoje. Os anseios e expectativas são outros. O corpo é outro. O ânimo é outro. O campo é outro. O mundo é outro. No começo, a insegurança é brutal, as ilusões são muitas e as decepções, inúmeras. Depois, a gente cria casca grossa, aprende como é que funcionam as engrenagens. Entrei e vasculhei esse sistema, esse cirquinho espurco. Claro que, notando como fedia, me mandei e fui criando meus circuitos de criação, curtição, reflexão e diálogo. Outros rolés.
Tem muita gente que não presta pra nada mas é capaz de tudo no meio artístico atual. São figuras como aquelas que o Lima Barreto abominava pois eram “inimigos que dizem que o que nós fazemos não presta, porque estamos andando com roupa sovada e colarinho sujo”. E eu também abomino essa gente.
Então, hoje, apenas faço meu trabalho da melhor maneira possível. Afino os instrumentos, mantenho a dignidade. Não me interessa o sucesso que encanta esse interminável rebanho tosco de artinstas loucos por fama, seguidores do dinheiro. É a era dos oportunistas, dos histriões, do pavonismo dos sorbonícolas afetados, do espírito-miojo das altas performances de rede social. Eu sinceramente prefiro outras coisas. Tenho a atenção e curiosidade voltadas para outros lances.
Minha atenção vai, por exemplo, ao trabalho de artistas como Don L, o rapper cearense que mete essa em um de seus sons: “Aquela fé”: “Tem dias que eu acho tudo inútil / Nossa melhor versão é puro ego / Fútil / Uma luta contra o mundo / Pra fazer parte do mundo que ‘cê luta contra”. Didático.
Agora, se eu pudesse voltar aos meus primeiros textos, certamente diria: calma, jovem!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos engatilhados. As ideias fervilham, mas o processo, sabemos, é lento. Mas, das coisas mais encaminhadas, gostaria de fazer os arranjos das canções do Gabiru Attack, minha banda de rock experimental, e gravar um EP. Quero começar a escrever uma história do heavy metal (com o recorte 1970-1997) – uma pesquisa antiga e em andamento lento que venho fazendo por puro prazer. Um livro sobre contrapoéticas/contraculturas no século XX – desdobramento de minhas pesquisas de mestrado e doutorado. Um livro de receitas culinárias.
Vou aproveitar o espaço para falar de alguns projetos que eu já comecei, que estão em andamento. Ano que vem, além de meu novo livro de poemas, o Fliperama, pretendo publicar um volume de tradução de diversos poemas que fui fazendo durante a vida. O livro se chamaMetal Pesadoe tem poemas de Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Laurie Anderson, Amiri Baraka, Tracy Chapman, Jim Morrison, Patti Smith, Bob Dylan, Adrienne Rich, John Lennon, Phil Lynott, Charles Bukowski, Benjamín Prado, Roberto Bolãno, Gonzalo Rojas, Heriberto Yépez, entre outros.
Além disso, planejo uma coleção de livros de ensaios numa parceria entre a Corsário-Satã, editora que dirijo com Natália Agra, e a treme~terra, editora capitaneada por Camila Hion e Rodrigo Lobo Damasceno. Em breve teremos maiores novidades.
O livro que gostaria de ler e que não existe? Qualquer coisa do Bolaño (a quem devemos um fígado) criada hoje, em 2019. Qualquer coisa: um poema, um conto, uma resposta a uma entrevista, uma linha perdida num guardanapo, um rabisco, uma gargalhada.