Fabiana Faleiros é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia com o celular na mão, disfarçado de despertador. Ele disputa a atenção com meu caderno dos sonhos. Tenho acordado com frases descoladas dos sonhos. Por exemplo: “Coisas que nada sabemos sobre a pista 8”. Então escrevo o sonho e a frase, quando aparecem, e tomo café da manhã pensando se o que sonhei era intuição, desejo ou paranóia. Converso com minha amiga com quem divido casa e depois cada uma vai pra sua vida. Minha missão atual é encontrar concursos públicos pra dar aula e os escassos editais de exposição na Internet. Fica mais fácil quando faço exercícios pra chegar no corpo antes de tudo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando o trabalho é escrever prefiro a noite. Mas trabalho o tempo todo, no sentido de invenção de si e de mundo. Não tenho propriamente um ritual para escrever. Talvez a escrita seja o próprio ritual pra me livrar das camadas de subjetividade que o mundo hetero-branco-patriarcal vai encrustrando na gente. As coisas que escrevo tem se tornado cada vez mais a matéria prima dos meus projetos artísticos. Instalações, objetos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou trabalhando num projeto específico costumo escrever em períodos concentrados. Mas escrevo distraidamente quase todos os dias. E daí, a partir dessa distração, as vezes fecho um projeto. Por exemplo, na minha tese de doutorado comecei a escrever frases no Facebook enquanto estruturava o iníciodo texto. Postava quase todos os dias a frase “Minha tese começa assim: …”, seguida de outras palavras com as quais eu buscava começar. Acabei incluindo uma edição deste material, que era ao mesmo tempo poemas e questões da tese, entre os blocos mais densos de texto teórico. Algumas pessoas começaram a sonhar com a tese e no último capítulo, que éuma ficção, os sonhos entraram na narrativa. Acabou sendo um processo colaborativo.
Não tenho uma meta diária, mas crio métodos para abraçar a distração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende da escrita. Tem a escrita acadêmica, a poesia, os textos que são projetos pra editais. Essas formas de escrever se contaminam e fico passeando entre elas. Enquanto escrevia a tese a intuição chegava quando eu não estava sentada escrevendo. Retirar o corpo da inércia da cadeira e tomar um banho, cozinhar, limpar a casa, caminhar, me ajudava a concluir aquele parágrafo que não crescia sentado. Movimentos de aproximação e afastamento da superfície onde o texto está sendo escrito, no caso a tela do computador, colocam em prática meu astigmatismo suave. Noastigmatismo o desajuste da córnea faz com que a luz se refrate por vários pontos da retina em vez de se focar em apenas um. O sintoma éuma mente desfocada ou multifoco. Minhas investigações parecem que estão sempre querendo concluir um projeto que éo mesmo, e agora entendo um pouco aquela “coisa que nada sabemos sobre a casa 8 (infinito)” do sonho. A coisa éinfinita, vai se desdobrando e me sinto sempre cavando o mesmo buraco na terra.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Costumo fugir. Abro outros arquivos, outras abas, saio de casa. Tento pelo menos não paralisar. Revejo imagens, releio textos. Aqui a procrastinação é conectada ao auto boicote. Tem aquela frase: “Bixa, a senhora é destruidora mesmo.” Pra mim vale “Bixa, a senhora é autodestruidora mesmo.”
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrevo muito ao vivo, muita coisa nas redes. Então depois vou juntando essa escrita num arquivo do word, revisoe vou encaminhando pra formatos finais. Um poema, uma letra de música, um livro. Aliás componho muita música ao vivo, gosto dessa metodologia. Quase sempre mostro o que escrevo. Não acho que escrevo sozinha.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O capitalismo touchscreentem criado o hábito da reação imediata. A relação com a tecnologia ébem ambígua e me interessa bastante. Escrevi sobre os gestos touchscreena e relação com a masturbação, desejo, consumo e produção de si no livro O pulso que cai e as tecnologias do toque, Ikrek, São Paulo, 2016. A tela sensível ao toque muda nossa noção de sensibilidade em vários aspectos. Às vezes o pensamento aparece encadeado em ritmo de textão, coisa que não escrevo muito. Quando abro o wordparece que estou entrando nas minhas entranhas a ponto de não me sentir muito confortável. Tampouco me sinto confortável nas redes. As reações em vibração (do celular) capturam a capacidade de telepatia e ao mesmo tempo abrem possibilidades de conexão com pessoas que não encontraria de outra forma. O movimento #MeToo, por exemplo, criou uma rede de afetos entre mulheres, criou coragem pra sair das situações abusivas, tanto as do metier da poesia, da arte, quanto as das relações afetivas. Ao mesmo tempo me sinto perdida no que se chama de espaço interior. Tenho me concentrado no gesto de fazer coisas com as mãos, isso que fica tão abstrato com as tecnologias de comunicação. Escrever, costurar, colar coisas. O teclado ainda mantém uma separação do que écorpo, máquina, mão e tela. Enfim, estou voltando pra mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Vêm da raiva, do desejo de situar uma sensação fora do corpo, vêm do que o mundo apresenta como ameaça e vigor. Vêm da vontade de sarar uma ferida. Tenho pensando também que vêmdo gesto de criar trocadilhos: Lady Incentivo, Mastur Bar. Abro espaços, físicos ou não, a partir de nomes que crio e os significados das coisas vão aparecendo ali dentro, em forma de objetos, textos, som. Nesses espaços também cabem minhas pesquisas mais teóricas. Quanto mais cuidado de si, desde a alimentação, cuidados com o corpo e com o espaço onde estou, mais meu processo criativo se mantém ativo. Antes eu precisava mais do caos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Quando comecei a escrever, por volta de 2004, meus textos eram mais conectados comigo mesma, mais herméticos. Eu trabalhava dando aulas de informática, trabalhava como designer. Então tinha menos tempo pra me enxergar e pra enxergar “x outrx”. Eu precisava muito acessar a dor pra escrever. Hoje consigo alinhar melhor o sofrimento com uma espécie de cura, que nunca acontece exatamente, mas que pede passagem. Se eu fosse voltar pra tese diria a mesma coisa que disse quando terminei: uma hora isso tem que acabar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho escrito pra criar um oráculo menstrual. São leituras de sangue. O sangue contém informações sobre o estado de saúde do corpo. Fico vendo formas no sangue derramado numa superfície e conecto com a leitura da borra de café. Algo bem intuitivo que se relaciona com o corpo. Quero sistematizar melhor essa prática. Não sei dizer que livro gostaria de ler. Talvez um livro sobre memes, política e o retorno do pensamento através do imagens.