Fabiana Ferraz é escritora, leitora crítica e moderadora do Clube de Escrita Sorocaba.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meus dias começam cedo por conta da insônia e da ansiedade, então até há poucos meses eu ficava deitada na cama, remoendo acontecimentos passados, frustrações e pensamentos intrusos. Com a ajuda da terapia resolvi ressignificar os hábitos, hoje eu acordo cedo, tomo café, faço exercícios em casa e, às vezes, levo meu cachorro para passear e pegar um pouco de sol da manhã. Essas atitudes simples melhoraram o meu humor e meu ânimo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Prefiro o horário da manhã porque me sinto mais produtiva, o horário da tarde eu prefiro reservar para meus hobbies manuais, como o crochê. O artesanato me ajuda a focar, e sinto que é o mais próximo de uma meditação que eu consigo chegar. Conforme meus dedos vão entrelaçando as linhas eu me sinto mais leve, distante, como se as preocupações não pudessem me alcançar. Já houve momentos em que, durante o crochê, surgiu uma ideia, uma frase ou reflexão que precisei anotar para usar em um texto, por isso deixo um caderninho de anotações sempre por perto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu gostaria de ter uma resposta para essa pergunta, mas não tenho! Seria muito clichê ou coisa de “escritorazona” dizer que meu ritmo de escrita é caótico? Há períodos em que não consigo largar a história, penso nela, nos personagens, no que vai acontecer nos diálogos, e fico obcecada em alcançar o resultado final, então sim, já cheguei a ver o dia amanhecer pela janela do meu escritório escrevendo, por outro lado, há momentos em que consigo ser regrada a ponto de estabelecer metas diárias quantificadas em planilhas. O engraçado é que, no momento em que respondo a essa entrevista, não estou em nenhuma das fases acima, estou apenas preparando minha volta à escrita, pois nos últimos meses acabei dedicando meu tempo ao trabalho como leitora crítica.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se eu disser que é caótico vou soar repetitiva? Não importa, afinal meu processo se tornou algo caótico. Meu primeiro livro chama-se “Se Eu Morresse Amanhã” teve um processo de pesquisa bem complexo, porém ainda não tem data de lançamento em razão da pandemia a editora precisou se reorganizar e encontrar uma nova data. Como ele se passa no Rio de Janeiro na época dos grandes cassinos, eu acabei visitando a cidade de Petrópolis para conhecer o SESC Quitandinha (que já foi o maior cassino das Américas) e, para minha felicidade o local foi restaurado recentemente e o trabalho de manutenção é maravilhoso, o que me deu uma boa ideia de como era o lugar. Visitei as boates e teatros do Quitandinha, que ainda guardam muito da arquitetura original, então eu pude sentir um pouco como era ambientação da época, e o principal: conhecer fatos e fofocas de personagens famosos que se apresentaram naquelas palcos. Completei o lado sensorial da pesquisa ao buscar livros sobre a época de ouro do Rádio, com músicas e biografias de cantoras e outras personalidades. Acho que, por ser minha primeira narrativa longa, é o meu texto com a parte histórica mais robusta. Com todas essas informações em mãos fui moldando os personagens de acordo com essa “realidade”, afinal, em se tratando de narrativa, eu sempre penso primeiro nas pessoas: e se eu contasse a história dessa pessoa totalmente ambígua? Desde sua aparência, até sua moral difícil de definir? Como essa pessoa se veria diante das perdas? É aí que começo a desfiar o meu novelo, como se eu fosse puxando todos os acontecimentos de dentro dos próprios personagens.
Dessa visita a Petrópolis também trouxe a inspiração para meu conto “Engrenagens”, publicado pela Plutão Livros. Por ser uma história de ficção especulativa do gênero steampunk, eu quis brincar com as informações que adquiri no Museu Imperial de Petrópolis e com as influências das locomotivas que se encontram expostas por lá. Bom, “Engrenagens” não é uma história sobre trens ou Marias-Fumaça, mas muito do movimento e das peças desse tipo de maquinário estão descritas no conto.
Agora, “A Mulher e o Vento”, que foi finalista na categoria Narrativa Curta de Terror do Prêmio ABERST de 2020, o processo contou com a ajuda de uma viagem para o litoral norte de São Paulo que não deu certo. Como fiquei três dias dentro de uma casa de praia, chovendo sem parar, com o mar bravo e muita neblina, acho que junto com a maresia absorvi uma pegada gótica que eu nem sabia que possuía e, como o conto questiona o tempo todo o que é real ou imaginação, o texto captou essa atmosfera nebulosa sem uma necessidade de fazer uma pesquisa aprofundada.
Meus últimos textos, no entanto, tiveram processos bem diferentes, foi como se a escrita fosse parte da terapia, e não estão necessariamente presos a uma realidade ou gênero definido. A maioria dos personagens não tem rosto, nem um propósito definido, eles só estão colocados em situações inusitadas e lidando com os próprios medos e neuras, algo mais intimista que não consegui definir. Acho que é um processo de transição ou talvez amadurecimento, ainda não sei, talvez eu demore alguns anos para conseguir compreender.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com muita terapia. Eu gostaria de ter metade da confiança que meus amigos depositam em mim. Tenho dificuldades para receber e processar elogios, porque sempre fico esperando um “mas…” Quanto à ansiedade de trabalhar em projetos longos, ela acaba se convertendo em picos de produtividade e períodos de esgotamento a ponto de quase desmaiar após concluir uma revisão. Acho que é por isso que evitei trabalhar em narrativas longas por um longo período. Quero aproveitar mais o processo, usar melhor o tempo sem tanta auto cobrança. Se eu vou conseguir? Não sei. Não sei mesmo, mas vou tentar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Acho que a única etapa que consegui colocar regra é na revisão. Faço uma espécie de auto-revisão por duas vezes, no máximo, antes de enviar o texto para o meu marido. Ele é a pessoa que mais convive comigo e uma das poucas que compreende as minhas falhas, afinal, quando estou nos meus “picos” minha mente consegue ir mais rápido que minhas mãos e acabo deixando palavras e frases pela metade. Só então com o texto mais limpo que eu envio para meu amigo e parceiro de escrita Thiago Ambrósio Lage.
Só publiquei de forma independente em duas ocasiões: a primeira foi quando tentei participei do prêmio de Narrativa Curta Policial da Aberst e cheguei até a semifinal com o conto “O Último Romântico”, e foi justamente por causa dele que estabeleci a regra de limite de vezes de revisão, do contrário eu nunca conseguiria publicá-lo porque eu sempre encontrava algo para mudar e quase acabei caindo em um ciclo sem fim. O pior é que revisei tantas vezes e mesmo assim o e-book foi para o prêmio com erros causados pela diagramação! Em todo caso eu já tirei a publicação do ar e estou pensando em uma nova edição mais elaborada.
Já a segunda vez foi mais recente, na antologia “Quem vai nos salvar?” organizada pelo Lucas Ferraz e a Grazi Ruzzante, de forma independente e totalmente gratuita. Escrevi o conto “O Mal do Mundo” em um período crítico, com a ansiedade a mil. Lembro que aceitei o convite sem saber ao certo o que eu gostaria de escrever e comecei a ficar agoniada, pois não queria ser a única dos convidados a desistir, então em um sábado eu sentei diante do notebook e comecei a escrever basicamente tudo o que eu gostaria de responder aos meus pensamentos intrusos, e foi uma espécie de libertação. Enviei o texto quase da mesma maneira que eu havia colocado ponto final e, para minha sorte, os organizadores foram pacientes e entenderam a situação, me auxiliando com uma revisão bem caprichada, então não teve muitas etapas ou algo do tipo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia e eu nos entendemos bem o suficiente e tento utilizar o máximo dos recursos. Gravo mensagens de voz no celular para mim mesma para não perder uma ideia, mas, como disse antes, sempre ando com caderno e caneta em caso de emergência. Quanto aos rascunhos à mão ou no computador a resposta é: depende. As narrativas longas prefiro começar à mão e não tenho nenhum motivo ou justificativa para isso, eu só gosto. Quanto aos contos e noveletas faço diretamente no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não posso afirmar que eu tenha uma fonte única de ideias, depende do meu humor, da fase que estou vivendo. Quando comecei a pensar em escrita como uma carreira minha influência era basicamente RPG, cultura pop e fatos históricos, eu queria escrever para “fora”, buscar validação exterior, então acabava buscando temas e enredos que fossem mais palatáveis, que fossem de mais fácil aceitação e, que eu não precisasse me expor muito como pessoa, mas depois acabei mudando de ideia.
Não sei onde é o fim ou o começo, mas parece que as ideias agora surgem como sensações que eu desejo causar nas pessoas: alegria, desconforto, medo, alívio ou qualquer outra coisa. Depois penso em qual personagem contaria melhor aquela história e conseguiria intrigar o leitor. Tudo muito sensorial, mas funciono melhor assim, não tenho uma rotina ou ritual para ser criativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que o que mais mudou em mim como escritora foi justamente o fato de começar a abraçar as minhas fragilidades, e que sou a primeira pessoa a gostar do que escrevo. A história tem que fazer sentido pra mim, os personagens, as sensações, tudo deve ser a princípio o meu momento catártico antes de pensar em colocar aquelas palavras no mundo.
Por isso, quando recebo mensagens e avaliações dos leitores dizendo que entendem o meu texto, ou que fizeram as próprias interpretações do meu trabalho, fico muito emocionada. É como se à distância houvesse essa conexão de alma. Eles não me conhecem, eu não os conheço, mas há esse entendimento que extrapola qualquer explicação. Acho que é por isso que escrevo, para conseguir me conectar, e se eu pudesse voltar aos meus primeiros textos não mudaria uma vírgula.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Desisti de muitos projetos em 2020. Na época eu tive a sensação de que estava querendo abraçar o mundo com meus braços curtos. Uma pressão sem sentido que só partia de mim. Um belo dia acordei e me “demiti” de praticamente todos, e foi a melhor decisão que tomei. Precisava de um tempo para processar tudo o que estava acontecendo comigo e com o mundo, então deixei de lado projetos coletivos e individuais. Eu pretendia lançar “zines” com textos meus, mas a possibilidade de precisar sair de casa para fazer os envios acabou inviabilizando o projeto. Penso em retomar, mas em outro formato, talvez somente no formato eletrônico. Também penso em começar a escrever meu segundo livro após maio de 2021. A ideia ainda não está bem formatada e preciso desenrolar a protagonista, conhecê-la melhor, ainda estamos em uma fase de flerte e ela (que ainda não tem nome) é tão misteriosa que guarda segredos até de mim, mas eu acredito que irei conquistá-la aos poucos.
Agora, o livro que eu gostaria de ler, mas que ainda não existe? Não posso dizer que não existe, mas eu gostaria de ler histórias de horror escritas por autores homens onde, para vencer o grande desafio, os protagonistas precisem lutar contra a masculinidade tóxica, demonstrando seus medos e fragilidades sem apelar para a figura do anti-herói ou a do homem bravo torturado pelos seus erros. Tenho muita vontade também de ler mais histórias com protagonistas que não sejam definidas por seus relacionamentos amorosos ou sexuais, com mulheres em busca de auto realização e autoconhecimento motivadas pelas próprias escolhas, e não porque foram abusadas e violentadas. Mulheres vivendo aventuras, mulheres explorando o desconhecido sozinhas não porque elas estejam amarguradas, mas simplesmente porque elas querem.